Por Daniele Agapito

“A montanha me salvou”. A frase, dita por uma mulher de cabelos brancos e olhos marejados, ficou na minha cabeça depois do documentário Rocha, substantivo feminino. Era Mara Imbellone, escaladora desde 1994, uma das tantas praticantes de boulder no Parque Estadual dos Pirineus, em Goiás. Como espectadora, parecia certo que algo imantava aquelas mulheres até as pedras. Uma força irresistível que as fazia desafiar a gravidade, o machismo e a ideia de fragilidade. Então… é “só um filme sobre mulheres que sobem pedras?”

Para falar sobre o documentário — e sobre as escaladoras que se agarram às pedras como se tivessem cola nos dedos — conversei por videochamada com as realizadoras do filme. Todas praticantes de boulder, todas com agendas ocupadíssimas, que ainda assim encontraram tempo para subir montanhas juntas e fazer cinema. Na entrevista, algumas falaram, mas a voz era de muitas. Como faz questão de pontuar Patricia Meschnick: “Somos porta-vozes de um coletivo imenso, formado por outras mulheres que, nos bastidores e nas mais diversas frentes, fizeram esse trabalho acontecer.”

Foto: Bella Montiel

Boulder é a escalada feita sem cordas, em blocos de até cinco metros, com colchões especiais (crash pads) para amortecer quedas. Exige preparo físico, coragem e, no caso do coletivo Rocha, uma rede de apoio. Criado por e para mulheres, o grupo questiona a dependência masculina nas montanhas e, agora, no cinema.

Com as lentes sensíveis de Patricia Meschnick e Larissa Corino, o filme também acompanha uma referência do boulder: Jordana Agapito, nome de peso na escalada. Primeira brasileira a alcançar os níveis V11, V12 e ABR — siglas que, para além da técnica, guardam feitos quase míticos. Nessa conversa, ela representou uma geração de mulheres que, ao escalar, partem numa jornada de autodescoberta.

“A gente dá conta?” O coletivo Rocha se formou justamente para dissolver a crença de dependência masculina num ambiente ainda dominado por eles. E, assim, nossa conversa gira em torno de autonomia.

“Será que eu preciso mesmo de um homem pra tudo?”

Antes do coletivo, essas mulheres se perguntavam como iriam se embrenhar pelo mato até as montanhas sem a presença quase obrigatória de um homem para protegê-las e guiá-las. Lembro do feito recente de Tamara Klink, primeira mulher a invernar sozinha no Ártico, que, assim como as escaladoras dos Pirineus, entendeu que autonomia se conquista com método: preparo físico, conhecimento técnico, mapeamento geográfico, avaliação de condições climáticas, noções de primeiros socorros, “ter seus próprios equipamentos — e saber usá-los”. Como frisou Jordana Agapito, que, pelo sobrenome, muitos acham que é minha parente — e torço intimamente para que seja.

E, assim como Tamara Klink, as mulheres do boulder percebem que retirar-se em busca de conquistas que não sejam correr pelo pão de cada dia pode ser um luxo de quem pode se dar um tempo. O coletivo levanta questões sobre o elitismo na escalada, sobre maternidade e esporte, sobre mulheres negras no boulder — ou melhor, sobre a ausência delas, e sobre quem consegue chegar mais alto e por quê.

Foto: Yuki Hidaka

O que você quer escalar?

Sobre a decisão de fazer um filme entre mulheres, a resposta é sincera: tanto no cinema quanto na montanha, “quanto mais homem tem, mais a gente se sente oprimida. Homem quer te dar aula.” E não é exagero. No boulder, eles chegam cheios de didática: “querem que a gente escale no ritmo deles, nas pedras que eles escolhem”.

No cinema, como nas montanhas, eles ainda são maioria. Nos enquadram, nos escolhem, nos aprovam, desaprovam, nos definem — e nos explicam como tem que ser, com aquele ar de “deixa que eu sei”. Mas o que sabemos mesmo é que cinema não está escrito na pedra. Para Jordana, montanha, boulder e cinema são lugares de liberdade e invenção.

“O que você quer escalar?”
“Como você quer subir essa pedra?”

A ideia é descobrir como uma mulher sobe uma montanha. O nosso jeito. Sem essa conversa de que nossas mãos são pequenas demais para escalar — como bem ouviu minha suposta prima, da boca daqueles que tinham medo de serem superados por ela — e foram.

E no set, a pergunta vira outra, mas segue a mesma tônica: querem descobrir como uma mulher faz cinema. O que você quer filmar? Como quer contar essa história? De que ângulo vai mostrar esses corpos?

Mas fazer um projeto só com mulheres também tem seus perrengues. A gente cresceu sendo ensinada a competir — pela beleza, pelo partidão da escola, pelo status de boa moça. A rivalidade feminina é uma velha conhecida. Então pergunto: como foi trabalhar juntas?

Ludmila Barros, coordenadora geral e produtora executiva, responde no meio do corre, direto do banco do carona. E entrega: durante as filmagens, o grupo travou. Mas pera lá — não foi por ciúme, falta, excesso de beleza ou traições. Travou porque comunicar é desafiador em qualquer produção — neste quesito, homem, mulher, tanto faz. A torre de Babel é a mesma.

A diferença? Elas chamaram uma psicóloga para mediar a situação. Achei até engraçado. Mas funcionou. Esse é um set onde o cuidado também entrou no plano de filmagem. Talvez essa seja a grande pista do que o cinema feito por mulheres tem por vocação: domínio sobre o próprio corpo, imagem e responsabilidade com os afetos.

A presença da psicóloga, a montagem repleta de paisagens contemplativas do cerrado goiano, sem afobação, as escaladas noturnas com apoios de headlamps até o nascer do sol, intercaladas com momentos de confissões e vulnerabilidade na bucólica cidade de Cocalzinho, revelam não somente uma modalidade esportiva ou um filme: revelam mulheres aprendendo a confiar umas nas outras, a se desafiar, a tomar as rédeas, a respeitar o próprio tempo — e a vencer, sobretudo, o medo.

Rocha, substantivo feminino é mais que um documentário sobre mulheres que sobem pedras.

É sobre tornar-se uma com a montanha: feitas de terra, cal, sais e cristais escondidos. Ou, como diria Larissa, é sobre o desafio de dar luz a um filme sem endurecer. Ou talvez — quem sabe — seja sobre parir um filme e dar à luz uma montanha. Sobre a escalada de mulheres confiantes, até o topo.

Estreias confirmadas

Com estreia prevista para o primeiro semestre de 2025, o documentário Rocha, substantivo feminino já tem uma intensa agenda de exibições confirmadas. A turnê do filme começa em fevereiro e vai percorrer centros de escalada, festivais e encontros culturais pelo país.

  • 18/04 – Ibicoara (BA) | ENEE
  • 02/05 – Serra do Cipó (MG) | Dinamic
  • 09/05 – Belo Horizonte (MG) | Rokaz
  • 15/05 – Curitiba (PR) | UBT
  • 31/05 – Rio de Janeiro (RJ) | Granito
  • 05/06 – São Paulo (SP) | Fábrica
  • 13 a 15/06 – Cocalzinho (GO) | Festival Cocalinhas