
Manifesto de 68 entidades repudia homenagem da ALMG a CEO da Sigma Lithium
Assinado por 68 entidades e mais de 460 pessoas, o documento, liderado pelo MAB, denuncia a empresa por “violação sistemática de direitos humanos”.
Por Katia Torres
A entrega do título de Cidadã Honorária do Estado de Minas Gerais à CEO da Sigma Lithium, Ana Cabral, concedido a requerimento do deputado Gil Pereira (PSD), nesta quinta-feira (22), aconteceu sob o peso de uma contundente Nota Pública de Repúdio que circulava desde o dia anterior. Assinado por 68 entidades e mais de 460 pessoas, o documento, liderado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), denuncia a empresa por “violação sistemática de direitos humanos” e expõe as profundas contradições entre a homenagem na Assembleia Legislativa e os impactos da mineração no Vale do Jequitinhonha.
Em um emotivo discurso intitulado “Travessia”, Ana Cabral construiu uma narrativa que busca conectar sua história pessoal à do Vale. Ao se comparar à “diáspora do Vale”, mencionou sua própria saída de um Brasil “destruído pela inflação” em 1993, afirmando ter partido “sem esperança nenhuma”. Em seguida, descreveu o Vale que encontrou em 2012 de forma análoga: “Um lugar rico […] porque as pessoas eram trabalhadoras, resilientes, do bem, mas não tinham oportunidades”.
A apropriação do termo “diáspora do Vale” pela CEO, no entanto, é carregada de uma profunda ironia histórica. Uma pesquisa realizada pelo Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) detalha como a migração em massa na região foi intensificada justamente por outro ciclo de exploração de recursos, também vendido como progresso verde: a monocultura de eucalipto.
De acordo com o estudo, o processo começou nos anos 1970, quando a ditadura militar promoveu a atividade com incentivos fiscais. Nesse contexto, a empresa estatal Acesita “apropriou-se de vastas áreas de terras comuns, expulsando inúmeras comunidades camponesas”. Foi esse ciclo de desapropriação e esgotamento dos recursos hídricos o verdadeiro motor da diáspora, e não a falta de oportunidades, como sugere a narrativa da CEO.
Este histórico de exploração, que parece se repetir, alimenta a crítica a uma narrativa recorrente, a de um “Vale da Miséria” que necessita de um “salvador” externo, desconsiderando a complexidade e a resiliência da cultura local. A fala de Ana Cabral, ao pintar um cenário desolador para justificar a chegada da empresa, é vista como uma repetição desse modelo, uma percepção corroborada pela pesquisadora Aline Sulzbacher, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha (UFVJM), que em seu artigo, Mineração e questão agrária no Vale do Jequitinhonha, descreve a região como uma “fronteira mineral e agrária” marcada por disputas contemporâneas.
Segundo os integrantes da carta de repúdio, a condecoração está “em sintonia com as iniciativas conduzidas pelo governador Romeu Zema (Partido Novo)”, que busca “ostensivamente mercantilizar as riquezas minerais da região”. A crítica se aprofunda na Deliberação Normativa Copam n° 240/2021, que rebaixou a classificação de pilhas de rejeito, mudança que, segundo o manifesto, “simplificou os pedidos de licenciamento ambiental sem análise rigorosa”. Essa preocupação também é corroborada por uma Nota Técnica elaborada no âmbito do projeto de pesquisa internacional LIQUIT (Local, Indigenous, Quilombola and Traditional Communities and the construction of the Lithium Valley in Minas Gerais, Brazil). O documento alerta para a “subestimação dos danos ambientais e sociais”.
A própria cerimônia na Assembleia tornou-se um microcosmo das críticas sobre o controle da narrativa da Sigma, que operou em duas frentes. De um lado, não permitiu a entrada de pessoas que não estivessem em lista de convidados sob supervisão da equipe do deputado Gil Pereira, a exemplo de dois estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que foram barrados. Questionados sobre a impossibilidade de entrar, os estudantes foram informados de que o local estava lotado. No entanto, a reportagem constatou a entrada contínua de outras pessoas. Diante desse cenário de acesso restrito e seletivo, levanta-se o questionamento sobre por que o caráter não público do evento não foi comunicado previamente na divulgação oficial.
De outro, a construção de uma imagem de apoio popular, uma tática que remete ao que pesquisadores da LIQUIT já haviam documentado em audiências passadas: o “enorme esforço corporativo para mobilizar as pessoas beneficiadas”. Esse padrão foi observado novamente na homenagem, para a qual a empresa organizou a vinda de grande número de mulheres participantes do Donas de Mim (programa de micro créditos da Sigma), que viajaram do Vale até a capital para o evento
Durante o evento, na tribuna, o deputado elogiou a homenageada, citando um “aumento superior a vinte por cento no PIB per capita” em Araçuaí e Itinga. Contudo, a afirmação é, no mínimo, precoce, pois a empresa iniciou suas operações em 2023 e o IBGE ainda não publicou os dados de 2024.
A análise técnica da nota revela inconsistências mais profundas: a mineração a céu aberto da Sigma consome “30 vezes mais terra” e produz 94% de estéril, enquanto a Companhia Brasileira de Lítio (CBL), com mineração subterrânea, produz apenas 15,6%.
As “ações especiais da Sigma”, como a construção de cisternas, também são contestadas. “A água que ela está dando é uma caixa de 1.000 L para uma família inteira passar um mês. Eles falam que é potável, mas ninguém sabe a origem”, declara um morador que não quis se identificar. A queixa corrobora a Nota Pública de Repúdio sobre “altos índices de ruídos, poeira, rachaduras nas casas, problemas de saúde e perdas na produção de alimentos” que atingem mais de 80 famílias.
Dados epidemiológicos analisados a partir de estudos do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2008 a 2024 contestam diretamente a narrativa de prosperidade: em Araçuaí, a taxa de mortalidade saltou de 4,98 para 5,585 por mil habitantes, e em Itinga, de 4,22 para 5,310. As internações por doenças respiratórias subiram mais de 22% em ambas as cidades.
O título honorário concedido a Ana Cabral simboliza uma escolha política clara. Enquanto 68 entidades denunciam violações de direitos humanos, uma Nota Técnica detalhada expõe os riscos e estudos do SUS analisados pela reportagem apresentam dados epidemiológicos preocupantes, o poder público mineiro opta por homenagear a CEO de uma empresa que deveria ser fiscalizada em amplas frentes.
A rápida mobilização social demonstra que existe uma rede organizada e atenta às questões minerárias em Minas Gerais. A homenagem pode ter durado algumas horas, mas o debate sobre o verdadeiro custo do “vale do lítio” para o Vale do Jequitinhonha está longe do fim.