Sem anistia
O grito em desfavor da anistia aos golpistas é uma voz que se levanta em nome do futuro
“A esperança é a memória que deseja“.
Balzac
Em algum lugar de sua obra, Hegel afirmou que uma sociedade, quando não é capaz de história, fracassa no alimentar adequadamente seus membros, incapaz que se torna de configurar a vida, individualmente considerada, em algo a ser experimentado com base na dignidade própria que cabe aos seres humanos. Hegel compreendeu como poucos, que a pessoa para florescer não depende apenas do pão, mas também de algo menos apreensível que é o tempo. Ser é tempo. Do mesmo modo como acontece com os grupamentos sociais, cada indivíduo debaixo do sol tem sua trajetória vincada pelo modo como o passado organiza a sua existência como projeto, ou seja, depende da forma como a memória é capaz de estruturar o futuro. O presente histórico, por assim dizer, é um permanente ponto de encontro entre a recordação e a esperança e quando as lições do passado não iluminam o presente o tempo adoece e faz sofrer aos seus filhos.
Ao longo desta semana, um ex-presidente da república e outros sete agentes políticos tornaram-se réus por crime de tentativa de abolição do estado democrático de direito. Em um país onde a história da democracia tem sido contada a partir de sua interrupção; país acostumado a devorar seus filhos; especializado em fazer do presente um tempo sem perspectiva, promessa sempre adiada, esse acontecimento não é de somenos importância. O que está em questão no julgamento da caterva golpista, por assim dizer, é mais que uma ofensa à ordem jurídica: é um atentado contra o futuro. Trata-se, por assim dizer, de uma ofensa à capacidade constituinte do tempo, porque a temporalidade do tirano é fundamentalmente um presente estéril que se eterniza sem qualquer projeto, notadamente para os mais pobres. Daí o ódio profundo que Bolsonaro e sua chusma sempre demonstraram pela Constituição de 1988. Afinal, a atual Carta Magna representa um projeto de país, o compromisso com um modelo de civilização incompatível com aqueles que veneram ditaduras e torturadores.
Por definição, anistia é perdão concedido pelo direito. Em uma sociedade fundada na dignidade humana, mas que ainda guarda sinais indisfarçáveis de um passado escravagista, que se atualiza no cotidiano de milhões de brasileiras e brasileiros vítimas do descaso e da naturalização da brutalidade, o jurídico deve estar mobilizado em favor da institucionalização de um tempo portador de sentido. Como nos lembra a lição de Balzac, na frase que nos serviu de epígrafe, há uma aliança fundamental entre a esperança e a memória que deseja. A democracia vive do desejo de democracia. O regime democrático é também uma questão de fé. E o direito deve estar a serviço dessa crença. O direito produzido por um Estado comprometido com a constituição de uma democracia deve privilegiar a promessa que o país fez a si mesmo em 1988, o que significa repudiar veementemente qualquer possibilidade de esquecer o 8/1 de 2023. O grito em desfavor da anistia aos golpistas é uma voz que se levanta em nome do futuro, contra a amnésia que no caso brasileiro tem sido a própria corrupção do tempo e da historicidade da criatura humana.