Por Kaio Phelipe

Milton Cunha revisita sua trajetória e relembra como foi crescer como uma criança afeminada no Pará dos anos 1960, em um ambiente profundamente hostil à diferença, e como encontrou no Carnaval e em Ney Matogrosso o vislumbre de um mundo possível, onde autenticidade e liberdade fossem aceitas. Milton fala ainda da coragem de não se dobrar à normatividade, da escolha de partir para o Rio de Janeiro com apenas cem reais no bolso, e da aposta radical em si mesmo como forma de sobrevivência e afirmação.

Hoje, além de ser uma das figuras mais amadas da televisão brasileira e comentarista do Carnaval na Rede Globo, Milton Cunha cursa seu segundo pós-doutorado, agora no Fórum de Ciência e Cultura do Museu Nacional da UFRJ, com a pesquisa Boi de Parintins: estrutura narrativa como patrimônio cultural dos povos da floresta amazônica. Ao entrelaçar memórias pessoais, crítica social e celebração da cultura popular, ele reafirma que sua história não é apenas sobre triunfo individual, mas sobre coletividade, reparação, direito à plenitude e a uma vida íntegra, potente e vibrante.

Como era ser uma criança afeminada no Pará durante a década de 1960?

A criança afeminada em um contexto muito heteronormativo é a vergonha, o escárnio. E como ser afeminado é algo natural, orgânico, essa criança se comporta de forma espontânea e não sabe o motivo por esse comportamento natural despertar comentários que ela não alcança o significado, inclusive por falta de repertório. Então a criança afeminada vai catando as frases e vai montando o painel dela. “Não gostam de mim, eu não ajo como eles gostariam e eu não sei agir de outra forma, não consigo ser outro”. É uma situação insolúvel. A única coisa que propõem é que você mude e vire outra coisa. E muitos viram. No sentido de que se controlam, entram no armário, são pessoas justinhas, apertadinhas, com o braço apertado e tal. E ao abrir mão da exuberância, do comportamento natural, elas estão negociando uma parte gigante de quem são. E elas sabem que os outros gostam dessa outra coisa, que não é ela. Mas ela também sabe que agora é aceita, justamente por não ser quem é. Esse repertório do mundo dos adultos é cruel, violento e é posto como a única via para a aceitação. 

Para mim, com pais e irmãos trabalhadores de oficinas mecânicas, loja de automóveis, tintas, peças de carro, desse universo da graxa e do macacão, eu ficava olhando e dizendo “fodeu, porque eu não vou mudar”, “fodeu, eu vou enfrentar, vou partir pra luta”. E aí você apanha, você se levanta, você apanha de novo e se levanta de novo. Você vai vivendo com o seu jeito. E muitos dos que te condenam te procuram escondidos. Porque eles eram iguais a você, viraram outra coisa, mas não controlam a hipocrisia, que é um bom padrão para eles. É melhor ser hipócrita e fazer escondido do que ser e assumir. 

Ser uma criança viada em um meio heteronormativo é um exercício diário de sobrevivência. 

O que Ney Matogrosso significa para você?

Em 1972 ou 1973, quando eu tinha dez ou onze anos, fui assistir ao concurso de Miss Pará e a atração era Secos & Molhados. Eu estava fascinado pelas misses, pelos vestidos, pela maquiagem. Mas quando a luz apagou e Ney Matogrosso surgiu na iluminação foi a revelação de um mundo possível, que me interessava mais, que eu queria estar, viver, ser. Ney era único. Ney era um ser humano original. Eu via um mundo de seres humanos com características próprias. Eu disse pra mim mesmo “eu tenho características próprias, eu não me encaixo no padrão”. Se Ney Matogrosso podia, eu poderia também. Ney rebolava e naquela época homem não rebolava, quadril de homem era tenso. Ney se maquiava e naquela época maquiagem era coisa de mulher. Ney era sexy, com peito de fora, algo que não se esperava. Ney era o respiro em um mundo extremamente fingidor. Ney não fingia. 

É engraçado como uma pessoa muito diferente pode ser acusada de estar fingindo, porque é tão diferente a ponto de ser fingidor. Mas Ney é o contrário. Ney é autêntico, enquanto os outros estão cumprindo por tabela.

Quando decidiu sair do Pará e morar no Rio de Janeiro?

Eu estudei muito. Tinha muita pressa de que a educação me desse o diploma universitário para eu poder partir. Eu só queria ir embora com diploma. Então, com dezenove anos, em junho de 1982, com diploma de psicologia, eu parto para o Rio de Janeiro, com cem reais no bolso.

