Alma da minha alma.” O mundo ouviu essas quatro palavras e, nelas, um abismo — e um chamado. A história de Khaled e Reem tornou-se símbolo da humanidade inquebrantável de um povo que insiste em amar, resistir e sobreviver

Reem, de apenas três anos, era a menina dos olhos de Khaled Nabhan. Repetia seus gestos durante as orações, sentava-se no seu colo enquanto ele tomava o café da manhã e o espiava pela janela da casa em Deir al-Balah sempre que ele saía para sua caminhada vespertina.

O cerco traumatizou a pequena Reem, mas era nos braços do avô que ela encontrava abrigo durante os intensos bombardeios. O barulho dos ataques aéreos e o cenário de morte cercavam seu jovem corpo até que, em 28 de novembro de 2023, ele a levou consigo.

Khaled não estava em casa quando Reem adormeceu em seu descanso final. Um ataque aéreo israelense, lançado contra o campo de refugiados vizinho de Al-Nuseirat, atingiu a casa da família e tirou a vida da pequena Reem.

Khaled voltou para casa e encontrou o corpo inerte da neta. Ergueu Reem diante das câmeras e beijou sua pequena testa. “Ela era a alma da minha alma”, chorou o avô, segurando-a nos braços. Khaled e Reem compartilhavam o mesmo dia de aniversário.

Acariciando o corpo sem vida de Reem, Nabhan murmurou uma elegia comovente. Suas palavras, “ruh el-ruh”, expressão árabe que significa “a alma da minha alma”, ecoaram pelo mundo após o massacre.

Essas palavras se tornariam um grito de guerra. “Ela era a alma da minha alma”, repetiu ele, olhando para o rosto de Reem pela última vez antes de entregá-la a um estranho encarregado de encontrar seu local de sepultamento.

Os momentos finais deste avô palestino segurando o corpo sem vida e manchado de sangue de sua neta se espalharam amplamente pelas redes sociais, simbolizando a imensa dor que os palestinos suportam diariamente enquanto Israel continua bombardeando Gaza.

Khaled estava devastado, mas calmo, tomado pela dor de um avô que acabara de perder a neta. Ele não prometeu vingança, não gritou gritos de guerra nem demonstrou raiva diante das câmeras que o filmavam.

As memórias de Reem foram enterradas a dois metros de profundidade, sob os escombros de sua casa destruída. Mais tarde naquela semana, Khaled encontrou uma das bonecas dela nos escombros.

Enquanto falava com a CNN, ele a segurou nos braços como fazia com Reem. Em seguida, levantou o rosto da boneca para encontrá-lo e beijou-a na testa. “Eu costumava beijá-la nas bochechas, no nariz, e ela ria”, disse Khaled, segurando a boneca sem vida e lembrando-se da alma que perdeu.

Após o assassinato brutal de Reem, o “avô amado” continuava sendo visto entre as crianças de Gaza, brincando com elas e distribuindo pequenos presentes.

Segundo vizinhos, essa presença constante entre os pequenos era uma forma de catarse: uma tentativa de suavizar a dor esmagadora provocada pela perda de Reem.

Transformando o luto em gesto solidário, Khaled Nabhan tornou-se um símbolo de esperança viva. Ajudava socorristas e médicos no cuidado aos feridos — especialmente crianças — como se, em cada ato de cuidado, tentasse reconstruir aquilo que lhe fora arrancado.

Nas redes sociais, compartilhou vídeos comoventes mostrando ele e a mãe de Reem oferecendo ajuda e conforto aos moradores de Gaza em meio ao caos.

Em honra à neta, lançou a iniciativa humanitária “Reem: Soul of the Soul”, com o objetivo de levar um pouco de alegria às crianças palestinas por meio de brinquedos e presentes; um gesto de ternura contra a brutalidade da guerra.

Desde que sua despedida com Reem comoveu o mundo, Khaled passou a ser descrito, nas palavras de seu filho Diaa, como “uma agência humanitária de um homem só”. Mesmo faminto, fraco e desnutrido, seguia incansável em sua missão: transformar a dor em cuidado, a perda em compaixão ativa.

“Ele trabalhava duro… passava fome para que nós tivéssemos o suficiente para comer”, recorda Diaa, seu filho.

Desde então, inúmeros vídeos passaram a circular mostrando Khaled Nabhan enfrentando sua dor enquanto se dedicava a ajudar quem pudesse. Seu foco se voltou inteiramente para o alívio do sofrimento alheio. Acolhia pessoas, confortava desconhecidos e até atendia ligações de várias partes do mundo com palavras de consolo, mesmo ele sendo o enlutado.

