Por Thiago Galdino

Na tela grande, as ruas de Mossoró ganham novos contornos: viram trilhas da memória, da poesia e da cultura popular. É nessa paisagem afetiva que o documentário Nas Trilhas do Poeta traça a jornada de vida de Antônio Francisco Teixeira de Melo, um dos maiores nomes da poesia popular brasileira, reconhecido como Doutor Honoris Causa pela UERN, Patrimônio Vivo do Rio Grande do Norte e membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. A obra estreou no último dia 24 de abril, com entrada gratuita, no Multicine Cinemas, localizado no Partage Shopping Mossoró, reunindo público diverso e emocionado.

Produzido com recursos da Lei Paulo Gustavo e operacionalizado pela Prefeitura Municipal de Mossoró, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, o filme é assinado por Antônio Francisco na direção e conta com produção de Lígia Morais. A proposta é mais do que documental: é uma homenagem viva, sensível e intimista, conduzida a partir do olhar de Segundo Neto, neto e também poeta, que costura as memórias do avô com a história da cidade.

Em um cenário em que as produções audiovisuais locais ainda enfrentam desafios de visibilidade, o lançamento do documentário reafirma a potência das narrativas regionais, especialmente quando baseadas na oralidade, na afetividade e no legado da cultura popular nordestina.

Como surgiu a ideia de transformar a vida e a obra de Antônio Francisco em um documentário? Foi uma demanda do próprio poeta, uma iniciativa sua ou algo que nasceu de uma construção coletiva?

Lígia Morais: Eu sou cunhada e produtora de Antônio Francisco, acompanho a sua trajetória há mais de 30 anos. Conhecendo a sua história de vida bem de perto pude vislumbrar as fontes que o inspiraram a se tornar um dos maiores poetas do mundo. Além da paixão por sua musa inspiradora, Josenira Maia, pela poesia, pela bicicleta… Antônio Francisco desde a infância tem outra grande paixão, o Cinema. Ao ouvir suas histórias sobre os cinemas que existiam em Mossoró nos tempos de outrora, e sobre os filmes que ele assistia e ainda assiste repetidas vezes, senti o desejo de fazer um filme/documentário sobre a sua vida e obra, para que ele pudesse se ver nas telas, assim como ele via outros grandes artistas.

Cartaz de Nas Trilhas do Poeta – Foto: Divulgação
Diogo Teixeira em Nas Trilhas do Poeta, interpretando o poeta Antônio Francisco enquanto criança – Foto: Divulgação

A escolha de Segundo Neto como fio condutor do filme trouxe uma camada geracional à narrativa. Que tipo de vínculo vocês queriam evidenciar entre memória, herança e continuidade? 

Lígia Morais: Quando escolhemos Segundo Neto (Neto do Poeta Antônio Francisco) como fio condutor do documentário, buscávamos alguém que pudesse vivenciar e reativar essa herança de forma sensível. A presença dele no filme simboliza essa continuidade viva, que não se limita a repetição, mas ganha novos sentidos na travessia de uma geração para outra. É uma espécie de reencantamento do legado, aquilo que é herdado encontra abrigo e transformação na experiência de quem o recebe. Queríamos mostrar que a poesia de Antônio Francisco não termina nele; ela se alonga nos afetos, nas lembranças e nas escolhas de quem veio depois.

Mossoró é quase uma personagem no filme. Que decisões estéticas e narrativas foram tomadas para destacar a cidade como espaço simbólico e afetivo?

Lígia Morais: Narrativamente, decidimos construir o roteiro em torno da relação afetiva do poeta com a cidade, destacando suas memórias, vivências e os laços culturais que o formaram. Esteticamente, buscamos contrastes: nas ruas optamos por uma fotografia com luz natural, cores quentes e planos abertos com a pretensão de valorizar a beleza arquitetônica da cidade. Nos ambientes fechados, como a casa do poeta, optamos por luz artificial cuidadosamente dirigida, criando uma atmosfera mais íntima e contemplativa. Os espaços interiores revelam o universo pessoal do poeta, seus silêncios e reflexões, em contraponto ao movimento das ruas. A trilha sonora regional, com composições de Antônio Francisco, Romero Oliveira e outros compositores nordestinos, foram escolhidas para criar uma ambientação sensorial que conversa com a emoção da narrativa. Cada espaço é tratado como um ponto de encontro entre passado e presente, entre o concreto e o imaginário. São trilhas reais e afetivas que desenham a geografia emocional do autor.

Como foi o processo de produção com uma equipe tão diversa e multifuncional? Houve algum desafio específico em alinhar tantas funções e visões no mesmo projeto?

Lígia Morais: Produzir o filme Nas trilhas do Poeta foi uma experiência intensa e enriquecedora. A equipe escolhida para executar o projeto é profissional e competente. Cada membro trouxe uma bagagem única, o que ampliou nossa visão criativa e fortaleceu o nosso trabalho. Naturalmente, surgiram desafios ao alinhar tantas ideias e estilos diferentes. Houve momentos de divergência, principalmente nas fases de criação do roteiro e da montagem. Mas, essas diferenças também nos impulsionam a buscar outras soluções. A diversidade de olhares enriqueceu a narrativa e trouxe camadas inesperadas ao filme. Foi desafiador, sim, mas ao mesmo tempo extremamente gratificante. Como todo processo traz um grande aprendizado, aprendi muito com os desafios que surgiram durante o percurso. O resultado final reflete esse esforço em equipe. Ver as pessoas se emocionarem ao assistir ao filme, nos traz uma satisfação imensa incapaz de ser descrita com palavras. Apenas sinto.

A presença de Dona Nira, musa do poeta, acrescenta um tom íntimo ao filme. Como foi trabalhar essa dimensão afetiva e pessoal sem cair no sentimentalismo?

