
Fatinha do Jongo: “O jongo é uma bandeira de luta do povo preto”
Reconhecida por sua atuação como mestra Griô, ela transmite a cultura do jongo através das suas vivências e saberes.
Fatinha do Jongo luta há mais de 40 anos pela preservação do jongo no Vale do Café, sul do estado do Rio de Janeiro. Nascida e criada na comunidade de Pinheiral, Maria de Fátima da Silveira Santos, de 69 anos, é a matriarca que coordena os movimentos de cultura afro-brasileira da região. Ela é fundadora do Centro de Referências e Estudos Afro do Sul Fluminense (CREASF) e presidente do Coletivo de Comunidades de Jongo e Caxambu do estado do Rio de Janeiro. Reconhecida por sua atuação como mestra Griô, transmite a cultura do jongo através das suas vivências e saberes.
A entrevista com a mestra visa também divulgar o Encontro de Jongueiros, que será realizado entre os dias 14 e 16 de agosto na Praça Tiradentes, no Centro do Rio de Janeiro, em comemoração aos 20 anos de tombamento do Jongo como Patrimônio Nacional Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O evento contará com a participação de 400 jongueiros e seus mestres vindos de 21 comunidades do Rio e São Paulo. Na mesa de abertura, estão previstos pesquisadores, professores e jornalistas, além de autoridades e prefeitos. Também haverá uma mesa com os mestres, oficinas de canto, dança e percussão, exposições, etc. Na tarde de sábado ocorrerá a roda de jongueiros, e na noite anterior uma apresentação junto com a roda de samba do grupo Pede Teresa.
Na conversa com a Mídia Ninja, Fatinha explica as origens e características do Jongo, suas territorialidades e atuais atividades. Fala sobre os desafios de manter essa cultura viva frente às dificuldades de acesso aos recursos, sobretudo no interior do Estado, e ao racismo da sociedade e do poder público. Destaca ainda a importância dos projetos para a renovação geracional dessa manifestação cultural ancestral, e dos encontros para dar visibilidade e aproximar os agentes públicos para a captação de recursos para a manutenção da preservação do jongo.
Como o Jongo entrou na sua vida?

O nosso jongo aqui em Pinheiral (RJ) é bem tradicional, porque herdamos essa manifestação dos negros escravizados na fazenda São José do Pinheiro, no período do Brasil Colônia. Essa tradição vem sendo passada de geração em geração e há mais ou menos 40 anos faço a coordenação de todo o sul do estado, inclusive a capital, trabalhando com o jongo e a preservação da dança.
Foi por conta da família que você herdou isso?
A minha família foi muito cultural e muito consciente do que é ser negro no nosso país. Desde criança convivi com a cultura do lado da minha mãe, o jongo e o moçambique, e do lado do meu pai, jongo, samba e futebol. Desde a infância curtimos a nossa cultura afro, e a minha casa sempre foi de muita música. Até algum tempo atrás, criança não podia dançar, era uma dança de adultos, mas eu e minhas irmãs fomos muito cedo e tivemos uma vida toda no jongo.
Essa parte mais de direção e articulação política vem no final dos anos 80, eu já estava na militância do movimento negro, que era muito forte no sul do Rio e de São Paulo, onde aprendi muita coisa. Fomos entendendo que precisava preservar o nosso jongo em Pinheiral, até por ele ser genuíno, bem tradicional. Então passei a ter certa liderança, a trabalhar com os mais velhos e na divulgação e preservação.
Nossa região é denominada Vale do Café, onde tem um turismo muito forte com a preservação da memória dos barões. E nós entendemos que quem construiu essas fazendas, até hoje preservadas, foi o nosso povo preto. Então trabalhamos a memória do nosso povo, em especial do negro jongueiro. O Vale do Café é formado por Pinheiral, Vassouras, Barra do Piraí, Piraí e Valença, onde tem as comunidades tradicionais jongueiras. Trabalhamos para preservar essa memória do povo preto.