Nas raras vezes em que se permitia desabafar, sua queixa não era sobre si mesmo, mas sobre a condição humilhante a que eram submetidas milhares de pessoas forçadas ao deslocamento, enquanto Israel seguia bloqueando a entrada da maior parte da ajuda humanitária em Gaza.

“Não há indignidade maior do que essa”, declarou Khaled, enquanto viajava na parte de trás de uma carroça puxada por cavalos, carregando os poucos pertences da família rumo a Rafah, seu segundo deslocamento forçado. Mais tarde, teriam de fugir de lá também.

A dor de Khaled Nabhan ressignificou o modo como o mundo enxerga os homens palestinos e a identidade muçulmana. Gentil, mas firme; piedoso, mas vulnerável, ele encarnava uma humanidade que tantas vezes foi invisibilizada. Através de sua figura, o mundo pôde vislumbrar a dignidade e a resiliência do povo de Gaza em meio à destruição.

Diante das câmeras, o que se via não era um “terrorista”, como tantas vezes se acostumaram a rotular palestinos por sua roupa, barba ou keffiyeh. Era um avô em luto, um homem devastado pela perda brutal de sua neta, vestindo sua túnica tradicional e carregando a dor de um povo inteiro no olhar.

Khaled se tornou um novo arquétipo palestino; não o do inimigo, mas o do humano ferido, capaz de amor e cuidado mesmo após o trauma. Ele alimentava gatos de rua, tão famintos e assustados quanto os civis de Gaza, brincava com seus netos sobreviventes, com sua filha caçula Ratil, de apenas 10 anos, e cuidava da mãe idosa. 

Sua dor tornou-se uma lente: através dela, o mundo viu um homem comum, e viu, também, o que a guerra destrói.

A morte voltou a bater à porta em 16 de dezembro de 2024, pouco mais de um ano após o assassinato brutal de Reem. Desta vez, foi Khaled quem teve a vida ceifada por um ataque israelense. Imagens de seus corpos inertes e de seus sorrisos eternizados em vida espalharam-se rapidamente pela internet, provocando comoção global e uma onda de homenagens comoventes.

O mundo, que já havia chorado com Khaled, agora chorava por ele. Suas palavras dolorosamente sinceras tornaram-se um eco coletivo, um grito de humanidade diante da barbárie. A dor que carregava se tornou universal, e Khaled passou a simbolizar, com força ainda maior, a dignidade ferida, mas não vencida, do povo palestino.

Agora, seu corpo repousa ao lado de Reem no martírio, mas seu legado permanece vivo. Em meio à tragédia contínua em Gaza, Khaled e Reem tornaram-se ícones da humanidade inquebrantável de um povo que insiste em amar, resistir e sobreviver.

A única culpa de Khaled foi existir em Gaza. Primeiro, mataram sua neta “a alma da sua alma”. Depois, destruíram a casa da família. Por fim, o assassinaram em plena luz do dia, sob o véu da impunidade.

Ele era um homem sitiado que perdeu a alma no cerco. E, ao mesmo tempo, uma alma pela qual o mundo pôde enxergar o melhor da humanidade em meio às condições mais desumanas.

Ao longo desses mais de 600 dias de escuridão e genocídio, conhecemos vidas em Gaza que nunca esqueceremos. E aprendemos a amar muitas delas. Como a de Khaled Nabhan, o avô amoroso, cuja voz e cujo rosto se imprimiram em nossa memória. De tantas formas, eles se tornaram parte de nós.

Palestinos como Khaled já não nos parecem distantes. Tocaram nossos corações com seu amor pela terra, sua firmeza serena diante do horror, sua ternura intacta. Tornaram-se próximos. Presentes. Vizinhos de alma. Parentes que a dor nos ensinou a reconhecer.

Alma da minha alma.” O mundo ouviu essas quatro palavras e, nelas, um abismo — e um chamado. Carregadas de dor e beleza, tornaram-se uma ode à vida que insiste, e à revolução íntima que um avô palestino despertou em todos nós.

Quatro palavras que revelam uma verdade brutal: o ocidente não trava apenas uma guerra contra um povo, mas contra tudo o que nele pulsa como humano.

Rima awada Zahra é libanesa brasileira, psicóloga, escritora, e coordenadora da pós-graduação do curso de Psicologia e Migração da PUC MG. Autora e coautora de obras que reúnem experiências nas áreas da migração, educação, e saúde mental com população em situação de vulnerabilidade social e que são reconhecidos por entidades como a FNLIJ, a Biblioteca nacional, e selecionados para o Clube de Leitura dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Organizou e traduziu o livro Sumud em tempos de genocídio da psiquiatra palestina Drª Samah Jabr e traduziu os Diários de Gaza, ambos pela editora Tabla.