Por José Graziano da Silva

O falecimento do Papa Francisco marca o fim de uma liderança que influenciou de forma significativa o debate internacional sobre justiça social, pobreza, mudanças climáticas e segurança alimentar. Desde o início de seu pontificado, em 2013, adotou uma postura clara e coerente diante dos desafios estruturais que afetam as populações mais vulneráveis, com ênfase particular na fome e na exclusão social.

Tive a honra de conviver com o Papa Francisco durante boa parte de seu pontificado, enquanto exerci o cargo de Diretor-Geral da FAO entre 2013 e 2019. Ele entendia, como poucos, que a fome é uma ferida provocada tanto pela injustiça quanto pela negligência. Francisco via também a fome como uma das causas estruturais do deslocamento forçado. “Onde falta o pão, surgem os muros”, dizia.

Em 2014, durante sua primeira visita à sede da FAO, por ocasião da Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição (ICN2), Francisco alertou para a fragmentação das políticas alimentares e pediu aos líderes mundiais que fortalecessem o compromisso com o direito humano à alimentação adequada. Seu discurso destacou a responsabilidade dos governos em garantir sistemas alimentares justos e sustentáveis e em combater todas as formas de desperdício e desigualdade no acesso aos alimentos.

Ao longo de seu pontificado, Francisco defendeu com consistência a agricultura familiar como pilar da segurança alimentar global, da qual os pequenos produtores são os verdadeiros guardiões. Para ele, os agricultores familiares representam não apenas uma forma de produção de alimentos, mas também um modelo de vida baseado na relação equilibrada com os territórios, na gestão sustentável dos recursos naturais e na transmissão de conhecimentos tradicionais. Em suas palavras, “o futuro da alimentação está na agricultura camponesa, na agroecologia, nos modelos familiares e comunitários que cuidam da terra e das pessoas”.

Essa visão dialogava com a importância crescente da agroecologia no cenário internacional, como resposta aos limites ambientais do modelo industrial de produção agrícola. O Papa reconhecia que a transição para sistemas mais sustentáveis exigia não apenas tecnologias, mas uma mudança de paradigma, que colocasse a dignidade humana no centro das decisões econômicas.

A Encíclica Laudato Si’, publicada em 2015, consolidou esse pensamento. Francisco apresentou ali o conceito de “ecologia integral”, propondo uma leitura sistêmica dos problemas contemporâneos. A degradação ambiental, a fome, o desemprego rural, a perda de biodiversidade e o deslocamento forçado de populações eram, para ele, expressões interligadas de um mesmo desequilíbrio. Laudato Si’ tornou-se um documento de referência não apenas para o mundo religioso, mas para pesquisadores, formuladores de políticas e lideranças comunitárias de todo o planeta.

O Papa também denunciou de forma sistemática as causas estruturais das migrações forçadas. Para ele, a fome, os conflitos armados e a ausência de oportunidades econômicas estavam no centro dos fluxos migratórios contemporâneos. Um gesto emblemático foi sua doação à FAO, em 2017, de uma escultura representando o menino sírio Aylan Kurdi, morto durante a travessia do Mediterrâneo. A peça, instalada na entrada da sede da organização em Roma, simboliza os custos humanos de um sistema que falha em garantir o mínimo necessário para uma vida digna.

No mesmo ano, ao visitar a FAO pela segunda vez, por ocasião do Dia Mundial da Alimentação, o Papa Francisco voltou a soar o alarme: os compromissos internacionais estavam enfraquecendo. A solidariedade, dizia, estava em retração. E alertava que a fome não se resolve apenas com recursos, mas com vontade política e com um senso renovado de responsabilidade comum.

Sua relação com o Brasil também foi especial. Em diferentes ocasiões, elogiou os esforços do país no combate à fome e na promoção de políticas sociais inclusivas. Durante a pandemia, parabenizou publicamente as famílias da reforma agrária por doarem alimentos a comunidades em situação de vulnerabilidade. Viu na agricultura familiar brasileira um exemplo de solidariedade concreta.

Francisco também criticou o desperdício de alimentos como uma forma de violência moral contra os pobres. Em 2019, afirmou em carta à FAO: “A comida que jogamos fora é tirada injustamente das mãos de quem não tem. É hora de repensar nossas escolhas e nossos sistemas com base na equidade e na responsabilidade coletiva.”

Outro ponto recorrente em suas intervenções foi a necessidade de restaurar o papel das instituições multilaterais, diante da tendência de retração do multilateralismo e da fragmentação das respostas globais à fome. Em sua mensagem ao G20, reunido no Brasil em 2024, Francisco apelou por mais ambição e responsabilidade coletiva, no contexto do lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza: pediu o fortalecimento das redes de proteção social, o apoio à produção local de alimentos e a coordenação entre países para enfrentar a insegurança alimentar de forma eficaz. “É necessário fazer mais. A fome é escândalo, não uma estatística.”

O Papa também reconheceu o papel positivo de algumas experiências nacionais, como as políticas de combate à fome desenvolvidas pelo Brasil nas duas primeiras décadas dos anos 2000. Valorizou o fortalecimento da agricultura familiar, os programas de compras públicas de alimentos, a alimentação escolar e as políticas de reforma agrária. Durante a pandemia de COVID-19, parabenizou publicamente as famílias assentadas da reforma agrária por suas ações solidárias e pela doação de alimentos às populações urbanas vulneráveis.

Seus pronunciamentos sempre procuravam traduzir princípios em ações concretas. Francisco defendia políticas públicas que articulassem segurança alimentar, desenvolvimento rural, proteção ambiental e justiça econômica. Era um crítico do uso indiscriminado de agrotóxicos, da especulação financeira sobre alimentos e da concentração de terras e de mercados.

Em todos os encontros que tive com ele, sempre me impressionou a clareza de sua visão e a ternura com que tratava os temas mais duros. Francisco era, ao mesmo tempo, radical em sua ética e humilde em sua linguagem. Falava de fome, migração, injustiça, desigualdade e crise climática com a serenidade de quem acredita — e com a coragem de quem não se conforma.

Sua mensagem final, proferida na homilia de Páscoa, na véspera de sua morte, reafirma com clareza seu compromisso:
“Apelo a todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento. Estas são as ‘armas’ da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte.”

Essa frase sintetiza o seu legado: um apelo permanente à responsabilidade política, à solidariedade internacional e à construção de um mundo em que o alimento, a dignidade e a paz sejam direitos universais — e não privilégios.