Por Igor Travassos

O relógio do telefone marcava 22h48 quando Pedro, o noivo da quadrilha, deu partida no carro saindo de Casa Amarela, na zona norte do Recife, com destino a Moreno, cidade a 28km da capital pernambucana. Era sábado, dia 21 de junho, e a Quadrilha Junina Raio de Sol havia acabado de se apresentar no Sítio Trindade, principal pólo do São João do Recife, onde acontecia a etapa final do Concurso de Quadrilhas Juninas da cidade, um dos mais importantes de Pernambuco, que classifica 8 grupos para a etapa estadual do concurso da Globo Pernambuco. A apresentação no Recife tinha acontecido às 21h40 e em Moreno aconteceria a final do concurso de lá, em que a Raio se apresentaria às 0h. Sim, faltavam pouco mais de 1 hora e ainda enfrentaríamos um percurso ermo na BR-232, que segue para o interior do estado. Estavam no carro, além de Pedro, Eduardo, seu namorado, Laura, sobrinha, e eu, que vos escreve. Os dois também dançam na quadrilha. Eduardo é cavalheiro na primeira fileira numa formação de 14 filas com 4 casais, ou seja, 112 integrantes, além do casal de noivos, o marcador e a estrela – um personagem específico do espetáculo deste ano. Já Laura, de apenas 8 anos, começou essa temporada. Ela integra a Raio Mirim, com mais 38 crianças e faz uma participação especial em um momento chave na apresentação da quadrilha adulta.

Quadrilha Junina Raio de Sol na final do Concurso Municipal de Quadrilhas Juninas do Recife 2025 (Foto: Vanessa Alcântara/PCR)

A Raio Mirim é um retorno às origens da Raio de Sol, que surgiu em 1996 como uma quadrilha infantil ligada a uma escola de bairro, na cidade de Olinda, e que já no ano de estreia ganhou prêmio de destaque e foi seguindo assim, até que em 2002 mudou para a categoria adulta, vindo somente em 2025 formar novamente um grupo infanto-juvenil, sob o lema interno de “a missão do continuar”, a Raio Mirim estreou em grande estilo, no suntuoso Teatro de Santa Isabel, com o espetáculo “Um São João Salustiano” em homenagem ao Mestre Salustiano, patrimônio e ícone da cultura pernambucana ligado ao coco, cavalo marinho e à cultura popular.

Voltando à noite do sábado, ainda no início do percurso, antes de sair do Recife, o tempo foi fechando, com pancadas de chuva que logo se intensificaram e acompanharam todo o trajeto até Moreno. O concurso estava acontecendo na quadra de uma escola municipal e entre estacionar e chegar ao local da apresentação era um percurso de aproximadamente 10 minutos à pé sob chuva. Uma capa de chuva improvisada coube Laurinha, mas foi sob chuva que Pedro, Eduardo e eu fizemos esse trajeto. Outros carros com alguns integrantes iam chegando e o ônibus com a maior parte deles também. Atrás da escola tinha um salão que servia de camarim coletivo, onde todos tentavam se secar e secar o figurino, além de retocar a maquiagem e garantir que tudo estava dentro do previsto. A Raio de Sol tem uma identidade artística ligada à cultura popular, o que destoa um pouco dos figurinos cada vez mais brilhosos e volumosos de outros grupos, no entanto, sem perder a beleza e pompa significativa para um casamento junino nesse universo alegórico das quadrilhas.

O tema da temporada de 2025 é “Ô de dentro, ô de fora: um Reisado à São João” em que traz elementos narrativos, estéticos e coreográficos do Reisado, importante tradição popular ligada ao nascimento de Cristo, para o universo junino dialogando também com as figuras elementares de São João, santo católico, e Xangô, orixá cultuado nas religiões de matriz africana e afrobrasileira. Os Reisados pernambucanos se tornaram patrimônio cultural imaterial do Estado em 2022. E a Raio de Sol incorporou muito bem esses elementos e a referência direta pode ser vista pelo figurino com fitas e a coreografia com espadas. O figurino, inclusive, neste momento, molhado, depois dessa corrida contra o tempo e contra a chuva para se apresentar em dois lugares com o pouco intervalo entre eles. Trago o fator da chuva e do reflexo disso porque tem um impacto significativo na dança, uma vez que a roupa fica pesada e uma roupa de quadrilha, mesmo da Raio de Sol, sem as pedrarias, tem um custo elevado, o que impede que os brincantes tenham roupas reservas. Um elemento especial é a roupa cheia de espelhos, que não traz o luxo dos outros casamentos, mas acerta em estética e beleza.

