Depois de três semanas de intensa imersão no Museu da Cultura Mundial, em Gotemburgo, na Suécia, representantes indígenas das etnias Palikur e Galibi Marwono retornaram ao Brasil com o sentimento de missão cumprida: reconheceram, nomearam e catalogaram digitalmente objetos sagrados de suas culturas — artefatos levados pelo etnólogo alemão Curt Nimuendajú, que em 1925 visitou a região do Oiapoque.

O projeto integra a iniciativa de Repatriação Digital (Digital Repatriation), que também envolve outros grupos indígenas, e faz parte de um esforço coletivo de reconstrução de memórias e fortalecimento da soberania cultural dos povos originários. A ação conta com apoio da Fapespa, Fapeap, Fapesp e do Swedish Research Council.

A coordenadora dos trabalhos de repatriação digital, professora Lilian Rebellato, enfatiza que o protagonismo indígena foi o eixo central da iniciativa. “Foi muito emocionante, todos os dias da imersão. O entendimento detalhado, a partir do olhar de quem conhece profundamente o simbolismo de cada artefato, tornou o processo ainda mais potente. Fomos convidados a compreender o valor daquela coleção, que reúne patrimônio material e imaterial, hoje sob salvaguarda do museu.”

Milton, da etnia Palikur, foi um dos participantes da missão. Ele relata que, ao se deparar com os objetos do seu povo, sentiu uma mistura intensa de sentimentos: “Eu costumo falar muito sobre a cosmovisão. Essa relação que tivemos ao longo dessas três semanas foi muito forte. Uma coisa é ouvir narrativas, saber sobre a história do seu povo. Outra é estar ali, ver aquele material concretizado, todo o histórico cosmológico diante de nós. Foi extremamente importante. São artefatos de 100 anos que não usamos há muito tempo. Foi um momento histórico, de reconexão com o que o meu povo produziu no passado.”

Milton destaca a sensação de viagem no tempo que experimentou: “Toda aquela significância, aquela simbologia que eu conhecia de forma imaterial, eu acabei vendo. Pude tocar nas peças. A gente se sente tão indígena, tão tradicional naquele momento. Meu contato com as peças foi muito afetivo, algo surpreendente pra mim. Me senti muito à vontade.”

Ele também comenta a sensação de pertencimento: “Tive a oportunidade de me abrir, de conversar com as pessoas que estavam lá. Durante uma palestra, a professora percebeu como eu estava empolgado em responder às perguntas dos alunos. Me senti mais seguro em relação aos artefatos. O que eu sabia, passei a saber mais ainda.”

Questionada sobre a possibilidade de repatriação física dos objetos no futuro, a professora Lilian Rebellato explicou que a questão exige uma análise cuidadosa e contextualizada. Segundo ela, diferentemente de casos como o dos mantos tupinambás levados no período colonial — alguns dos quais foram literalmente expropriados e hoje são considerados patrimônio nacional —, a coleção analisada em Gotemburgo foi adquirida em 1926 com financiamento de famílias ricas da época, por meio de negociação formal e com curadoria sistemática. As peças representam um contexto ritual e cosmológico indígena.

Lilian ressalta que, embora os objetos tenham sido comprados, doados ou trocados, ainda há discussões sobre a legitimidade dessas retiradas. Na época, o Brasil não contava com arcabouço legal de proteção ao patrimônio material e imaterial. Segundo ela, qualquer decisão sobre o retorno físico das peças deve partir dos próprios grupos indígenas, respeitando sua vontade e autonomia. Caso haja interesse, o processo pode levar até dez anos, envolvendo a garantia de infraestrutura adequada para a conservação das peças em território brasileiro, como a que hoje existe no museu sueco.

A equipe visitou acervos de museus que guardam centenas de objetos etnográficos coletados em expedições coloniais e missões científicas. Com apoio das instituições, os representantes indígenas realizaram a identificação detalhada de cada item, reunindo informações orais e visuais para criar uma base de dados acessível às comunidades no Brasil.

Milton reforça que essa experiência fortalece o orgulho de sua identidade. “Muitos jovens não sabem que esses objetos existiram, que temos essa história tão rica. Quando voltarmos para a aldeia, queremos mostrar tudo: fotos, gravações, contar como foi, fazer rodas de conversa. Eles precisam saber que nossa cultura está no mundo inteiro, e que ela tem valor.”

Ao comentar a sensibilidade dos museus estrangeiros em relação ao valor espiritual e cultural dos artefatos indígenas, Lilian Rebellato destacou que esse reconhecimento ainda está em construção e exige um esforço contínuo de decolonização. Ela relembra um episódio marcante envolvendo bancos sagrados da etnia Palikur, que estavam expostos na seção infantil do museu de Gotemburgo, gerando desconforto e indignação em três pesquisadoras indígenas — duas Palikur e uma Karipuna — que integravam um grupo anterior de trabalho.

Diante da situação, foi feito um pedido formal para a retirada dos objetos, com base em seu significado espiritual. Esses bancos não deveriam ser vistos por crianças fora de um contexto ritual específico. O museu então convidou as pesquisadoras para um workshop explicativo, onde compartilharam o conhecimento cosmológico e cultural por trás dos artefatos.

Para Lilian, momentos como esse representam um movimento simbólico e concreto de “colonizar os museus” com narrativas indígenas, reconfigurando a forma como essas instituições compreendem e exibem as culturas originárias. Ela também relembrou a emoção do reencontro com os bancos, especialmente ao ver um dos participantes reconhecer como sendo de seu bisavô dois dos bancos ali preservados — um instante que uniu passado, memória e pertencimento.

Milton reforçou com profundidade o que significa, para seu povo, a presença de artefatos indígenas em museus. Para ele, essas peças não são meros objetos decorativos ou de exposição — cada uma carrega vida, memória e um significado espiritual intrínseco.

Comentando novamente sobre os bancos sagrados, Milton compartilhou a indignação sentida diante da inadequação do espaço onde estavam expostos. Segundo ele, dentro da cosmovisão Palikur, esses objetos exigem respeito e estão ligados a rituais específicos. “Esses bancos, preparados pelo pajé com defumação e incorporação de espíritos, têm um lugar apropriado onde devem permanecer. Esses espíritos também têm vontade, preferências, e conexão com o espaço.”

Milton finaliza reforçando: embora valorize a divulgação da cultura indígena no exterior como forma de afirmação e visibilidade, é fundamental que os museus considerem não apenas os cuidados físicos e estéticos com os objetos, mas também seu valor simbólico e espiritual. “Só assim é possível respeitar verdadeiramente os saberes e modos de vida que esses artefatos representam.”