Lígia Morais: Nira é a musa inspiradora de Antônio Francisco, mas antes de ser musa, ela já era poesia. Para a atuação dela não foi criado um texto, as palavras fluíram naturalmente na hora da gravação.

Antônio Neto em Nas Trilhas do Poeta, interpretando o poeta Antônio Francisco enquanto jovem – Foto: Divulgação
Lígia Morais e Antônio Francisco – Foto: Arquivo Pessoal

Filmes como este muitas vezes enfrentam desafios para sair do papel. Que caminhos foram necessários percorrer para viabilizar essa produção, da ideia à estreia?

Lígia Morais: Viabilizar o filme Nas Trilhas do Poeta foi um verdadeiro ato de resistência, sonho e persistência. A ideia nasceu de um desejo antigo, muito pessoal: transformar a vida e a arte do Poeta Antônio Francisco em uma obra audiovisual que pudesse tocar outras pessoas como me tocava. A partir desse sonho, comecei a buscar orientações, mergulhei em pesquisas e procurei parceiros que acreditam na força da poesia como linguagem para o cinema. O ponto de partida concreto veio com o lançamento do Edital da Lei Paulo Gustavo no Município de Mossoró. Estudei o edital, amadureci a ideia e convidei Etevaldo Almeida, um grande parceiro nessa caminhada. Inscrevemos o projeto que concorreu a uma única vaga para muitos artistas. Cada etapa do processo de seleção foi acompanhada com ansiedade e esperança. Quando foi divulgado o resultado final, o Nas Trilhas do Poeta foi contemplado.  Comemoramos com muita alegria a aprovação.

A partir de então, iniciamos as reuniões com profissionais do audiovisual com o propósito de montar uma equipe. Mas como todo caminho que vale a pena, este também teve obstáculos. O diretor do filme adoeceu no meio do percurso. Nossa maior preocupação naquele momento era com sua saúde. O tempo foi passando e sem uma data definida para começar a execução, o projeto entrou em pausa. Graças a Deus o poeta se recuperou. E quando pudemos iniciar o processo de execução nos deparamos com a proximidade do período eleitoral. Os profissionais da área audiovisual estavam envolvidos em campanhas políticas, o que dificultou encontrar pessoas com disponibilidade para integrar a equipe. O prazo final se aproximava. Somente quatro meses antes do tempo limite para a entrega da prestação de conta, conseguimos reunir a equipe e iniciar as etapas de produção. Foi um verdadeiro desafio, emocional, logístico e criativo.

A estreia em uma sala de cinema dentro de um shopping representou algo além de uma exibição formal. Como você enxerga a potência de levar a poesia popular a espaços onde, historicamente, ela não circula?

Lígia Morais: A estreia de Nas Trilhas do Poeta dentro de uma sala de cinema representa mais do que a exibição de um filme. Colocar essa arte viva no centro de um shopping, onde circulam pessoas de diversas origens e classes sociais, é uma forma de romper fronteiras e provocar reflexões. É dizer também que a arte nordestina tem lugar aonde quer que vá e que o público está pronto para recebê-la. Mais do que tudo essa estreia amplia horizontes. Ela propõe outras possibilidades para o futuro da cultura: Uma cultura que se abre para reconhecer a grandiosidade dos nossos poetas populares. Antônio Francisco, com sua trajetória e a sua poesia profundamente enraizada na vida do povo, representa exatamente isso: Um Brasil que pulsa nas palavras ditas com o coração.

Que legado você espera que Nas Trilhas do Poeta deixe para a memória cultural de Mossoró e do Rio Grande do Norte? E como esse projeto ressoa com o seu próprio percurso enquanto produtora cultural?

Lígia Morais: Eu espero que através do filme Nas Trilhas do Poeta o legado de Antônio Francisco seja eternizado. Que sua poesia continue tocando os corações e inspirando novos talentos a florescer. Que surjam outros “Antônios” com a mesma simplicidade, sabedoria e encanto. Que sua arte siga abrindo caminhos e tocando almas. Antônio é semente, e esperamos que muitos frutos ainda brotem desse solo fértil.

Esse projeto dialoga profundamente com a minha trajetória enquanto Poetisa e Produtora Cultural. Tenho me dedicado à promoção de narrativas que valorizem as raízes populares e o patrimônio imaterial do nosso povo. Produzir esse filme foi uma hora para mim, um reencontro com a essência da Cultura que me inspira e me move. A trajetória do poeta Antônio Francisco, enraizada na sua oralidade e sabedoria, reafirma suas lutas e conquistas que acompanhei ao longo da minha carreira. Foi um privilégio para mim, orquestrar um projeto que eterniza a memória viva de um mestre com tamanha grandeza. Como disse Bráulio Bessa: “Antônio é o maior poeta do mundo”.

Afinal, Antônio conta Mossoró, ou Mossoró conta Antônio?

Lígia Morais: Eu convido o espectador a responder essa pergunta. O que me dizem? Quem conta quem?

Ao reunir gerações em torno da poesia, Nas Trilhas do Poeta amplia os sentidos da escuta e do pertencimento. A presença de Antônio Francisco nas telas não apenas eterniza sua contribuição artística, mas também propõe um outro modo de olhar a cidade, os afetos e os saberes que dela emergem. Ao escolher como palco um cinema de shopping center, o filme também tensiona os limites do espaço cultural e coloca a poesia popular em diálogo com públicos diversos — muitos dos quais ainda pouco habituados a ver suas histórias representadas ali. Em tempos de apagamento simbólico e disputas por memória, registrar a trajetória de um mestre da palavra é mais do que um tributo: é uma forma de continuar dizendo, em alto e bom som, que a cultura do povo segue viva — e que merece ser celebrada em toda parte.