
Neon Cunha: “Eu não dou conta só do close, eu gosto do fundamento”
Confira entrevista completa com a ativista e intelectual negra, ameríndia e trans concedida ao Planeta FODA
Por Kaio Phelipe
Nascida em Belo Horizonte em 1970, Neon Cunha é uma mulher negra, ameríndia e trans. Nessa ordem de importância. E é uma grande intelectual e ativista independente.
Com uma trajetória marcada pela resistência e pela reivindicação de sua identidade, Neon construiu um pensamento que desafia convenções e questiona os papéis impostos pela sociedade. Sua voz ressoa em diversas frentes, da arte à política, do ativismo às discussões sobre pertencimento e ancestralidade. Seu olhar atravessa não apenas o presente, mas busca reconstruir histórias apagadas e projetar um futuro onde a diversidade seja um pilar inegociável.
Neon conversou conosco sobre o que a constitui como intelectual, sobre as memórias que tem de seus pais e também do Largo do Arouche, Brenda Lee e Andréa de Mayo. Ela conta como foi ser homenageada pela Casa Neon Cunha, residência de acolhimento para pessoas em situação de vulnerabilidade. Confira abaixo a entrevista completa:
Como é ser uma intelectual negra no Brasil?
É interessante porque as pessoas me deram o título de intelectual, eu não busquei esse reconhecimento. Em 2021, recebi o reconhecimento de excelência acadêmica da UFABC (Universidade Federal do ABC) ao ser homenageada na categoria de inclusão e transformação social. Foi em comemoração aos quinze anos da Federal do ABC. O presidente Lula também foi homenageado na mesma categoria.
Acho interessante pensar que as pessoas me alçaram títulos a vida inteira. Se eu pensar bem, enquanto funcionária pública, o meu registro efetivo é de mensageira, sou operacional. Se penso na minha primeira formação mais importante, sou faxineira. Digo isso abertamente: foi na faxina que eu me constituí, inclusive, para olhar o mundo. Eu olho o mundo na perspectiva do que pensam as faxineiras, o que pensam as mulheres negras faxineiras. E eu sempre vou voltar para esse lugar. Isso é muito importante de se dizer.
Minha primeira formação acadêmica é em publicidade e propaganda. Depois passei por arte-educação e artes plásticas e, ao longo do tempo, fiz várias extensões, mas perdi todas com a retificação do nome. Essas extensões, na prática, não serviram para nada. Então decidi não ficar colhendo títulos para justificar o que não existia para essa gente. A vida inteira fui tratada como pária. Para trabalhar, só precisei entregar o certificado de conclusão do ensino médio, que é o técnico em publicidade e propaganda, e o certificado da universidade. O restante, nada, nenhum curso a mais.
Assim como meu nome não fui eu quem escolhi, também não escolhi a titulação de intelectual. Quando intelectuais negras por quem tenho apreço, como Jurema Werneck, Sueli Carneiro, Anielle Franco, Winnie Bueno, Juliana Gonçalves e diversas outras, dizem que há intelectualidade em mim, eu reconheço e digo “ok”, mas, ao mesmo tempo, tento não ficar presa no lugar fechado que é a notoriedade acadêmica. Tanto é que, quando algumas pessoas me pedem texto, digo que minhas referências nem sempre são da academia. Morro de preguiça desse lugar, dessa formatação, e não sou expert. Existe muita coisa empírica para além de mim.
O lugar de intelectualidade que ocupo é mais ordinário, da vida real, do cotidiano. Meu lugar é sempre o de uma mulher a quem fizeram tanto mal e só sobrou o melhor dela. É assim que me coloco. Se sou intelectual, é porque me fizeram muito mal. Desde quando eu era menina, na primeira série, e estudava sem livro. Depois, na segunda série, quando me diziam que a minha cor era cor de sujeira. Então me enfiei nos livros e encontrei um lugar de realização pessoal para o resto da vida, como um método de sobrevivência.
Ser filha de faxineira moldou sua sabedoria?
Ser filha de uma mulher negra, assim como eu, de pele não retinta, não escura. Mulher negra, que queria uma boa vida, migrante, do Norte de Minas Gerais, assim como meu pai. Meu pai faleceu recentemente, aos 93 anos de idade. Ser filha da minha mãe e desfrutar disso é um dos maiores fenômenos da minha vida, apesar de ter sido expulsa de casa e vilipendiada desde a mais tenra infância. Ser filha da minha mãe me trouxe a condição de saber olhar para o mundo. Falo com deleite que achei que seria como ela: a melhor faxineira. O lugar de excelência.
Lógico que estamos falando de uma coisa perversa, da cultura do algoz sobre nós: já que você não é bem-vinda, ofereça sua excelência. É uma estratégia que aprendi com minha mãe: precisar ser invisível. E uma das maneiras de ser visível é pela excelência, pela competência do nosso trabalho.