O encontro já envolve mais gente de São Paulo e outros municípios, né?
Dá em torno de 21 comunidades e grupos. Convidamos o povo lá do Noroeste: Campos, Santo Antônio de Pádua, Natividade. Neste ano recebemos um grupo de Bias Fortes, que é uma cidade perto de Juiz de Fora (MG), e também um pessoal do Rio Grande do Sul. Ainda não tivemos o pessoal do Espírito Santo, apesar de todo o estado cantar jongo. Estamos em contato, mas é muito dispendioso.
Fala um pouco do último evento, os desafios em termos de recursos para fazer acontecer. Como vem esse crescimento e a importância dos encontros?
Realizamos o IV Encontro, e desde o primeiro ele já cresceu forte reunindo grupos jongueiros e simpatizantes, pessoas que gostam da cultura do jongo. Você dança jongo o dia inteiro, é muito lindo. Nesses dois últimos foi maravilhoso, porque são reencontros a cada ano, e outras pessoas vêm conhecer. Temos conseguido realizar através de leis que vieram pós-pandemia, como a Aldir Blanc, com editais próprios para fazer essa festa. Nesse ano ganhamos também da Secretaria de Cultura do Estado, além de uma emenda do Pastor Henrique (Psol-RJ), que foi fundamental. Porque as comunidades sobrevivem com muita dificuldade. Precisamos bancar a alimentação, o transporte para que todo mundo chegue bem, a estrutura da festa. Fizemos uma parceria com a prefeitura e correu tudo bem, foi maravilhoso.
Agora vai acontecer no Rio, na Praça Tiradentes, semelhante ao que fizemos aqui. É muito importante estarmos nos espaços públicos, dentro desses aparelhos, porque se não fosse o Jongo com certeza não estaríamos. A gente consegue colocar o nosso povo, principalmente do interior, dentro desses espaços. Como estaríamos lá no Teatro Carlos Gomes? No Museu do Folclore, lá na sala do Iphan? Isso para nós é importantíssimo, então será maravilhoso.
Fala um pouco mais sobre o objetivo desses encontros, a questão da geração de renda e dos outros elementos além da dança?

Primeiro que o Jongo é um patrimônio imaterial do Brasil, e nós jongueiros fazemos a salvaguarda desse bem por nossa conta. É importante ter essa visibilidade, porque precisamos de políticas públicas. O povo dos quilombos precisa de uma educação quilombola, então é o momento de estarmos falando das nossas tradições, saberes e fazeres por nós mesmos. E que as autoridades, pesquisadores, jornalistas, possam nos ouvir e expandir todo esse anseio que trazemos de muitos anos de luta. O objetivo do Encontro é exatamente para ter condições de o bem permanecer vivo. Ele gera renda para as comunidades com o artesanato, que é muito forte. As meninas do quilombo São José, por exemplo, confeccionam umas bonecas na palha de milho lindas com selo e tudo. Tem toda essa questão de chamar para nossas coisas, visitarem nossos territórios, acompanharem o nosso trabalho. A gente tem um viés muito forte com a educação, estamos sempre visitando e recebendo escolas. Tudo para contar a história de luta do nosso povo por nós mesmos.
Esses encontros vêm desde o final dos anos 90. Tiveram início lá no noroeste do Estado do Rio, sob a criação do saudoso professor Hélio e Comunidades de Caxambu. O quarto encontro já aconteceu na Lapa, na cidade do Rio de Janeiro, desde quando passei a fazer parte, inclusive das organizações. Fazemos esse trabalho, muitas das vezes por nossa conta, às vezes sem patrocínio. O movimento cresceu muito e para garantir que os jongueiros cheguem bem, tenham alimentação, que fiquem bem, é muito dispendioso. Precisamos de apoio financeiro para isso, porque as comunidades não têm esses recursos. E está sendo bem bacana essa distribuição, todo mundo participando, curtindo.
