O que significa decretar famine em Gaza?
A confirmação oficial de que mais de meio milhão de pessoas vivem hoje em situação de fome em Gaza é um marco trágico na história recente.
Por José Graziano da Silva, ex-Diretor-Geral da FAO e Diretor do Instituto Fome Zero
A confirmação oficial de que mais de meio milhão de pessoas vivem hoje em situação de fome em Gaza é um marco trágico na história recente da fome no mundo. Trata-se da primeira vez que o conceito de famine é usado para descrever o que se passa no Oriente Médio, mas infelizmente não é a primeira vez que vemos a fome utilizada como arma de guerra. Antes de Gaza, a ONU já havia reconhecido duas situações semelhantes: a Somália em 2011 e o Sudão do Sul em 2017. Em ambos os casos que tive de enfrentar como diretor geral da FAO, conflitos armados e bloqueios impediam que os alimentos e a ajuda humanitária chegassem à população civil, pois os militares envolvidos continuavam bem abastecidos.
Tive a oportunidade de visitar a Somália em 2012, imediatamente depois de cessarem os combates mais intensos. Naquele momento, foi possível restaurar minimamente um programa emergencial de proteção social em apoio às tradicionais formas de distribuição de comida.Em conjunto com o Programa Mundial de Alimentos (PMA), a FAO introduziu a transferência de renda — o cash transfer, ainda pouco usado naquela época para combater a fome. Em apenas seis meses, a fome foi oficialmente superada. Recordo-me de uma cena marcante: do lado de fora do campo de refugiados, vi centenas de pequenos comerciantes com burros carregados de mantimentos. Mas, sem dinheiro, as pessoas dentro do campo morriam de fome e sede. Quando o cash transfer foi implementado, esses comerciantes passaram a abastecer a população do local. A solução era simples: havia alimentos, mas faltava o dinheiro para viabilizar o acesso, como acontece ainda hoje na maior parte do mundo.
No Sudão do Sul, que visitei em 2017 ao lado dos dirigentes do PMA e do UNICEF, a situação era diferente. O país recém-independente enfrentava um conflito interno devastador. A produção agrícola havia colapsado, e comunidades inteiras estavam sitiadas. A fome, mais uma vez, era usada como arma. Ali, o desafio não era apenas de acesso econômico, mas também físico: era preciso negociar passagem segura para levar sementes, ferramentas e assistência humanitária a áreas isoladas. Foi um trabalho difícil pois implicava em negociar com as partes em conflito, mas essencial para evitar que as pessoas continuassem a morrer de fome.
Segundo a Classificação Integrada da Segurança Alimentar (IPC), a declaração oficial de famine ocorre quando a escassez de alimentos atinge o nível 5 e vários dos seguintes critérios são cumpridos: a taxa de mortalidade é superior a 2 mortes por cada 10 mil pessoas por dia; mais de 20% dos lares enfrentam escassez aguda de alimentos ou não têm acesso algum; mais de 30% da população sofre de desnutrição aguda; e a taxa de mortalidade infantil supera 4 mortes por cada 10 mil crianças menores de cinco anos por dia. Esses parâmetros, hoje, infelizmente se confirmam em Gaza.
Em Gaza, a tragédia é ainda mais cruel. Israel impede sistematicamente a entrada da ajuda humanitária, bloqueando alimentos, medicamentos e combustível. É um crime contra a humanidade usar a fome como instrumento de guerra. Diferente da Somália, onde conseguimos rapidamente recuperar a segurança alimentar com medidas simples de proteção social, em Gaza não há sequer a possibilidade de levar comida a quem precisa. As agências da ONU relatam que 98% das terras agrícolas estão destruídas, nove em cada dez pessoas foram deslocadas de suas casas e 12 mil crianças ficaram desnutridas apenas em julho. São números que gritam por socorro imediato.
Esses episódios demonstram que a ocorrência de famine não é fruto do acaso ou da natureza, mas de ação humana deliberada. Em todas essas situações, a guerra é o fator determinante, mas não o único: é fundamental impedir a ajuda humanitária internacional. E se hoje Gaza vive essa tragédia, o mundo inteiro também enfrenta uma nova ameaça. A decisão recente do presidente Trump de acabar com a USAID, maior agência de cooperação dos Estados Unidos e a maior financiadora das organizações internacionais que atuam nesta área, demonstra uma clara intenção de minar a ajuda humanitária global. É como se estivéssemos esperando para assistirmos a uma generalização da fome em maior escala a nível mundial, especialmente na África, onde milhões dependem dessa assistência alimentar para sobreviver.
A experiência da FAO mostra que proteger a agricultura, a pesca e a pecuária é proteger a vida. Ao salvar meios de subsistência e construir resiliência, ajudamos a criar as bases da paz. Esse foi o espírito da Política da FAO para Apoiar a Paz Sustentável, lançada em 2017, em plena Agenda 2030. A segurança alimentar não é apenas um objetivo em si, mas uma condição essencial para sociedades pacíficas e inclusivas.
O que vemos em Gaza é a negação desse princípio. Impedir que alimentos cheguem a quem tem fome é atentar contra os mais elementares princípios da solidariedade humana! Não se trata apenas de uma crise humanitária: é um crime que deve ser denunciado em todas as instâncias internacionais. O mundo não pode aceitar a normalização da fome como arma de guerra.
Gaza nos lembra, dolorosamente, que a fome é sempre uma escolha política. E que o silêncio diante dela também é uma escolha política.