Por Marina Rossato Fernandes e Pedro Tinen

O desenvolvimento de políticas públicas para o audiovisual parte do reconhecimento do produto audiovisual como portador de valor tanto econômico quanto cultural. Enquanto setor estratégico, países de todo o mundo detêm a soberania para elaborar uma série de instrumentos políticos que almejam apoiar a produção e promoção do audiovisual. Sendo assim, a necessidade de organizar cadeias produtivas se dá a partir de princípios políticos e econômicos cujos efeitos podem transformar o setor como um todo, ampliando ou reduzindo a capacidade de produção, distribuição e o acesso dos cidadãos a obras nacionais e independentes.

O contexto atual apresenta inúmeros desafios para a elaboração de políticas públicas que visem beneficiar não somente o setor, mas a sociedade como um todo. Diante das mudanças nos hábitos de consumo e do crescente impacto das plataformas de Vídeo sob Demanda (VOD) na produção, distribuição e promoção de conteúdo, torna-se crucial que esses players sejam integrados de forma efetiva às políticas nacionais, respeitando os princípios que as norteiam. Desse modo, um projeto de regulação do VOD deve ser entendido como uma entre muitas partes de um projeto político para o audiovisual brasileiro.

Apesar da urgência, o debate regulatório no Brasil segue enfraquecido. Considerando o alinhamento histórico das políticas audiovisuais no Brasil e na Europa, em termos de valores e objetivos, a União Europeia (UE) se torna uma referência importante nesse debate. No entanto, enquanto a UE se prepara para revisar sua regulamentação sobre os serviços de VOD pela terceira vez, o Brasil, que ainda nem iniciou sua regulação, está utilizando dados defasados para pautar as negociações. O último relatório do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA) sobre a regulação na UE é de 2016. Nesse contexto, faz-se necessário atualizar e compreender melhor o cenário internacional a fim de refletir sobre os conceitos-chave da regulação no Brasil.

Nos países da União Europeia, encontramos um longo histórico de implementação de políticas voltadas ao desenvolvimento de indústrias competitivas e independentes. O mercado audiovisual europeu se distingue por sua força econômica, alicerçada na defesa da diversidade cultural e da pluralidade de agentes econômicos independentes. Diferentes países europeus possuem ainda uma trajetória de construção democrática e institucional, resultante da continuidade de políticas públicas nacionais e supranacionais destinadas ao desenvolvimento, financiamento, produção e promoção de obras audiovisuais.

Desde 1989, a União Europeia estabelece marcos regulatórios para a circulação de conteúdos audiovisuais com a Diretiva de Serviços de Mídia Audiovisual (AVMSD), que se adaptou ao longo dos anos para abranger as mudanças do mercado, incluindo a expansão para serviços de Vídeo sob Demanda em 2010. Foi nessa revisão que o texto legal adotou o princípio de “neutralidade tecnológica”, passando a compreender os serviços audiovisuais — e não a tecnologia de transmissão — como objeto da regulação. Essa adaptação permitiu que a diretiva, originalmente focada em televisão, passasse a abarcar os serviços de VOD, como Netflix e Amazon Prime, compreendendo o crescente papel desses players na indústria audiovisual local.

Com a revisão de 2018 da AVMSD, a diretiva intensificou as responsabilidades dos serviços de VOD, equilibrando serviços lineares e não lineares e permitindo que os países regulassem serviços que operam de forma transnacional. A diretiva impõe uma série de obrigações aos Estados-membros da União Europeia, como contribuição financeira, cotas, proteção de menores e a regulação de publicidade e patrocínio. Destacam-se três medidas centrais:

Cota de Conteúdo: A diretiva exige que pelo menos 30% dos catálogos dos serviços de VOD sejam compostos por obras europeias. Essa medida visa garantir que a produção audiovisual da Europa tenha ampla distribuição e acesso no mercado interno, apoiando a indústria cultural do continente. Os Estados-membros têm a tarefa de monitorar essa cota e garantir sua implementação. Eles podem definir regras mais detalhadas sobre como as cotas são calculadas — por exemplo, se baseadas no número de títulos disponíveis, no tempo de exibição ou em outros critérios que considerem apropriados. Além disso, podem estabelecer penalidades para os serviços que não cumprirem essa exigência.

Proeminência de Conteúdo: Além de reservar uma parte do catálogo para obras europeias, a diretiva também requer que esses conteúdos sejam facilmente acessíveis e destacados aos usuários, o que é conhecido como proeminência. Tal obrigatoriedade busca assegurar que os títulos europeus não apenas façam parte do catálogo, mas também sejam visíveis e promovidos ao público. Essas regras podem implicar obrigações tanto dentro quanto fora das plataformas, como em campanhas de marketing.