Essa programação prevista para a Praça Tiradentes é complementar ao encontro de Pinheiral? Conta melhor o que está sendo pensado?
Nesses dias será a Semana do Patrimônio, e o Jongo está completando 20 anos de reconhecimento: foi o primeiro bem do Estado do Rio a ser considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Iphan. Nós, jongueiros, estamos comemorando muito isso. A intenção é chamar atenção de parcerias, como o Iphan, por exemplo, que registrou o bem, que precisa ser cuidado, assim como o jongueiro. É interessante registrar, mas a gente precisa manter isso. Estamos convidando os prefeitos das cidades que têm comunidade jongueira e os secretários de cultura para que eles possam ouvir os nossos anseios, e que a gente possa melhorar com a atenção, principalmente, dos grupos e comunidades do interior.
Quando você fala em parceria para manter, como é que se dá na prática as necessidades do dia a dia para os projetos dos jongueiros?

Isso é bem difícil, porque o poder público não dá tanta importância para a cultura popular. Então, a gente faz as coisas por nossa conta com muita dificuldade através de eventos, nas comunidades, de festividades. Tem os dias de canto para os santos, a Semana da Consciência Negra, dentre outras programações. Só durante e depois da pandemia que tivemos acesso aos editais, que ajudaram bastante. Procuramos mostrar que esses recursos têm que chegar na ponta, onde o nosso povo preto está. Não tivemos acesso a essas coisas. É preciso que os editais tenham uma linguagem mais simples, a divulgação, o acesso, e as secretarias municipais, principalmente, cadastrem esse povo e orientem como é que se gasta esse recurso. É um trabalho de formiguinha, porque o nosso povo, por tradição ou imposição da sociedade brasileira, não tem acesso a essas coisas, entende? Não tem internet no interior, então é bem difícil e a gente faz isso para chamar a atenção.
Quando você fala na ponta, de que forma esses projetos estão sendo tocados?
De várias maneiras. Tem a questão da formação da geração, por exemplo, com atividades para os jovens. Tivemos editais de audiovisual, porque o jovem, hoje em dia, é mais tecnológico. Tivemos um Pontão de Cultura de jongo, o Caxambu, que durou alguns anos. A gente trabalhava com Rio, São Paulo, Minas e Espírito Santo. Fizemos muitas oficinas para que o jovem aprendesse a lidar com esses equipamentos nas comunidades. Uma vez fomos lá em São Mateus (ES), na divisa com a Bahia, levar uma máquina digital, entende? Chegamos em comunidades que nunca tinham visto um computador. Queremos preparar esse jovem da comunidade. A gente chamava de Jovens Lideranças, para que eles fizessem os registros, um trabalho de formiguinha há anos. Mas, ainda assim, é difícil, porque o nosso povo não tem acesso à internet. Tem pessoas que não sabem lidar nem com o celular. Por isso é preciso um olhar da Secretaria de Estado, por exemplo, e nas prefeituras, para que essa linguagem digital seja mais simplificada e todos possam participar.
Quais são as características que traduzem a identidade do jongo?
O jongo é uma dança. Aqui no sul do estado do Rio tem origem banto e angola, porque veio da África, chegavam por Angra dos Reis ou pela Marambaia. No norte e noroeste eles dançam o caxambu, que é a mesma coisa com uma pequena variação. No Espírito Santo todo se dança jongo e congo, que é a mesma linha do jongo, mas tem uma pequena variação. Minas Gerais também, as comunidades que a gente conhece ali da Zona da Mata, é um jongo meio diferenciado do nosso. Então, depende muito da região, dos negros que habitavam lá.