Agora, com a morte do meu pai e da minha irmã mais íntima, eu redimensiono tudo, e isso é muito intenso. Fiz uma postagem no Instagram onde falo disso e agradeço a humanidade do meu pai e o quanto ele me ensinou que o humano é perverso, o quanto o humano pode ter afeto, o quanto o humano não é só o que a gente anseia dele.
Minha mãe também me ensinou muitas coisas, como a afetividade e que afeto não é sobre o quanto você deseja, mas o quanto você está disposta a oferecer. E eu sempre complemento: o problema em desejar o amor é o quanto de dor você suporta, mesmo que seja por pouco amor.

Qual é a importância de se reivindicar uma mulher negra, ameríndia e transgênera, nessa ordem de importância?
Quem são as travestis, as mulheres trans e as mulheres negras da América Latina? Me reivindicar dessa forma e nessa ordem de importância é um exercício de didatismo, da ordem de percebimento e pertencimento.
Outro dia, uma alguém escreveu no X, me criticando, “lá vem a Neon Cunha cagar regra sobre interseccionalidade”.
Mas quando eu digo isso é sobre percebimento e, principalmente, sobre pertencimento. Quando eu nasci, as minhas tias por parte de pai falaram “essa veio ruim”, “essa a Júlia não carregava.” Júlia era a mãe do meu pai, uma portuguesa, que não carregava crianças negras. Imagine minha mãe escutando isso.
Na sequência, me afirmo como uma menina e tem uma história, que é uma velha história, que a minha mãe falava “a sua avó e sua bisavó foram pegas no laço”. Meus pais são do interior de Minas, meu pai cantava Índia, do Roberto Carlos, para a minha mãe.
Aí fui crescendo e me questionando sobre todos os códigos. Fui atrás de etnia e de responsabilidade. O discurso que faço é um discurso contracolonial, na ordem de imposição.
Acho lindo agora todo mundo falando sobre Xica Manicongo. Mas eu reivindico Xica em outro lugar, digo que ela era negra. Xica não era mulher nem homem, era negra. Os negros no Brasil e a constituição do negro e da negra foram para dizer que uma condição não era humana. Xica foi invalidada enquanto negra. Agora todo mundo grita que ela foi a primeira travesti não-indígena, mas “travesti” é um termo colonizador, é construção do colonizador. A condição de Xica é muito mais sobre o fato de ela ser uma pessoa negra. Assim como outras pessoas que existiram na mesma época para além do código binário de gênero.
O colonizador determinou o que pode e o que não pode. Quando eu me posiciono como mulher negra, ameríndia e trans, eu faço um discurso contracolonial. Quando eu me ponho a discutir gênero, me ponho a discutir uma ideia do colonizador, que determinou o que é o código da mulheridade.
Então, quando coloco nessa ordem de importância, é para reivindicar o que é o lugar social da mulher. Durante um tempo, fui criticada pelo próprio movimento por isso. Mas eu não crio código nenhum, só reelaboro e elaboro com excelência e dou uma outra dimensão para o que é ser mulher. Dessa forma, consigo, inclusive, discutir o que chamam de “corpo biológico”, que, na verdade, é um corpo anatômico.
Eu estou escrevendo um texto com o título é Eu me recuso a ter medo, que é para discutir a esquerda e a direita. Quero falar um pouco sobre a exaltação que a esquerda tem pelo terror. Sou muito crítica ao imagético que a esquerda tem produzido sobre as pessoas trans. Eu não dou conta só do close, eu gosto do fundamento. E o close por si só não sustenta o fundamento.
Como era a sua relação com a Andréa de Mayo?
Não chegou a ser uma relação de amizade, mas eu achava a Andréa fascinante. A natureza humana me fascina. Ficar olhando para as pessoas, para a produção delas, para o que defendem… tudo na natureza humana me contagia. Tem uma pessoa que trabalhava comigo, a Lisiane, que estuda uma dança indiana chamada odissi. Ela acorda uma hora da manhã para fazer aula de odissi, na Índia. Eu ficava pensando em como é fascinante alguém se interessar por odissi aqui no Brasil. A gente não pode perder o fascínio pelo outro e quando a gente objetifica, anula, destitui, a gente tira a humanidade do outro. A gente tem feito muito isso, tem vivido muito sob a competitividade e sob o individualismo, que é bem diferente de individualidade.
Quando eu falo da Andréa de Mayo, mas não só dela, também da Jacqueline Welch, da Cristiane Jordan e de tantas outras, que nem se nomeavam e tal, eu falo de um lugar muito especial. Era pesado, mas era divertido. Eu era uma girina, sem escama nenhuma, um projeto de sereia, uma pirralha. Eu via a Andréa tocando a Val Improviso e tantos outros lugares. Eu ficava fascinada. A Andréa pretendia criar o sindicato de trabalhadoras do sexo no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990. É até difícil de imaginar. Fico pensando em como ela tocava o centro de São Paulo, a relação dela com a polícia e como ela conseguia deslizar nesse mundo.
Vi muita coisa aqui em São Paulo. Vi a Condessa Mônica na Nostro Mondo, vi a Caetana se tornar Brenda Lee.
