
Riqueza que adoece: como a corrida pelo lítio ameaça a vida no Vale do Jequitinhonha
A promessa de desenvolvimento sustentável com o “lítio verde” contrasta com estatísticas de saúde nas cidades mineradoras Araçuaí e Itinga
Por Kátia Torres
No Vale do Jequitinhonha, a febre do lítio verde para abastecer a transição energética global está deixando um rastro de poeira, ruído e, segundo dados oficiais, doença. Em Itinga e Araçuaí, epicentros da extração de lítio, a chegada da mineração em larga escala coincidiu com um aumento preocupante nas taxas de mortalidade e internações por problemas respiratórios, desafiando a narrativa de progresso vendida pelas empresas e pelo poder público.
Essa realidade estatística tem um rosto e uma voz. Ronilda Santos, da comunidade Mata dos Crioulos em Diamantina, contrapõe o modelo extrativista com sua própria subsistência: “Eu não dependo de Ceasa, não dependo de sacolão, porque eu tenho o meu quintal. Mas vai chegar um dia, do jeito que a mineração está avançando, e eu me pergunto: será que meus netos vão ter esse quintal? Estou lutando desde os meus 8, 9 anos para ter direito ao meu território.”
Os números não mentem
Uma análise aprofundada de dados públicos de saúde, isolando os efeitos da pandemia de COVID-19, revela uma divergência gritante entre as cidades mineradoras e uma cidade vizinha usada como controle.
Para avaliar o impacto, foram comparadas as taxas de mortalidade em Itinga e Araçuaí com as de Rio Pardo de Minas — um município com perfil semelhante, mas sem a mesma intensidade de mineração. Os resultados, que se referem ao período pré-mineração intensiva (2010-2017) e pós-mineração (2018-2024), são alarmantes.

Enquanto as cidades mineradoras viram suas taxas de mortalidade subirem — representando cerca de 16 mortes anuais a mais em Itinga e 22 em Araçuaí —, a cidade de controle registrou uma queda.
O mesmo padrão se repete nas internações por doenças respiratórias. Itinga e Araçuaí registraram aumentos de mais de 22%, enquanto Rio Pardo de Minas viu uma redução superior a 14%.

Para Geraldo Neto, ativista do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), esses dados refletem a destruição de um modo de vida. “Você vai na comunidade, as pessoas estão com uma vida tranquila, passando um café, cuidando das crianças, aquele silêncio, aquela paz. A gente já fica pensando, se não conseguir o enfrentamento, o modo de vida dessas comunidades acaba.”
Promessa de riqueza
A filha de Ronilda Santos define essa dinâmica: “Pintam um cenário de precariedade, que era o vale da miséria, mas agora é o vale do lítio. É se apropriar dessa arma que está sendo usada contra a gente…”
Essa visão de resistência se opõe à grandiosa promessa vendida pelo governador Romeu Zema, que projeta um futuro onde “o Vale do Jequitinhonha se transforme no vale da tecnologia para a produção de baterias”.
A ironia, contudo, se aprofunda aqui: o próprio governador que exalta o “vale da tecnologia” já classificou o principal produto dessa cadeia, o carro elétrico, como “uma ameaça a milhões de empregos”, expondo a frágil e contraditória base sobre a qual o projeto é apresentado à população.
Essa retórica contraditória do governo, no entanto, não surge no vácuo. Ela só encontra terreno fértil porque se apoia em um estigma muito mais antigo, construído para legitimar a exploração da região.
Antes de ser chamado de “Vale do Lítio”, o Jequitinhonha carregava outro estigma: o de “Vale da Miséria”. Uma terra marcada pela seca e pela pobreza. Mas, para acadêmicos que estudam a região, esse rótulo nunca foi uma fatalidade geográfica. Segundo Aline Veber, doutora em geografia e professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), que também integra o coletivo Observatório dos Vales e Semiárido Mineiro, ele é, na verdade, uma cicatriz histórica. “A gente concluiu que o semiárido é uma herança colonial. Se não fosse a destruição, o genocídio que se viveu nesse grande território, talvez a gente não seria Semiárido Mineiro”, analisa. Essa identidade imposta, argumenta Veber, serviu para apagar saberes ancestrais e justificar um ciclo de exploração que hoje se renova sob a bandeira do lítio.
A Sigma Mineração S.A., responsável por mais da metade da arrecadação de CFEM de lítio no país, recebeu um subsídio de R$ 486,7 milhões do BNDES, mesmo com o setor em queda e em meio à crise de saúde no município onde opera.
A crítica a esse modelo de financiamento é contundente na voz de Ricardo Targino, da cidade de Medina e membro da Mídia Ninja, que vive a realidade da região: “No Vale do Jequitinhonha, onde nasci e luto, os efeitos dessa farsa já são irreversíveis. Com o pretexto de produzir o lítio verde que abastecerá os carros elétricos do Norte Global, o Estado brasileiro – por meio do BNDES e com recursos do Fundo Clima – financia um modelo de mineração que aprofunda a desertificação, contamina os rios, sequestra a água das comunidades e gera calor extremo sobre calor extremo. É isso que os documentos chamam de ‘economia dos minerais críticos’. Nós chamamos de genocídio climático.”
A batalha política e jurídica
Esse cenário é agravado por um contexto de flexibilização ambiental, cujo ápice é o PL 2159/2021, apelidado de PL da Devastação. A urgência da pauta ambiental é constantemente lembrada pela ministra Marina Silva, que alerta para os riscos climáticos irreversíveis.
A resistência se organiza em múltiplas frentes. No 40° Festivale, em Diamantina, a cultura popular se tornou palco de protestos. “Um velho senhor esguio (…) caminha na encruzilhada, tentando fugir da morte”, cantou o artista Edu do Vale, em versos que ecoam a resiliência do Cerrado e de seu povo.
Nos tribunais, a Deputada Federal Célia Xakriabá prepara uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra decretos que facilitam o licenciamento, argumentando que violam o direito à consulta prévia, livre e informada das comunidades, garantido pela Convenção 169 da OIT. A ofensiva é reforçada por uma nota técnica de um consórcio de universidades (Projeto Liquit), que aponta falhas graves nos estudos ambientais da Sigma.
O cabo de guerra em Brasília sobre o PL da Devastação teve um desfecho crucial nesta sexta-feira (8 de agosto). Atendendo à pressão de ambientalistas e comunidades, o presidente Lula sancionou a lei, porém vetou 63 de seus pontos mais danosos.
Entre os vetos, destacam-se a barragem à flexibilização de licenças para projetos de médio risco e a manutenção da proteção à Mata Atlântica e do direito de consulta a povos indígenas. A decisão foi uma vitória importante, mas a luta não terminou, tornando o alerta que ecoa pelo Vale, na voz de Ricardo Targino, da Mídia Ninja, ainda mais essencial: “Água vale mais que diamante, que ouro e que lítio. O povo do Vale do Jequitinhonha não vai se render sem lutar.
Diante dos dados de saúde, da queda na arrecadação e da preocupação das comunidades, a promessa de riqueza parece cada vez mais distante da realidade do Vale. A disputa, portanto, não é apenas por terra ou minério, mas pela própria definição de progresso. A questão que permanece no ar é se o Vale do Jequitinhonha está realmente diante do seu “mercado do futuro”, ou, como alerta Célia Xakriabá, do “mercado que compromete o futuro”.