Recentemente, o deputado Kim Kataguiri, do União Brasil, apresentou um projeto de lei que propõe criminalizar a prostituição de rua, incluindo a atividade na Lei de Contravenções Penais de 1941. Nós do movimento de trabalhadoras sexuais nos posicionamos contra esse PL, alertando para o modo como ele é prejudicial não só à nossa categoria mas a todas as mulheres, pois para sua implantação depende da fiscalização dos corpos e comportamentos de todas as mulheres, impactando mais fortemente a população em situação de vulnerabilidade, sejam mulheres cisgeneras, transgeneras ou travestis.

Cedi hoje minha coluna a Sophia Rivera, que é militante do movimento de travestis pela RATTS (Rede Autônoma de Travestis e Transexuais); Fundadora e presidenta da Associação de Mulheridades, Transexuais e Travestis (AMTT); escritora transfeminista materialista decolonial; graduanda em Serviço Social (UFPE) e pesquisadora de Política Social Pública de Assistência Social, Terceiro Setor e Gênero. Sophia traz questões muito pertinentes sobre o tema.

Segue o texto:

Kim é cofundador do Movimento Brasil Livre (MBL) e ficou conhecido por ser um dos organizadores das manifestações a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Sua figura hoje representa aspectos da política reacionária, ultraconservadora e ultraneoliberal no Brasil.

Um sujeito que defende o Estado mínimo e as “liberdades individuais”, mas vive as custas do Estado para atacar quaisquer outros interesses, culturas e/ou liberdades democráticas de ser, saber e poder. Como se o livre mercado e a lógica empresarial fossem se preocupar com as demandas sociais, e fincar compromisso assíduo no combate às desigualdades, à fome e à miséria em um país de desenvolvimento econômico periférico tal qual o Brasil. E ainda, como se todas as pessoas, grupos e/ou etnias partissem de um mesmo lugar, de um mesmo trajeto de experiências e oportunidades. Hipocrisia? Equívoco? Cinismo? Ou um pouco de cada coisa?

O reacionarismo da extrema direita, neoliberal e conservadora não expressa apenas um desespero moral e identitário da branquitude, cisgênera, masculina e supostamente heteressexual, mas um ataque concreto aos direitos da classe trabalhadora, que têm sido fantoche nas mãos de sujeitos como o Kim Kataguiri. E que tentam mobilizar as massas através das mentiras, do sensacionalismo, do discurso cooptado antissistêmico e da polemização de pautas muito importantes à comunidades, grupos e /ou categorias profissionais. Tudo isso, para mostrar serviço, fazer a manutenção do poder e beneficiar apenas aqueles coniventes aos seus princípios morais, éticos e ideológicos.

Em se tratando de moral e ética, a sociabilidade capitalista e burguesa têm nos mostrado que estes dois tópicos são moldáveis, distorcidos, infringidos e impostos de acordo com os interesses e perspectivas hegemônicas. Além das contradições e do discurso dissimulado que se aposta, quando a realidade traduz a dinâmica da hipocrisia e incoerência com aquilo que foi dito por eles. Seja os escândalos de corrupção envolvendo a fé, seja o cair das máscaras daqueles que atacavam os direitos de pessoas LGBTIA+, mas foram pegos tendo trocas sexuais com homossexuais e/ou trans e travestis nas surdinas; ou mesmo aqueles que condenavam o aborto, mas violentavam suas mulheres e/ou abusavam de crianças e adolescentes dentro de suas casas.

Para Bataille, “Uma vez que o domínio natural de proibições inclui a morte, entre outras (por exemplo, sexualidade, sujeira, excrementos), a soberania exige que a força para violar a proibição de matar, embora verdadeira, estará sob condições que o costume define. E, ao contrário da subordinação, sempre enraizada na alegada necessidade de evitar a morte, a soberania definitivamente demanda o risco de morte” (apud Mbembe,2018, p.13–14, Necropolítica).

A lista de controvérsias é extensa. Mas na linha de frente deste debate, ainda que compreendendo a puta não como uma mulher sofrida, abandonada e à procura de salvação, mas como um lugar de autonomia, dissidência e cabível de escolha, é preciso desmistificar a puta também como sujeito político e categoria sociológica de trabalho.

De acordo com Prada, “por conta dos efeitos desastrosos que as políticas de repressão à prostituição têm na vida das pessoas que a exercem — em sua maioria mulheres pobres e únicas mantenedoras de suas famílias — , muitas organizações de defesa de direitos humanos, como a Anistia Internacional, preconizam há algum tempo a legalização total do trabalho sexual ao redor do mundo” (p.97, 2018, Putafeminista).

