
Comunidade caiçara transforma ‘mês do desgosto’ em festival de jazz sustentável
Encontro acontece aos finais de semana de agosto na Ilha do Mel e terá shows nacionais e internacionais gratuitos.
Por Daniele Agapito
Desembarquei na Ilha do Mel às 11h30 da manhã num sábado ensolarado para o inverno. Calor nada escaldante, ao ponto. Um moletom desses que você veste só por precaução segura qualquer massa de ar mais gelada. Quem nos recebe perto do trapiche é Felipe Andrews — não se engane pelo sobrenome, ele é nativo da ilha e liderança da comunidade caiçara. Felipe me entrega um manual de 35 páginas com protocolos de consulta da comunidade. O objetivo? Difundir a mensagem para qualquer especulador imobiliário ou empresa que cresça o olho e ocupe o território: aqui não. Para que não sufoquem os nativos e nem tentem coagir ou influenciar qualquer tomada de decisão que descaracterize a ilha e seu modo de viver.

O Ilha do Mel Jazz é um festival pensado, gestado e realizado pelo povo tradicional de Nova Brasília. E é pra entender esse movimento, que transformou agosto em alta temporada, que vim parar aqui.
As pousadas estão lotadas. Agosto não é mais o mês do desgosto — palavras de Felipe. O turismo de base comunitária voltou a render. Barcos pra lá e pra cá, filé de tainha na mesa dos restaurantes, hidromel e arroz lambe-lambe para quem quiser. É preciso andar. E muito. Dentro da ilha não entra carro, graças a Deus. Por todos os lados você encontra restinga, manguezais, cheiro de mata atlântica e cachorros contentes. O festival é pet friendly. É tão pet friendly que levei uma rasante de um papagaio-de-cara-roxa no caminho até o circuito Jazz Agosto. Ele não tem medo de gente.

Perambulei muito pela areia fofa e encontrei música ao vivo e gente cantando em vários pontos da ilha. Mas foi ali no trapiche que a ideia entrou em ebulição. O jazz, ritmo das diásporas africanas na América do Norte, parece distante, mas aqui faz parte da playlist caiçara. O curioso é que não existe nenhum purismo: artistas misturam jazz com reggae, fandango, samba, MPB, chorinho e bossa nova instrumental.
Ao fim da tarde, depois de assar as batatas da perna subindo 150 degraus até o Farol das Conchas (construído por ordem do Imperador Dom Pedro II em 1870), volto para o trapiche. A qualidade dos artistas é inquestionável. Fernando Lobo, músico caiçara, de cara lança uma Rabeca Overdrive e pisa forte os tamancos no palco. Claramente influenciado pela mistura de ritmos do Manguebeat pernambucano.
Às 17h, com a maré baixinha, caminhei até a beira da praia para assistir à descida do sol que parecia uma bola de fogo mergulhada na linha do horizonte.
Ouço ao longe o som do saxofone de Derico, músico que mantém seu icônico mullet na região occipital do crânio. E que ficou nacionalmente conhecido por integrar o sexteto do Programa do Jô madrugada adentro na TV aberta. Chego mais perto. Ele toca olhando no olho. Tem muita presença de palco. E do nada manda umas falas muito sagazes:
-“Vou tocar a música de um artista que passou a vida inteira dedicado a morrer. Tanto, que conseguiu.”
E aí solta um hit atrás do outro do Tim Maia. A noite terminou com todo mundo cantando junto: Primavera, Azul da Cor do Mar, Você…
O festival acontece às sextas, sábados e domingos durante todo o mês de agosto.
Nota: 10 de 10.