Meu pai dizia “eu não vou te ajudar” e eu respondia “eu não estou pedindo a sua ajuda, eu estou apenas te comunicando que estou indo embora”. E eu assim, tão corajoso, tão ingênuo, tão decidido a construir a minha vida, que a possibilidade de passar fome, o perrengue, o que de fato aconteceu em 1983 e 1984 – uma época dificílima –, era melhor passar por isso do que ficar lá e ser o que eles queriam.

E aí meu irmão disse “todo mundo que vai volta”, eu disse “eu não sou todo mundo, eu sou único e eu vou conseguir”.

Não tinha a possibilidade de voltar, não tinha. Seria a morte. Voltar e me submeter ao que eles queriam seria a mesma coisa que parar de respirar. O único jeito de ser feliz era indo embora e começar do zero em uma cidade grande, que tinha o entretenimento, muitos restaurantes, muitas boates. E era um começo de vida, de carreira, de salário. Lavar prato, ser porteiro, varrer. Era trabalhar em um dia pra poder comer no dia seguinte. E quando você é muito jovem, você tem essa disposição física e tem essa pegada de “calma, que eu ainda tenho tempo de fazer o pé de meia”, então vamos agora nos submeter ao que der e depois eu vou encontrar meios de estudar mais, ganhar mais e fazer a minha vida.

“Não é sobre o meu triunfo, é sobre de que forma a gente vai continuar exigindo que nos respeitem e que deem a nós o direito ao sonho”, afirma Milton Cunha

Quando começou sua ligação com o Carnaval? 

Nos primeiros anos de Rio de Janeiro, fui trabalhar pro Chico Recarey, que era o rei da noite. Era um período de um Rio de Janeiro muito efervescente. Tinha Eloína dos Leopardos, tinha Rock in Rio com George Michael, tinha Madonna. Era um período que não se dormia, a violência não era tanta, os perigos não eram tantos.

Hoje, eu olho pra Copacabana e vejo que ela morreu, em comparação ao que era em 1985, 1986, 1987. Era incrível.

Nessa época, eu estava morando com a Fabíola de Andrade, que hoje é esposa do Anísio Abraão e mãe do Gabriel David. A família dela meio que me adotou, os irmãos dela Alessandra e Sávio, a mãe dela Graça, o Vicente. Eles me adotaram e eu fiquei lá e tal. Eu fazia a apresentação e produção do concurso Garota de Ipanema, e a Fabíola lindíssima era uma das candidatas. O Anísio foi patrocinador e jurado, isso em 1988 ou 1989, e depois eles se casaram.

Anos depois, quando eu era dono de confecção, em 1992 para 1993, ajudei a Beija-flor a terminar uma ala de passistas. E aí eles me convidaram pra ser carnavalesco. Eu apresento no concurso os meus desenhos de Margareth Mee, A Dama das Bromélias.

Eu queria ser diretor de teatro, ópera, balé. Eu queria ser artista. Mas quando cheguei ao Rio de Janeiro vi a possibilidade daquela linguagem cênica e dramática, que são os desfiles das escolas de samba. Eu vi que aquilo é teatro, aquilo é ópera, balé, circo. E virou uma possibilidade real. Dormi psicólogo e produtor de moda, e acordei carnavalesco da Beija-flor.

Isso foi em 1993, dez anos depois de eu ter chegado ao Rio de Janeiro. Em dez anos eu construí o caminho pra abrir essa porta de identidades.

Escola de samba é desfile de inteligência negra e periférica?

A cultura popular é uma resposta das populações humildes para o abandono, para o apartheid. Você não tem dinheiro pra ir ao Centro, na elite, então você não vai participar das coisas.

Então, se precisa de possibilidade para existir, eles batucam, eles dançam, acessam a ancestralidade deles. E eles então moldam algo que eles sabem, que é tocar, dançar, cantar, fazer. E aí temos os maracatus, os frevos, os bois, as congadas, os reisados. Isso é próprio deles. Isso é atávico da alma deles. E isso precisa ser expressado.

Ora, como vai se expressar? Através de eventos nas comunidades deles, nas periferias deles. Isso é uma forma de ter os laços de afeto estabelecidos naquele maracatu, naquela folia de reis, naquele boi pintadinho. Ali, eles casam, namoram, brigam, se amam. Um embolsa a casa do outro, um bate a laje do outro. E nisso eles também vão se expressando enquanto arte, enquanto compositores, enquanto ritmistas e tal.

Ora, se você tem uma população negra empurrada pelo Pereira Passos, na reforma do Centro da cidade, se você tem essa periferia esmigalhada, abandonada a própria sorte, por uma abolição da escravatura e uma proclamação da república, que não era pra eles, eles comeriam as sobras disso. Nesses guetos, como Pequena África, Livramento, Estácio de Sá, Mangueira, Madureira, você tem esses núcleos de batuques de pequenos blocos que estão juntos e fazem virar a roda de samba.