“Na maioria dos países, as leis sobre a atividade têm como principal objetivo acabar com ela, precarizando com isso a vida de quem a exerce e empurrando mulheres para a clandestinidade e o isolamento social” (idem).

A proposta de proibição do trabalho sexual em vias públicas, além de ser um ataque às mulheridades trabalhadoras sexuais, que de fato adentram a prostituição para fugir da miséria, da falta de oportunidades e das desigualdades sociais, não visualiza os problemas reais postos a categoria de trabalhadoras do sexo. À exemplo, as facções criminosas e milícias que exploram mulheres e travestis, cobrando valores diversos para que elas utilizem das ruas e avenidas para exercer sua função; e ainda os prostíbulos, casas de massagem, bordeis de luxo e pensionatos, que cobram valores exorbitantes para pagamento diário, semanal e/ou mensal, de modo que se utilizam do sofrimento, exclusão social e falta de perspectiva e escolaridade daquelas mulheres/travestis para extorqui-las etc.

No país que ocupa por 16 anos consecutivos o 1° lugar no ranking mundial de países que mais matam pessoas trans e travestis no mundo, em que maior parte dessa população vive da prostituição compulsória, e nas esquinas, muitas das vezes, vende o seu corpo por 10, 20 ou 30 reais para comer ou pagar uma diária a um cafetão ou cafetina; tal medida seria no mínimo equivocada, mas evidentemente perversa para com a população pobre e/ou comunidades minorizadas.

No Brasil, a prostituição não é considerado crime, mas o debate sobre a legalização total ou mesmo a regulamentação se capilariza em diversos segmentos, como algumas correntes do movimento feminista e ainda das esquerdas políticas conservadoras e ortodoxas. Porém, a legislação brasileira em seu código penal parece não reconhecer o trabalhado sexual como uma categoria de trabalho, quando em seu artigo 228, veta as trabalhadoras sexuais de trabalhar em cooperativas, de modo que considera exploração sexual e facilitação da prostituição; mesmo com a Constituição de 1988 garantindo que todo trabalhador possa se organizar legalmente em cooperativas (artigo 174, parágrafo 2º, apud Prada).

Questões que nos instigam as seguintes reflexões: quais serão os caminhos tomados para essa pauta? quais as perspectivas consideradas para o engrandecimento ou desmantelo desta proposta? Entre os muros e alvos que representa Kataguiri e a extrema-direita, e os muros da esquerda política conservadora e ortodoxa qual será o lugar dado a este segmento da classe trabalhadora?

É preciso coragem para assumir os incômodos dos desejos reprimidos e a falta de compreensão de um lugar, que pouco dispõe de entendimento, mas somente dos julgamentos e da curiosidade para satisfação alheia, sobretudo cisheteropatriarcal.

A quem beneficia a puta fora da rua?

A puta em certa instância, é o rompimento da propriedade privada, seja na submissão do corpo, seja na saída do lar doméstico, ou mesmo do domínio patrimonial na figura dos homens. É a quebra da ingenuidade e da falta de autonomia. Como classe trabalhadora, ainda cheia de desproteções e falta seguridades, e como categoria de trabalho, atravessada pela ética antiética e da moral imoral.

Será a insistência no apagamento da puta um projeto de privatização? Expulsão com fins neoliberais. Ora, mas nem a puta escapa! Seria no trabalho sexual, as ruas, espaços alugados independentes e/ou próprios e plataformas virtuais, minimamente, uma via de escape das amarras das forças empresariais, corruptivas e/ou do tráfico/exploração sexual?

Certamente estes caminhos configuram fugas da precarização dessa categoria de trabalho, e somente ouvindo as trabalhadoras sexuais se faz possível compreender as estratégias e problemáticas existentes. Bem como, derrubar essa investida, só será possível com a mobilização coletiva das trabalhadoras do sexo e demais alianças.

O estigma vos grita: mulheres e travestis trabalhadoras, uni-vos!

Que não deixemos que a história se repita. A anistia precisa ser para as vítimas e não direcionada aos criminosos. Não mais perseguições, torturas e criminalização das trabalhadoras sexuais, como o foi entre as décadas de 1970 e 1990, através da Contravenção Penal da Vadiagem e da Operação Tarântula!