Assisti à apresentação em Moreno na área reservada para convidados da cidade e algumas pessoas da quadrilha, incluindo Alana Nascimento, fundadora, que acompanha a quadrilha em todas as apresentações – pelo menos, ela estava em todas as que eu estive, e não foram poucas. Leila, a noiva, é filha de Alana, e além de compor a diretoria artística da quadrilha, é também quem assina a composição coreográfica. Imagina ter a mesma idade da quadrilha que foi fundada pela sua mãe, ocupar a posição de maior destaque, e maior responsabilidade no arraial, e ainda coreografar e liderar quase 200 pessoas, em que alguns dos critérios exigidos e vistoriados pelos jurados são alinhamento e execução. A coroa de noiva da quadrilha pode ser também um fardo, mas quem olha o envolvimento e dedicação também obtém silenciosamente a resposta ao vê-la dançar com maestria e o respeito que tem dos seus integrantes e também dos quadrilheiros de outros grupos.

Pedro e Leila, o casal de noivos da Raio de Sol (Foto: Vanessa Alcântara/PCR)

Não havia citado até agora, mas a Raio de Sol recebeu em 2024 o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Além disso, é a atual campeã regional do concurso da Globo Nordeste, considerado o mais importante da região. Apesar dos inúmeros prêmios estaduais, de estampar comerciais pelo Brasil, a Raio de Sol também vive as dificuldades de quem faz o ciclo junino nas cidades do nordeste brasileiro. Além do pouco recurso disponível para as manifestações da cultura popular, a disputa nos concursos também é, para muitas quadrilhas, a possibilidade de arrecadar algum recurso, ainda que limitado. Em Moreno, por exemplo, o primeiro lugar receberia um prêmio de R$15.000,00. Com o título de Patrimônio Vivo, a Raio de Sol passou a ter um apoio financeiro mensal de pouco menos de R$5.000,00, que tem sido usado para manter uma sede no bairro do Hipódromo, em Recife, que abriga oficinas, aulas, atividades e alguns ensaios.

O que leva uma quadrilha e seus quadrilheiros a terem um ritmo de apresentações no mês de junho quase que diário, sem receber por isso, e tirando do bolso, uma vez que o investimento público quase não existe, e o patrocínio do setor privado é escasso, é um misto entre adrenalina, satisfação, prazer e o sentimento de pertencimento a um grupo, comunidade, mas também um sentimento quase que inexplicável de defesa de algo intangível que é a cultura e a arte, que movimenta poeticamente o corpo do artista e faz com que cada quadrilheiro, de cada fileira se sinta vivo como a chama de uma fogueira de São João.

Eduardo, cavalheiro na primeira fileira (Foto: Vanessa Alcântara/PCR)

Naquela noite de sábado, a Raio de Sol levou o segundo lugar do concurso de Moreno, além dos prêmios de melhor coreografia e melhor figurino. Para algumas, estar entre as melhores do circuito junino é um sonho ainda distante, pois a falta é o que sobra. Tantas camadas quanto as saias das quadrilheiras é a complexidade social e econômica que está imersa a cultura popular. A Raio de Sol é uma quadrilha da capital, com mais acessos. Se houvesse uma pesquisa de perfil socio-econômico dos quadrilheiros e quadrilheiras de Pernambuco, os integrantes da Raio, ainda que de origem periférica, estariam entre os mais escolarizados, com maior média de renda familiar, e isso nos faz olhar justamente quem está na base, quem tira do pouco para naquele arraial poder brilhar, poder se sentir em vida. Assim como o nordeste recebe menos atenção de grandes marcas que poderiam patrocinar as manifestações da cultura popular, em detrimento do sudeste, existe também esses abismos territoriais entre litoral, zona da mata, agreste e sertão. 

Talvez esses abismos, essas lacunas, as barreiras e dificuldades de se manter viva a tradição canse, seja o retorno de uma apresentação, na madrugada, no silêncio, com o corpo aguardando ansiosamente o momento do repouso e com a promessa de que a próxima apresentação seja sempre a melhor.

Igor Travassos

Comunicador e cineasta de Pernambuco, ativista e defensor da cultura popular