O jongo é uma dança circular, no nosso trabalhamos com tambores tradicionais feitos no tronco de imbaúba ou na barrica de vinho. São cobertos com couro cru, e tem o candongueiro e o tambor grande, ou o caxabu. E existe um pedaço de pau que é batido no tambor grande e faz o contratempo entre os dois tambores. A batida de jongo não é a de umbanda, nem de samba e candomblé. Tem característica própria do jongo, mais compassada. De certo tempo para cá, muitos grupos foram formados nas cidades, principalmente por estudantes, com uma batida um pouco mais acelerada. Mas o tradicional é bem compassado, e no jongo qualquer pessoa pode dançar e bater no tambor, principalmente as mulheres.
É uma dança muito significativa porque lá atrás, para os negros, era o único momento livre que eles tinham. Era à noite, na frente das senzalas. Se acendia a fogueira e eles dançavam ali para namorar, cantar a saudade da África, cultuar os orixás e armar fugas. Era um momento de comunicação, e hoje considero o jongo como uma bandeira de luta do povo preto porque, através dele, estamos dentro das escolas e universidades. Estamos em espaços que, se não fosse o jongo, não iríamos. Já dançamos no Teatro Municipal no Rio e no Rock in Rio representando a cultura popular do Estado. Fizemos muitas apresentações no nordeste, porque lá não tem jongo, e em outros países. É a cultura do povo preto, o jongo é vivência. Estão vindo coisas escritas sobre o jongo, por conta dos TCCs, a gente até auxilia muitos, mas a nossa história preta é oral passada de avô para os filhos e netos. Hoje vemos a dança do jongo bem divulgada, isso se deu após serem gravados vários CDs, vários documentários e filmes, palestras e apresentações pelas Comunidades e Grupos. Então houve uma expansão e valorização muito boa, e tem o novo também chegando, mas preservamos as nossas raízes.
Quando você fala de luta e resistência, como é isso frente ao racismo estrutural? Quais são os desafios na sociedade?

Um exemplo forte desse racismo estrutural são as prefeituras, que normalmente não valorizam as comunidades jongueiras. Não sei explicar muito bem, mas a gente merece ter muito mais valor. Na maioria das vezes, a gente faz trabalhos voluntários, mantém os projetos a duras penas, a tradição viva, e não temos o verdadeiro reconhecimento das prefeituras. Isso em todas as cidades que têm jongo. Porque é coisa de preto, mas é coisa nossa, é a nossa vida, sabe? É a nossa história e memória. E as pessoas, principalmente os políticos, não têm muito essa visão clara. Isso tem que ser preservado e respeitado. Nos tratam assim, como de preto, mas temos muito orgulho da nossa luta, dos nossos antepassados, do que a gente vem fazendo durante esses anos todos. O racismo é muito forte de várias formas, muito presente em relação a nós jongueiros.
Em que pé está o Centro Cultural nas ruínas da fazenda em Pinheiral?
Está na fase final de licitação. Por ser um projeto federal, foram exigidas muitas coisas técnicas, então estamos trabalhando junto com a prefeitura para sair de acordo com as normas . Em setembro já deve entrar o dinheiro para começar as obras, e já estamos em busca de emendas, de outro Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para angariar recursos. Isso tudo deve demorar alguns anos.
Como somos Ponto de Cultura desde 2005, então temos a Casa do Jongo em Pinheiral e o nosso projeto trabalha a preservação da dança, a culinária e a biblioteca afro, que cuidamos desde os anos 80 com autores e artistas negros, além do nosso material didático construído por nós mesmos para contar a nossa história. Temos também o Museu do Jongo, inclusive vamos lançar o site na Praça Tiradentes, e vários documentários produzidos. A ideia é levar toda essa estrutura: museu, restaurante e aula e estudo. Já damos muitas aulas no espaço do Parque, porque entendemos que é um local de memória, porque a cidade teve origem ali e pelos negros que viveram ali. A proposta é fazer um parque temático, vamos colocar o máximo de coisas que os negros utilizavam no passado. Salve o jongo, salve jongueiras e jongueiros!!