O feminismo negro entende que não nascemos negras, mas nos tornamos. Colocar seu corpo à disposição da luta política, além de uma construção, é, muitas vezes, uma necessidade, está diretamente relacionado à sua identidade enquanto mulher, enquanto mulher negra e que lugar se quer ocupar no mundo, para além daquele a que a nós foi reservado. Seguir com espaços de poder e decisão sem a presença de mulheres, é estar em um mundo que não existe, ou pelo menos não deveria existir. O debate sobre mais mulheres e mais mulheres negras nos espaços de poder não é tão somente uma questão de figuração, mas uma necessidade democrática.

Recentemente comemoramos a entrada da, agora imortal, Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras (ABL), primeira mulher negra a integrar o corpo de escritores e escritoras desde a sua fundação, 128 anos atrás. Ana Maria dedicou cinco anos da sua vida pesquisando e reconstruindo a vida de Kehinde, mulher negra escravizada em Salvador no século XIX, trazida da Costa da Mina, na África. Em terras baianas ela recebeu o nome de Luísa Mahin, figura de destaque na Revolta dos Malês e na luta abolicionista, além de ser a mãe do patrono da abolição da escravatura, Luiz Gama. “Um Defeito de Cor” é sem dúvidas uma das maiores obras escritas em nosso país. Seu livro aborda as entranhas da escravização, a nossa ancestralidade, o racismo e a resistência produzida por homens e sobretudo, mulheres negras.

Contudo, apesar da merecida comemoração e justa exaltação desta grande escritora, não podemos esquecer que enquanto mulher negra, ela segue sozinha neste lugar tão desejado pela mais alta intelectualidade brasileira e que não raro é conivente com o epistemicídio. Em 2009 Sueli Carneiro, mais uma de nossas grandes intelectuais negras, disse que a relação entre mulheres negras e poder se caracteriza como um “ensaio sobre a ausência”. Em 2025 ainda é possível falar da nossa ausência em espaços de decisão, de poder e por que não dizer, da intelectualidade. Pra mim, mulher negra ocupando o espaço do parlamento vejo como racismo faz parte de uma estrutura gestada no seio da sociedade, não se tratando de algo isolado e individual, mas um sintoma de uma estrutura de poder.

Marielle Franco dizia que “ser mulher negra é resistir e sobreviver o tempo todo”. Nós mulheres negras estamos na base da pirâmide. Salários menores, sub-empregos, vulnerabilidades, violência, sobrecargas. Somos chefes de famílias, intelectuais, lideranças comunitárias e precisamos reivindicar diariamente nossa humanização. Para nós mulheres negras a intersecção do racismo, machismo e exploração nos atravessa também no lugar da invisibilidade. A luta para que possamos ocupar os espaços de protagonismo e de poder vem da necessidade de reparação de todo o processo de construção histórico e social de uma sociedade que não nos percebe enquanto mulher. 

Se voltamos nossos olhares para o espaço do parlamento, também reconhecemos a nossa quase absoluta ausência. Nas recentes eleições municipais de 2024, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, foram registradas 74.355 candidaturas de mulheres não negras e 80.645 de mulheres negras.De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), em comparação com o ano de 2020, tivemos um aumento de 2,2% no número de mulheres eleitas em 2024. Das mais de 80 mil candidatas negras, apenas 7,19% foram eleitas. 1 em cada 10 candidatas brancas foram eleitas, 1 em cada 26 candidatas negras foram eleitas, quase 3 vezes menos. 

Ter mulheres negras ocupando esse lugar do parlamento vai muito além de um debate sobre representatividade. Tem a ver com a necessidade de ter mulheres como nós construindo as políticas públicas de modo conectado com as nossas necessidades reais e concretas. Um corpo preto no espaço de protagonismo já educa apenas pela presença mas quando chegamos fazemos muito mais. Na academia abrimos espaço para que outras literaturas ganhem visibilidade, o que torna possível no longo prazo a construção de um novo imaginário social. No parlamento, atuamos na construção de políticas que garantam condições mais dignas de sobrevivência para o nosso povo. Somos nós nesse este espaço da luta política que trazemos o debate sobre as políticas de reparação que essa sociedade fundada na exploração dos negros e negras escravizados precisa enfrentar.

A verdade é que quando a gente chega lá (lá nos espaços que nunca foram imaginados para os nossos corpos), a gente muda o jogo. Mas para ganhar o jogo, virar o placar tem que ter muitas de nós lá. É só assim que esse projeto de invisibilização é revertido. E isso precisa ser uma responsabilidade coletiva.