Então é esse povo periférico, negro, humilde, que vai se juntar em grêmios recreativos de escolas de samba. E quando eles descem para a Praça Onze pra ocupar o mais próximo que podem dos ricos, que é a Avenida Central do Pereira Passos, vão até a Praça Onze pra rodar e cantar. É por uma necessidade de expressão, de alegria, de festejo. E também para mostrar aos outros, para a vizinhança. E também vão para brigar e atacar as outras agremiações.

Eles estavam ali estruturando a linguagem dramática e narrativa da escola de samba. “Vamos cantar uma mesma música”, “vamos criar um enredo”, “tem que ter baiana”. Tudo é construído ao longo de cinquenta anos. Você vai de 1928, 1929, 1930 e vai até 1970 estruturando. Entra isso, sai aquilo, isso não pode, isso pode.

Então essa população é de tal forma misteriosa, potente, que quando ela sobre os tambores do samba, a elite e a voz hegemônica se calam diante do talento. E aí eles seduzem a cidade, que passa a querer ser isso. A cidade entende isso como a sua perfeita tradução. E a partir dos anos 1980 a sociedade do espetáculo encontra o sambódromo, a espetacularização dos festejos populares comunitários.

Eles criaram, eles sabem fazer, é deles. E a eles deve ser tributado e festejado. Porque se não vão dizer que foram os outros que fizeram. É preciso bater nessa tecla, é preciso não invisibilizar. É preciso dizer que isso é o talento deles, eles é quem sabem. Todos nós, forasteiros, a nós resta a plateia, o aplauso para eles, a pesquisa. Então o lugar de fala é da negritude periférica e de todo pessoal da comunidade. E é tudo muito sofisticado e complexo.

A estrutura narrativa da escola de samba é algo que eu tenho estudado ao longo dos últimos trinta anos e muito me seduz. Eu sempre começo com essa declaração de marco fundador. São eles, é a necessidade deles de botar pra fora o espírito artístico.

Qual é a importância do Carnaval para a comunidade LGBTQIAPN+?

A comunidade LGBTQIAPN+ é artística. Grande parte da comunidade encontra nas profissões de arte a saída.

A esse gay que é pra fora, desmunheca, é pintosa, que é cabeleireiro, que é maquiador, que é bailarino, que é todos os estereótipos do início do século XX para os gays, essa galera quando bate o olho no samba, na quadra de samba e percebe que essas populações também são muito discriminadas. Então você imediatamente se identifica, porque você é muito apontado, você é muito discriminado e há ali uma solidarização entre a homofobia e o racismo, o antirracismo e a anti-homofobia. É como se a comunidade LGBTQIAPN+ encontrasse seus pares para luta.

Então tem uma liberdade, uma democracia, uma possibilidade de que tudo cabe naquele guarda-chuva da escola de samba, que muito seduz a gente. E a gente carnavaliza a vida, a gente se enfeita, a gente brinca, isso é carnavalização do existir.

Como foi conhecer Joãosinho Trinta e Clóvis Bornay?

O Joãosinho era a estrela absoluta do carnaval brasileiro e participante ativo das opiniões sobre política, sobre vida brasileira. O João era ícone, muito forte, muito grande.

Quando eu era menino, eu olhava e pensava “nossa, que criador interessante, que homem atacado, que homem sempre com uma opinião bombástica”. Quando eu vejo Ratos e Urubus, em 1989, eu digo “eita”. João era gigante.

E aí ele sai da Beija-flor em 1992 e a Maria Augusta pega. Em 1993 para 1994, Joãosinho está na Europa, tirando um ano sabático. Em 1994, eu fiquei em quinto lugar com a Beija-flor, com Margareth Mee. Ele volta da Europa e o Monassa, da Viradouro, contrata ele. Nossos barracões eram lado a lado. E aí eu ia lá no barracão dele. Eu ia lá bater na porta dele, conversar com ele. Mas ele não me dava tanta bola como a carnavalesca do prédio seguinte. Era a Beija-flor, a Viradouro e a Imperatriz, com a Rosa Magalhães.

Eu me identificava muito mais com a Rosa, eu conversava muito com a Rosa. O João ele escapulia, ele tinha uns transtornos, muita ideia, muito pensamento. E eu olhava e dizia “Nossa Senhora”. Eu queria ser a Rosa, não queria ser João.

Quando veio a isquemia do João, a cadeira de roda, ele deu aquela pausa e eu chego muito perto dele. É aí que converso bastante, que eu digo pra ele “João, vou estudar os seus enredos no meu mestrado e no meu doutorado”. Aí ele vai no lançamento do meu livro e tal. Mas foi a percepção do fim, da finitude, que fez ele olhar, escutar. Mas ele era uma estrela, assediada, cheia de jornalistas em cima. Me colocando no lugar dele, devia ser bastante difícil o assédio.

