Entre o dito e o não dito: a nova tática do reacionarismo de Damares Alves
À primeira vista, o discurso de voz mansa pode até enganar, mas a verdade é que apesar de ser bonito, cheira à farsa.
Viralizou, recentemente, um vídeo em que Damares Alves (sim, ela mesma, a ex-Ministra da Família do governo Bolsonaro. Aquela da goiabeira) diz que apoia cotas para pessoas trans. À primeira vista, o discurso de voz mansa pode até enganar, mas a verdade é que apesar de ser bonito, cheira à farsa.
Damares, que agora é senadora, também foi assessora de Magno Malta, aliado de primeira ordem de Bolsonaro e conhecidamente transfóbico. Seu currículo abriu espaço para que se tornasse um ícone da cruzada anti-gênero no Brasil, mas agora tenta reescrever sua biografia com frases doces, sorrisos treinados e uma suposta “identificação”, empatia, com travestis. Mas para cada nova frase simpática, há um rastro de ações, omissões e destruições que dizem o contrário — e gritam.
A política da tutela e da marginalização disfarçada de afeto: Damares comandou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019 e 2022. E o que ela fez por pessoas LGBTI+ nesse período? Nada.
- Em 2020, 2021 e 2022, zero reais foram investidos em políticas públicas LGBTI+. Zero.
- Em 2019, ainda sob restos de contratos anteriores, foram usados apenas R$ 14 mil, o que representava apenas 14% do previsto no orçamento que já estava disponível para o uso.
- Em 2022, as ações para a população LGBTI+ sequer foram previstas no orçamento.
Fala bonito agora. Mas quando pôde agir, extinguiu o Conselho Nacional LGBTI (Decreto 9.883/2019), acabou com a Secretaria de Direitos LGBT (Decreto 10.174/2019), rebaixou estruturas, cortou verba e apagou institucionalmente qualquer menção à população trans do organograma de direitos humanos no Brasil.
A Senadora Damares, desde que era Ministra, se diz contra a “politização” e “ideologização” das pautas LGBTI+. Mas o que ela realmente faz é o oposto: usa a própria moral, sua ideologia e sua religião para tutelar direitos, silenciar sujeitos e definir quem merece existir com dignidade, sobre as regras de quem.
Ela diz rejeitar a politização, quando ela própria é quem faz, vamos nomear corretamente, o que acusa: politicagem — ela instrumentaliza a política, que é a maneira de disputa do projeto de país, para o conservadorismo moral mais brutal, chamando isso de “proteção da família”. E chama de ideologia tudo o que ameaça a sua hegemonia, que ela defende, que vem perpetuando a exclusão de pessoas como nós dos direitos mais básicos. Como se direitos humanos fossem favores e não garantias.
Mas aqui a gente sabe diferenciar, desenhar, pra nunca mais deixar ninguém cair na confusão e na despolitização proposital que os 50 tons de políticos de direita insistem em usar pra evitar qualquer avanço mais profundo no debate e nas políticas públicas no Brasil.
Política é disputa de projeto de país, é garantia de existência, é orçamento, é estrutura.
Politização é o processo de tornar alguém ou grupo capaz de reconhecer a importância do pensamento ou da ação política.
Ideologia é o conjunto de ideias que orienta cada projeto. E todos têm uma. Inclusive ela.
Politicagem é o que ela faz agora: usa a dor da população trans como biombo pra limpar sua imagem, sem rever seus atos passados e presentes.
O que ela fez mesmo? Vamos recapitular, Damares:
- Recebeu grupos que defendem “cura gay” como o Movimento Ex-Gays do Brasil, dentro do seu gabinete ministerial.
- Atacou o STF por equiparar LGBTfobia ao crime de racismo.
- Chamou mulheres trans de “mulheres-piratas” em evento evangélico.
- Censurou o uso de termos como “identidade de gênero” e “expressão de gênero” em tratados internacionais.
- Boicotou a política externa pró-direitos em reuniões do Mercosul e da ONU.
- Rebaixou e desmobilizou todas as estruturas existentes para a promoção da cidadania LGBTI+ no governo federal.
- Classificou pesquisas acadêmicas sobre sexualidade e diversidade como “imorais”, dizendo que seu objetivo era sepultar essas linhas e criar uma nova geração de intelectuais conservadores.
- Foi até a Hungria, um dos países que mais avançam em políticas contra LGBTQIA+, reforçar o posicionamento “pró-família” do Brasil de Bolsonaro.
Ela não apenas se omitiu: ela trabalhou ativamente contra a nossa existência.
O jogo de Damares é outro: é rebranding político, lavagem de imagem, oportunismo eleitoral de uma pessoa que passou mais de 20 anos assessorando diretamente a disputa política anti-direitos LGBTs, de mulheres, indígenas e quilombolas no Congresso Nacional. Que teria empregado em seu Ministério acusados de participar da tentativa de explosão à bomba no aeroporto de Brasília, em 24 de Dezembro de 2022. Que lutou contra a garfantia do aborto legal para mulheres e meninas vítimas de violência sexual. Esses são os Direitos Humanos de Damares Alves. Essa é a sua ação concreta em prol das famílias.
Agora que a maré mudou, que a extrema-direita precisa parecer palatável, principalmente depois da traição e vexame internacional que seus amigos e aliados fizeram, ela surge dizendo que “se identifica com travestis”. E que supostamente favorável a cotas para trans. Uma pena que diante de “tanta identificação”, um Ministério e a atual presidência da Comissão de Direitos Humanos do Senado, não tenha feito nada sobre o assunto. Cortina de fumaça. É a política que ela nega que transforma marginalização em dignidade. E é isso que ela sempre combateu.
O movimento por cotas para transexuais e travestis, por direitos iguais, casamento, saúde, educação, assistência da comunidade LGBTQIA+ avançaram no Brasil, lentamente, à revelia do Congresso Nacional e da direita fundamentalista que Damares faz parte e ajudou a construir nos últimos 20 anos. É feita pelos movimentos sociais, pelas organizações da sociedade civil, e por uma nova geração de representantes políticos que conseguiram furar todos os bloqueios e entrar na política institucional só agora, sem mediadores e tutelas. Os projetos por cotas trans nas universidades e nos serviços públicos são propostos e defendidos por nós, parlamentares LGBTI+. Pelo campo progressista.
Damares quer parecer moderada sem abrir mão de nada, sem mexer uma palha. Quer a pauta sem o povo. Quer travestis no seu discurso, mas fora do orçamento, das leis, das prioridades. Ela quer nos manter no lugar de assistidas, curadas, convertidas, domadas — nunca sujeitos de direitos, de políticas públicas estruturantes, de Estado.
Não se engane: o nome disso é estratégia. É a tentativa de converter transfobia em caridade, e o conservadorismo excludente em “preocupação social”. Mas aqui a gente não esquece: quem teve poder e não usou, ou usou para retrocesso, já escolheu o lado em que está. E caso a senadora realmente queira ajudar a aprovar uma política nacional de inclusão, dignidade, respeito, reserva de vagas, educação, trabalho para nossa comunidade, ela será bem vinda. Nossos projetos estão protocolados, tramitando, mas sendo barrados por políticos fundamentalistas, como vários do seu próprio partido.
Nesse momento, palavras soltas ao vento não valem nada.