
Entre memória, afeto e resistência: o cinema premiado no Grande Otelo 2025
Produções reconhecidas pela Academia constroem retratos profundos de um país em constante reinvenção
Por Juliana Gomes
Na noite do dia 30 de julho de 2025, a Cidade das Artes Bibi Ferreira, no Rio de Janeiro, se iluminou não só com holofotes, mas com a força simbólica de um cinema que persiste, provoca e emociona. A 24ª edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – Grande Otelo, promovida pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, não foi apenas uma premiação: foi um retrato vivo da potência do audiovisual brasileiro hoje.
Este artigo é mais do que uma cobertura — é um convite à reflexão sobre os filmes e séries que, além de premiados, dizem muito sobre o que estamos vivendo como país e como criadores de cultura.
“Ainda Estou Aqui”: resistência e memória
Com 13 vitórias, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, foi o grande destaque da noite — e com razão. O filme resgata a história de Rubens Paiva, deputado desaparecido durante a ditadura, pelo olhar da filha, Eunice Paiva. Mas mais do que um drama político, a obra é sobre ausência, luto, legado. Um país que não faz as pazes com o próprio passado continua sendo um país ferido.
Selton Mello, premiado como Melhor Ator, emocionou ao dizer que “emprestou o corpo” a Rubens. Fernanda Torres, vencedora como Melhor Atriz, entregou uma atuação contida e visceral — um retrato sutil da força feminina diante do horror.
Além dos prêmios principais, o longa venceu em quase todas as categorias técnicas: Fotografia, Direção de Arte, Trilha Sonora (Warren Ellis), Montagem, Figurino, Maquiagem, Som e Efeitos Visuais. É um filme que une sofisticação estética e urgência política. Já está disponível no Globoplay.
“Malu”: uma estreia que pulsa identidade
Vencedor de Melhor Primeira Direção, Melhor Roteiro Original e Melhor Atriz Coadjuvante (Juliana Carneiro da Cunha), o longa de estreia de Pedro Freire é uma joia autoral. Malu acompanha uma jovem em conflito com a mãe, com o corpo e com o tempo. É uma obra sobre recomeços e as rachaduras que nos atravessam quando somos obrigados a mudar.
Juliana Carneiro da Cunha, como Dona Lili, entrega uma performance delicada e feroz, reafirmando a importância das atrizes mais velhas em papéis centrais.
Ainda em exibição em festivais e cinemas, Malu é o tipo de filme que se espalha no imaginário de quem vê.
“3 Obás de Xangô”: documentar é também afirmar
O vencedor de Melhor Documentário, dirigido por Sérgio Machado, mergulha nos rituais e saberes de três grandes líderes do candomblé. É um filme que, antes de tudo, escuta — com tempo, com respeito, com beleza. Em tempos de violência religiosa e apagamento de histórias negras, 3 Obás de Xangô é mais do que necessário — é reparador.
A obra transforma a oralidade em potência narrativa e estética. Um gesto cinematográfico de escuta e reverência.
“Chico Bento e a Goiabeira Maravilhosa”: afeto em forma de filme
O filme de Fernando Fraiha foi premiado como Melhor Longa Infantil no Grande Otelo 2025, ganhando o coração do público com uma adaptação sensível do universo de Mauricio de Sousa. A narrativa traz o Brasil rural com poesia, humor e muito carinho — onde a natureza é personagem, a amizade é ação, e a infância tem cheiro de terra e tempo.
O protagonista Chico Bento é interpretado pelo jovem Isaac Amendoim, influenciador mirim de Minas Gerais, que encarna o personagem com espontaneidade e autenticidade, recebendo elogios da imprensa e da crítica por captar o coração da Vila Abobrinha.
“Baby”: afeto queer e reconhecimento merecido
Entre os prêmios mais simbólicos da noite, Ricardo Teodoro, ator mineiro de Governador Valadares, venceu como Melhor Ator Coadjuvante em Longa-Metragem pelo papel de Ronaldo no filme Baby. Um feito histórico e profundamente significativo.
Dirigido por Marcelo Caetano, Baby é uma obra delicada e provocadora que retrata o universo afetivo de um jovem queer na periferia urbana. Sem caricaturas ou moralismos, o filme mergulha na intimidade de seus personagens com sensibilidade rara, tratando desejo, cuidado e pertencimento como forças centrais.
Ricardo Teodoro entrega uma atuação firme, generosa e cheia de humanidade — e sua vitória representa o reconhecimento de uma camada do cinema brasileiro que há tempos precisava ocupar o centro da cena.
Baby ainda circula por festivais e mostras, mas já é comentado como um dos filmes mais corajosos e necessários da nova geração do cinema brasileiro.
“Arca de Noé”: poesia em movimento
Inspirado na obra de Vinicius de Moraes, o longa animado venceu como Melhor Longa de Animação. Com direção de Sérgio Machado e Alois Di Leo, o filme é uma ode à delicadeza. Uma narrativa visual que fala com crianças e adultos — sem subestimar nenhum dos dois.
É raro ver animações brasileiras apostando na sutileza em vez do barulho. E esse é justamente o maior mérito de Arca de Noé.
Séries que deixaram sua marca
Senna, produção da Netflix, venceu como Melhor Série de Ficção. Gabriel Leone, que interpreta o piloto, também foi premiado como Melhor Ator de Série. A série impressiona pela produção internacional e por colocar uma figura mítica sob nova lente.
Falas Negras – 4ª temporada, vencedora de Melhor Série Documental, continua sendo uma das produções mais importantes da TV brasileira. A cada temporada, traz de volta ao presente vozes negras silenciadas pela história. É mais do que série — é política pública audiovisual.
Reflexões para além da estatueta
A ditadura e o direito à memória: Ainda Estou Aqui é um acerto de contas com o silêncio institucional.
A juventude e o desejo de ruptura: Malu aponta para um novo cinema de corpos livres.
A fé como identidade e resistência: 3 Obás de Xangô mostra que espiritualidade é parte do nosso cinema.
A infância como território de afeto: Chico Bento e Arca de Noé não subestimam a sensibilidade dos pequenos.
Conclusão: por que esse prêmio importa
O Grande Otelo não é só um termômetro — é uma vitrine de urgência e excelência. Esta edição premiou obras que não se contentam com entretenimento vazio. Elas propõem conversa, resgate, enfrentamento. E, acima de tudo, uma imagem de Brasil feita por brasileiros, para brasileiros — e para o mundo.
Que esses filmes circulem, sejam assistidos, debatidos e amados. Porque enquanto houver cinema contando nossas histórias com verdade, há futuro.