Contribuição Financeira: Os serviços de VOD podem ser obrigados a investir diretamente na produção de obras europeias. Isso pode se dar de duas formas:

  • Contribuição direta para a produção de conteúdo, como financiamento de novas produções, coproduções com empresas europeias ou aquisição de direitos de produções locais.
  • Contribuição a fundos de apoio, por meio de taxas direcionadas a fundos nacionais ou regionais que apoiam a produção audiovisual. Esses fundos, geridos por entidades públicas ou organismos designados, utilizam o montante arrecadado para financiar e apoiar o setor audiovisual por meio de diversas medidas que podem ir além da produção de obras. Esta disposição busca garantir que os serviços de VOD não apenas distribuam conteúdo europeu, mas também contribuam ativamente para o desenvolvimento da indústria audiovisual local.

Os Estados-membros têm certa flexibilidade na transposição dessas diretrizes para suas legislações nacionais, o que permite adaptação às suas necessidades e contextos específicos. Podem impor diferentes tipos de obrigações financeiras aos serviços de VOD, calcular essas obrigações de maneiras variadas e incluir exceções específicas nas regulamentações conforme considerarem necessário.

Essa flexibilidade também gerou fragmentação na implementação, com disparidades entre os países. A contribuição financeira, por exemplo, varia de valores mínimos como 0,5% em Portugal até taxas substancialmente maiores, como os 26% na França, quando somadas as obrigações de contribuição direta e ao fundo nacional. A falta de definições claras sobre o que é proeminência e como aferi-la também impõe desafios à regulação.

De forma semelhante, os países-membros possuem independência para determinar suas próprias subcotas de conteúdo, podendo ser inferiores ou superiores aos 30% mínimos determinados supranacionalmente, gerando parâmetros díspares. No caso francês, os valores chegam a 60% das obras no catálogo, sendo no mínimo 40% em língua francesa. Enquanto Portugal, por exemplo, estabelece uma subcota mínima de 15% para obras independentes. No entanto, em países que optaram pela ausência de subcotas nacionais, a cota europeia de 30% segue obrigatória.

Após quinze anos de implementação e sete anos desde a última revisão, a legislação audiovisual da União Europeia proporciona um debate rico, trazendo à tona lições valiosas e identificando desafios críticos. Um dos principais pontos discutidos é a necessidade de maior clareza sobre o conceito de “proeminência” e as estratégias eficazes para sua promoção. Além disso, enquanto as cotas visam aumentar a produção de conteúdo, observa-se que elas também podem incentivar a produção de obras de baixo custo, afetando negativamente as condições de produção. Essas cotas, embora fomentem a competição econômica, não garantem a promoção efetiva dos conteúdos, o que reforça a importância de se repensar a proeminência. Dentro desse contexto, a contribuição financeira emerge como uma abordagem central para promover a diversidade audiovisual de maneira integrada, concentrando-se não apenas na quantidade de conteúdo. Este método se destaca como instrumento crucial para equilibrar os objetivos industriais e culturais, sendo recomendado que se integre às cotas para alcançar metas políticas mais amplas que vão além do econômico.

Embora o modelo europeu sirva como uma referência valiosa, ele não constitui um modelo a ser copiado indiscriminadamente, mas sim um conjunto de práticas a serem estudadas e adaptadas às especificidades brasileiras. Essa abordagem permite não apenas aprender com os anos de implementação na Europa, mas também aplicar essas lições de forma crítica e construtiva, ajustando-as para atender às demandas e desafios contemporâneos do setor audiovisual brasileiro. Nesse debate, é fundamental destacar que a regulação vai além da simples implementação de cotas e obrigações financeiras: ela leva em conta todo o ecossistema setorial, almejando equilíbrio de forças, sustentabilidade econômica e diversidade cultural. O desenvolvimento de uma política audiovisual abrangente deve envolver todos os agentes da indústria e se estender além do suporte à produção.

Marina Rossato Fernandes é pesquisadora na Universidade de Liège. Doutora em Comunicação pela Vrije Universiteit Brussel (VUB) e mestre em Imagem e Som (UFSCar), na linha de história e política do audiovisual. Sua pesquisa é focada em políticas públicas para o audiovisual, incluindo a relação entre América Latina e Europa neste domínio. Autora do livro Políticas Públicas para o Audiovisual: O caso Ancinav (Editora Alameda, 2016), além de diversas publicações no campo da economia política do audiovisual.

Pedro Tinen é pesquisador da Universidade de Liège, na Bélgica. Foi German Chancellor Fellow entre 2021 e 2023 pela Fundação Alexander von Humboldt e pelo Festival de Oberhausen. Foi programador do Festival de Curtas de São Paulo e alumnus do programa de diplomacia cultural da Comissão Europeia, Cultural Relations Platform, assim como do U30 Think Tank do Festival de Locarno, na Suíça. É mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).