Estive no Palácio das Princesas duas vezes, na Bela Vista. A Brenda era muito esperta. O Palácio tinha uma escada de acesso ao piso superior que também era uma saída, uma construção para quando acontecesse uma batida policial. O Bexiga é uma grande favela, um cortiço, cheio de adaptação. E o Palácio era um labirinto, bem pequeno, com esse truque para escapar das batidas.
Qual é a importância do Largo do Arouche para a construção da memória da comunidade LGBTQIAPN+?
Tenho repensado tudo e evitado o romantismo e o saudosismo. Tudo o que é meu vai para o acervo do Museu Bajubá, não vai ser de ninguém, vai pertencer à historicidade, comecei a me cansar da falta de materialidade. Todo mundo está narrando a história, mas o que tem de concreto, o que é real?
É importante discutir o Largo do Arouche, mas por que não discutir a República e tal? Sinto que as pessoas em volta da República tem uma profundidade de vivência muito maior.
Tem uma rua que fica perto do Largo do Arouche, a Rua Dr. Frederico Steidel, onde ficava a Val Improviso, e na outra extremidade existia uma vilinha, com vários cortiços, eram praticamente só de mulheres trans e travestis. Fico me perguntando o motivo de não resgatarem essa memória. Eu vi várias batidas policiais ali, vi várias coisas acontecendo. Um lugar de construção, não somente da sexualidade ou prostituição, mas de existência.
Você me fez essa pergunta e me veio na mente uma vez que assisti BR-Trans, a peça que o Silvero Pereira interpretou, que é uma das peças mais incríveis sobre vivência trans, para mim. Gostaria muito que fosse refeita por uma atriz trans. Estamos no momento de colocar essa peça em circuito e vivo cutucando algumas atrizes para fazer.
Tem um momento muito especial que aconteceu quando eu encontrei um dos meus irmãos, ele me fez uma pergunta sobre o que me fazia voltar para o campo de extermínio. O Largo do Arouche era um campo de extermínio. Até hoje, passo por lá e penso em uma travesti que vi morta com um tiro, lembro de quantas vezes tive o cano de uma arma na minha boca, quantas vezes os policiais me pisaram, quantas vezes os policiais ameaçavam sumir com a gente, quantas vezes os policiais sumiram com a gente. A resposta era sobre a minha urgência de existir entre minhas semelhantes, era essa a força motriz que vencia o medo, a sede de estar viva a partir da diversidade trans/travesti.
Discutir o Arouche, o Centro, enquanto memória latente é uma coisa que me deixa muito reflexiva.
Como foi ser homenageada com a Casa Neon Cunha?
Aceitei a homenagem com muita responsabilidade, como um desafio, quase como me colocar no local de quem não pode falhar. Eu sou muito responsável, sofri muito boicote trabalhando com política, boicote em candidatura e etc., boicotes esses que de certa forma afetam a Casa.
E a casa me reverbera e me demanda enquanto homenageada. Não tem folga, é como um trabalho voluntário. Então, eu trabalho para uma instituição, me coloco como uma funcionária da Casa Neon Cunha.
Não é uma casa de passagem, é uma residência. Precisamos mudar esse conceito. Tanto é uma residência, que acolhemos os homens que estão em relacionamento com mulheres trans e travestis. Lógico, é preciso que se comprove esse relacionamento, o companheiro, mesmo quando o casal se desfaz, tem essa assistência.
Nós começamos a pensar que não dá pra discutir vulnerabilidade como um território em disputa. Majoritariamente, as pessoas que moram lá são negras e migrantes, mas não discuto quem sofre mais e quem sofre menos, reconhecemos e ponto. Tem diversidade de gênero, diversidade etária… O que me importa é que seja um lugar de diversidade. Para ter o meu nome, é preciso estar de acordo com meus valores. Falo muito de humanidade, de criar possibilidades, de desenvolver autonomia. Com a Casa não poderia ser diferente.
A Casa faz acolhimentos, são pessoas assistidas e residentes. Os residentes são dezoito e as assistidas já passam de centenas.
Para finalizar, poderia indicar três livros para os leitores?
Com o maior prazer.
O nascimento de Joicy: Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem, de Fabiana Moraes. Indico sempre esse livro. Primeiro, porque é jornalismo investigativo de Fabiana Moraes, por quem morro de amor. O livro fala de políticas públicas para pessoas trans e narra a trajetória de Joicy, uma transexual agrária do Sertão do Pernambuco e sua trajetória para fazer sua cirurgia de afirmação de gênero.
O grupo e o mal: Estudo sobre a perversão social, de Contardo Calligaris. É a tese de doutorado dele, onde a repetição da história e a ascensão de regimes autoritários ao redor do mundo ajuda a pensarmos sobre a proximidade de comportamento de autoridades com o de pessoas comuns.
Escritos de uma vida, de Sueli Carneiro, que é uma coletânea incrível de textos desta que hoje segue uma enorme intelectual.