O Bornay era o delicado, o filigrana de ouro, o chique. E não era por dinheiro, era chique por formação. Muito estudado, museólogo, morava num kitnet na Prado Junior, em Copacabana. E ele era o professor, o mestre, refinado e tal.

A barba de purpurina dele durante os concursos, para mim, era avassaladora. Eu queria usar aquilo. Inclusive tem um momento que meu pai me dá um tapa na cara, porque eu estou tão hipnotizado pelo Clóvis correndo na pontinha do pé no concurso do Glória. Meu pai vê que eu vou me transformar naquilo e me dá um tapão. 

O Clóvis, em 1990, já não faz mais as roupas. Aí ele meio que tinha feito Portela, tinha desfilado em vários lugares, aí meio que ele cola em mim e eu levo ele na União da Ilha do Governador, em 1998. E ele desfila. Era muito agradável.

E é engraçado porque nem o Joãosinho nem o Clóvis se assumiram publicamente como alguém da comunidade LGBTQIAPN+. Nem Clóvis, nem João. Se eram – e eram – não traziam isso na frente.

O João era bem complicado em relação a sexualidade dele, era uma coisa super no armário, porque os enfermeiros eram homens lindos, e eram os enfermeiros, mas todo mundo sabia que eram os namorados, mas eram os enfermeiros, os acompanhantes, os sobrinhos.

Dois gênios, dois ícones.

A criança que você foi está feliz com a sua trajetória?

Você sabe que, quando eu criança, perguntavam “o que você vai ser quando crescer?”, eu respondia “feliz”. “Eu quero ser feliz. Posso ser psicólogo, posso ser artista, posso ser qualquer coisa, mas eu quero ser feliz”. Então a felicidade foi um pressuposto. Existir, ser eu, ser Milton, fazer o que quer, na hora que quer, como quer, vestir o que quer, ser isso significava ser feliz.

Então eu estava certo. Eu estava certo de que cada ser humano é um show de unicidade. Nós somos realmente potentes. A somatória das nossas qualidades e defeitos nos fazem tão individuais. É uma delícia ver as pessoas, sobretudo as pessoas que sabem quem são, se pensam, se conversam. Então eu estava certo de que eu e os demais nós tínhamos que correr atrás dessa chama, dessa varinha de condão.

Eu sabia que alguns felizes iam para o artístico, fama, sucesso, televisão, teatro, cinema. E eu sabia que muitos felizes iriam para escritórios ou outras profissões, mas que se conheciam. Eu queria o grande centro artístico, uma cidade muito maior que me oferecesse possibilidade de carreira. E aí a criança, já jovem, se impõe e me faz dar o passo decisivo.

Hoje, a criança volta com muita frequência. Hoje, eu choro mais com ela. Eu e ela agora estamos nessa fase. Eu tenho muitas fases com essa criança. Ela volta com os meus quarenta, cinquenta anos, para ver o apartamento que eu comprei. Ela vem me visitar para ver o meu triunfo econômico. Já pelos sessenta, ela começa a chegar “nossa, tá grande, tão te chamando pras coisas e tal”.

E pós-pandemia é chororô. A pandemia, para mim, foi um baque, um adeus às ilusões, adeus a um tipo de corpo, de vida. A pandemia me transforma em um senhor. E esse senhor chora bastante com a criança, porque agora que estou voltando aos lugares onde eu cresci, acho que a conexão da criança de seis anos e do homem de sessenta e três, como se o meio não tivesse existido, eu e a criança apagamos o período que separa esse homem do Junior, que eu chamo a criança de Junior – que é como todo mundo chamava criança até o início dos anos 1980 –, então eu e a criança conectamos a aldeia. Como é uma história de redenção, a questão LGBTQIAPN+ me coloca no dilema “a minha história é bonitinha”. Mas eu não estou aqui pela minha história. Eu estou aqui pelos que não conseguiram, pelos que morreram, foram assassinados, pelos que tiveram que abrir mão de tudo, pelos que enlouqueceram. Eu sou branco e as bichas negras que tem tanto talento como eu, mas tem a cor de pele diferente, então, ok, a minha vida deu certo. Mas não é a minha vida que está em questão. Eu estou colocando aqui porque eu poderia não ter dado certo. Eu poderia ter dado com os burros n’água. Então não é sobre o meu triunfo, é sobre de que forma a gente vai continuar exigindo que nos respeitem e que deem a nós o direito ao sonho e a possibilidade de ser a nossa potência, a nossa plenitude.

Lá no começo da entrevista, quando eu falo de existir, que existir é potência, é a potência de que você vai fazer o melhor que você pode de você mesmo. E para isso os adultos vão ter que permitir que você se conheça e saber qual é a sua praia. Então que as potencias existam!