‘O Agente Secreto’ e o Brasil infiltrado em Cannes

Frevo no tapete vermelho, 900 segundos de ovação e uma nação que não cabe mais nos seus clichês — o Brasil sacudiu Cannes

Chegamos a Vallauris, comuna onde nos hospedamos para nossa primeira incursão no Festival de Cannes, no dia 11/05 — dois dias antes do início do evento e doze dias depois de nos despedirmos do corpo físico da Marielle Ramires em Cuiabá. Ver uma das minhas melhores amigas e uma das fundadoras da NINJA partir fez daquele dia um dos mais tristes da minha vida. E a vinda para a França só fazia sentido porque também era uma homenagem a ela. Foi por sugestão de Mari que viemos ao festival internacional de cinema, antes do encontro People for Forest, idealizado por ela, próximo a Paris.

Então, por Mari, aterrissamos em Nice.

Só de pisar no bairro já deu pra sentir o gosto das contradições junto à maresia: centenas de iates estavam aportados ao lado da Rota de Napoleão, onde o militar desembarcou pós-exílio e marchou até Paris. Mas não foi só a gente que chegou: eram mais de 300 brasileiros oficialmente credenciados, cerca de 100 empresas brasileiras representadas. Uma homenagem especial ao Brasil no Marché du Film, o maior mercado de cinema do mundo. O projeto “The Factory – Ceará Brasil” foi selecionado na Quinzaine des Cinéastes, um dos programas paralelos mais prestigiados do festival, com quatro curtas lançados. E três filmes brasileiros na seleção oficial.

É o ano do Brasil em Cannes.
E acho que nem todo mundo estava pronto pra isso.

Em um dos primeiros almoços em frente ao Palácio, centro do evento, uma produtora gringa perguntou: “Muitos brasileiros este ano em Cannes… Quando vão começar a dançar?” Eu sorri e respondi um singelo “aguarde e confie“, ao invés de “vamos sambar na sua cara, xenofóbica desgra***”. Afinal, estamos no país da etiqueta — e a resposta dela veio em alto e bom som: nossa dança foi no tapete vermelho, guiada pelos pés do Grupo Guerreiros do Passo, formado por discípulos do Mestre Nascimento do Passo, em atividade há 19 anos.

De qualquer forma, não era preciso falar inglês ou francês para entender o que ela estava dizendo: mesmo com convite, homenagem e celebração, ainda somos os latinos barulhentos, inatos nesse espaço conceitualmente elevado que Cannes se propõe a ser. Mas, como nem tudo que reluz é ouro, também não levou muito tempo pra ver o falso brilhante. Velhas senhoras pedindo esmola pelas esquinas, hordas de policiais armados entre cinéfilos, e subcelebridades trocando de roupa no meio da rua por 15 segundos de clique eram tão parte da paisagem quanto as vitrines da Dior, Prada, Miu Miu, Versace e Yves Saint Laurent na la Croisette.

Seguindo o roteiro deles, assistimos a filmes alemães, iranianos, franceses, norte-americanos, espanhois e japoneses, enquanto tentavamos sacar o que o júri liderado por Juliette Binoche iria querer este ano. The Sound of Falling e Die My Love ressoaram comigo em lugares que apenas mulheres alcançam — mas esse será tema para outro texto. Aqui, quero falar da tomada brasileira.

Essa invasão atingiu seu ápice no domingo, quando O Agente Secreto, filme de Kleber Mendonça Filho, estreou na mostra competitiva da Palma de Ouro. O momento começou com a quebra do protocolo ao levar o frevo para o tapete vermelho e fechou com 15 minutos de aplauso no Grand Théâtre Lumière. O filme é um deleite pernambucano. Lendas urbanas, La Ursa, um fusquinha amarelo e um cinema de rua se juntam para acompanhar Armando & Marcelo enquanto nós mesmos nos reencontramos com nossos fantasmas e família.

O slow-burning, tão comentado pela crítica, queima a olhos nus, como pólvora correndo entre os corredores dos inquilinos de Dona Sebastiana até a ponta da arma na mira certeira de quem trabalha como bicho. O Agente cai como uma luva no momento célebre que o cinema brasileiro vive agora, não só pelo primeiro Oscar, mas pelo gosto de Jules Rimet que a estatueta nos deu. A popularização, a torcida, o carnaval, a contenda e o sentimento nacional que está ocupando o Letterboxd do longa enquanto escrevo mostram não é só um “um bom momento do cinema”, mas uma nova onda de sentimentos do brasileiro diante de sua arte.

Foto: Still/Divulgação

Os 900 segundos de ovação também ecoam nas histórias contadas por Wara, Stella Carneiro, Luciana Vieira e Bernardo Ale Abinader em seus curtas cearenses-amazônicos-alagoanos. Também reconhecem a história entre O Riso e a Faca, no corpo negro e queer de Jonathan Guilherme, na música de Tom Zé e nos 30 brasileiros da equipe. E na homenagem prestada a Cacá Diegues com a exibição de Para Vigo Me Voy. Tudo isso, que a produtora gringa e muitos outros chamam de “exótico”, a gente chama de Brasis.

E como balanço antecipado, enquanto seguimos com nossa missão: a impressão que eu tenho é que, em sua primeira semana, Cannes tomou um banho de Brasil.

O cinema brasileiro é capaz de entrar no tapete vermelho mais exclusivo do mundo com uma juliet no rosto, ao mesmo tempo em que exibe um filme dirigido por uma pessoa indígena não binária — e tantas outras pessoas apresentam seus próximos passos nas rodadas de negócios.

O Brasil pode tudo. E Cannes, que já foi uma vila de pescadores, pode aprender com isso.

A gente aprendeu a se amar.
Obrigada, Mari.