
Entre a morte e a resistência: a cidade de Santa Cruz em ‘Guerreiros do Sol’
A segunda fase da série que expõe o horror institucionalizado e celebra a força do povo sertanejo
Por Hyader Epaminondas
Se a primeira fase de Guerreiros do Sol nos apresentou um sertão em combustão, onde o calor era sentença e o chão rachado carregava segredos, a segunda fase escancara a ferida agora exposta, inflamada e institucionalizada. A cidade de Santa Cruz já não é apenas cenário, mas um território atravessado pela lógica da morte. Sob a lente de Achille Mbembe, entendemos que a necropolítica deixou de ser um subproduto do Estado para se tornar sua engrenagem central.
O governo administra a morte como forma de controle, autorizando o extermínio e terceirizando o terror por meio de milícias que ele mesmo gestou. Aqui, a soberania se afirma não pelo cuidado, mas pela gestão do abandono, pela seleção brutal dos corpos que podem existir e dos que serão silenciados. O Estado não mais falha, ele cumpre seu projeto.
E isso tudo é centralizado em Arduino, que, em sua plenitude vilanesca, se banha no prazer sádico da impunidade. Ao seu lado, Pente Fino, que assume a face de Hercílio Bezerra para viver um personagem em permanente contradição, ora escudo, ora isca. Sua performance trafega com precisão entre o sarcasmo servil e um medo genuíno que escorre pelos olhos sempre que o chefe se aproxima.
Juntos, eles transformam a cidade de Santa Cruz numa trincheira pessoal, onde a lei é mero adorno e a violência, um ritual meticuloso que perturba até a paz do Delegado Laureano, vivido por Renato Livera, que era capaz de dançar um xaxado perfeito sobre a corda bamba da moralidade da cidade. Arduino não governa com autoridade, mas com pavor. E cada estratégia sua é uma nova forma de esmagar o que ainda resta de humanidade na cidade.
Resistência, voto feminino e os rostos da luta no sertão
O sertão vira prisão sem grades, um campo de purgação onde os pobres são confinados para “higienizar a cidade”. A metáfora não poderia ser mais cortante: a elite precisa que o povo desapareça para manter o centro limpo. E assim, o centro de socorro aos flagelados se transforma em pesadelo institucional. A tortura se alastra como trinca em parede de barro.
E, como toda boa alegoria, Arduino já não é só homem. É síntese da perversidade legalizada, um monumento à masculinidade autoritária. Irandhir Santos mergulha num abismo interpretativo de onde só sai maior. A atuação beira o insuportável, não por excesso, mas por precisão. Seu vilão já é o mais memorável da dramaturgia nacional em 2025. E que me perdoe Odete Roitman, mas aqui a vilania se banha em sangue sertanejo e cachaça quente.
Enquanto isso, o padre Bida, de Rodrigo Lelis, personagem que parecia satélite, ganha protagonismo nessa segunda fase. Ele observa o caos com olhos de julgamento, mas não se perde na amargura. Ao contrário, se mantém íntegro, mesmo diante dos pecados do irmão. Sua fé, quase inalcançável, serve como contraponto ao desmoronamento moral da cidade. A igreja, agora reforçada pela entrada da Valiana, de Nathalia Dill, e do quinto irmão Alencar, tenta ser abrigo não só dos corpos, mas das almas.
No lado do cangaço, Sabía, de Vitor Sampaio, e Milagre se consolidam como colunas da narrativa no início da segunda fase, tomando o espaço cedido por Josué, enquanto este toma o tempo mais do que esperado para viver seu romance com Rosa. Enquanto Sabía assume uma parte do comando do Bando com uma certa ingenuidade e repleto de impulsividade, Milagre, vivido por Ítalo Martins, ocupa o sertão com olhar de redenção e paciência. O cangaço aqui não é folclore, é resposta à injustiça, à dor, ao esquecimento.
A crítica social, sempre pulsante, ganha corpo na trama do voto feminino. Jânia se destaca como figura de força, mas também de contradição. Sua luta pelo sufrágio feminino é legítima, mas não isenta. Ignora o que não lhe interessa. Enquanto as mulheres de elite discutem o futuro político do país entre chá e porcelanas, as mulheres pobres apodrecem no campo dos flagelados. A novela, com um requinte amargo, escancara o abismo entre as vozes que falam e as que gritam, mas ninguém ouve, em um arco encabeçado por Enedina, que ganha vida através da atuação visceral de Alanys Santos.
O teatro, a memória e o som de Mulher Rendeira
A amável Adelzira, de Theresa Fonseca, enfim, é arrancada da penumbra narrativa e colocada sob os holofotes do destino. Seu retorno é mais do que um reencontro: é uma ressurreição. No palco do teatro, ao lado do palhaço Gonçalves, de Odilon Esteves, vive um amor que não é romance de novela, mas pacto de sobrevivência. A relação entre os dois se desenha como queda: despencam juntos, mas encontram alívio no voo.
Adelzira, agora com espaço e presença, representa o que é viver entre os escombros da própria história e ainda assim achar beleza nos cacos, em um belíssimo arco de ressurreição. O arco do teatro surpreende. Não por sua grandiosidade, mas por sua delicadeza. Ele funciona como antídoto à brutalidade do mundo lá fora, como se a arte ainda pudesse curar o que a política insiste em ferir.
Na reta final, o jornalista Gêneton, de Lucas Galvino, e o fotógrafo, interpretado por Kaysar Dadour, são inseridos na trama, trazendo consigo um novo olhar: o da imagem como memória. A fotografia, antes quase mística, agora é testemunha e denúncia. A narrativa se assume como metáfora metalinguística. O cinema entra em cena, não apenas como estética, mas como ferramenta de combate. A história do cangaço é contada para não ser esquecida. A câmera registra, o sol ilumina, mas é o povo que transforma a imagem em verdade.
Petúnia, vivida com delicadeza por Larissa Góes, também atravessa um arco de ressurreição nesta segunda fase, caminhando poeticamente em paralelo ao de sua mãe de criação, Aniete, interpretada com intensidade por Dani Barros. Juntas, elas desenham uma trajetória de empoderamento feminino que não se limita ao discurso, mas pulsa em ação concreta, em afetos reconstruídos e em força comunitária.
Aniete rompe as amarras do patriarcado e da misoginia não com palavras de ordem, mas com o amor incondicional pela filha que escolheu criar, e que agora se torna um símbolo de resistência em Santa Cruz. É por meio dessa relação que floresce como liderança silenciosa, catalisando a união das mulheres da cidade em paralelo à luta pelo voto feminino, não como conquista de elite, mas como direito urgente do povo.
Já Fabiano, de Marco França, que antes parecia coadjuvante sem destino atuando como o alívio sonoro do grupo, com sua sanfona sempre em mãos, surpreende com uma virada emocional pungente. Sua atuação, mais contida, é como brasa que queima sem alarde em uma vela que já se desfez frente aos conflitos do cangaço.
O tema da violência doméstica aparece como última ferida aberta. Usar o vilão como foco dessa trama é acertado. É pela mão do carrasco que se entende o ciclo da dor. Soraia rompe na narrativa como surpresa tardia, mas de potência inegociável, encarnada com precisão por Carla Salle. Sua presença é turbulenta, como estrada de barro recém-molhada pela chuva do sertão: cada passo é deslizamento, cada gesto uma luta contra o afundamento. Sua atuação ocupa os silêncios com pulsação viva, como quem respira entre os escombros.
Soraia não é só personagem, é personificação do próprio sertão: estilhaçada pelo calor escaldante, marcada pela brutalidade cotidiana, mas ainda assim movida por uma fome de vida. Ela atravessa a trama como quem sobrevive a um castigo imposto por séculos de descaso e misoginia, buscando abrigo numa terra que insiste em expulsar os seus semelhantes.
A segunda fase de Guerreiros do Sol reafirma o que a primeira já prometia como um manifesto na linguagem de um cordel audiovisual feito com pólvora, suor e saudade. A arte brasileira aqui não pede licença, ela invade como sol do meio-dia e grita feito tambor de cangaço. E é Rosa, com sua narração já marcada pelo timbre firme e lírico de Isadora Cruz, quem nos embala no desfecho como quem reza uma última prece suave, mas gravada a ferro no tempo.
Sua voz não é apenas ponte entre nós e os personagens. É uma cicatriz que narra. É uma oração sertaneja e, ao som de “Mulher Rendeira”, celebra a vibrância da vida no sertão. Não como quem idealiza, mas como quem sobreviveu. Como quem viu tudo desmoronar e, ainda assim, se recusou a virar pó.
Ela canta não para esquecer, mas para lembrar. E o sertão, cansado e em chamas, se rende ao encanto da canção de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.