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Levei minha avó para assistir ‘Ainda Estou Aqui’
Assistir ao filme ao lado de seus avós proporcionou uma nova compreensão sobre os traumas da ditadura.
Por Bella Assis
Enquanto os créditos de Ainda Estou Aqui subiam na tela, o silêncio na sala de cinema era quebrado por histórias que talvez nunca houvessem sido contadas antes: “Sabe aquela cena no início? Comigo aconteceu igualzinho.” “A sua tia teve que se esconder pra não ser pega.” “Eu morria de medo do camburão passando.” Para muitos netos, assistir ao filme ao lado de seus avós, que viveram a ditadura militar, foi uma oportunidade de ouvir lembranças guardadas por décadas – trazidas à tona pela história que se desenrolava na telona. O filme, que fala dos traumas de um Brasil marcado pela repressão dos militares, tornou-se ponto de partida para conversas que aproximam essas duas gerações, provocando nos netos uma maior compreensão sobre o que os avós viveram naquela época.
Com toda aquela atmosfera cuidadosamente construída – dos elementos da época aos silêncios cheios de significado –, Ainda Estou Aqui transporta o espectador para um período em que palavras podiam ser perigosas e resistir era um grande ato de coragem. Por isso, assistir a esse filme ao lado de alguém que viveu essa realidade amplifica – e muito – a experiência.
Na cena em que o carro, no qual estava Veroca junto com seus amigos, é parado em uma blitz, todos os jovens são revistados pelos militares em uma abordagem bastante violenta. No escuro do túnel, em meio ao comboio de carros e tanques, a lanterna do militar passa de rosto em rosto, e o medo e a revolta têm de ser engolidos a contragosto. Tudo aquilo parecia surpreendentemente familiar para a avó de Lua Araújo, com quem ela assistiu ao filme. A estudante conta que sua avó passou pela mesma situação várias vezes na juventude: “Ela diz que era como se estivesse se vendo ali, no passado.”
No início do filme, há uma sensação de felicidade transmitida pelas cenas da família Paiva na casa e na praia, mas é interessante notar como até mesmo aqueles momentos felizes são carregados de uma instabilidade nos detalhes, como a vigilância sempre presente dos militares, que causa no espectador a impressão de que algo ruim está prestes a acontecer.
Lua comenta que sua avó se empolgou com essa atmosfera de tensão e a riqueza de elementos de época do filme, fazendo comentários sobre as semelhanças com o que ela viveu nas cenas que se seguiram, até mesmo quando uma das personagens se bronzeou com Coca-Cola: “‘Igual eu’, ela falou para mim.” A estudante brinca: “As pessoas que estavam na sessão com a gente talvez não tenham gostado muito, porque ela foi narrando muita coisa, né? Peço imensas desculpas a quem estava com a gente, mas acho que ela se empolgou um pouco (risos).”
A ditadura atingiu todas as classes sociais
Uma das críticas ao longa de Walter Salles é o fato de o filme não abordar a realidade das famílias pobres e de outras classes sociais. Embora seja uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Paiva, muitos ainda cobram que a história da família de Marcelo inclua todos os aspectos sociais e a vivência das classes populares. Há quem vá além e afirme que a ditadura afetou apenas as famílias de classe média e alta, e que no interior, ninguém sabia o que estava acontecendo. Porém, Letícia Mussi, que assistiu ao filme com seus avós Maria Luiza e José Manoel, tem uma visão diferente.
Para ela, a repressão atingiu todas as classes sociais, e até as famílias do interior podem se ver refletidas na história que levou o Brasil ao Oscar novamente: “Meus avós, de uma família muito humilde, de uma cidade do interior do Rio, Campos dos Goytacazes, sofreram muito. Ninguém podia se expressar, ninguém podia ter liberdade nenhuma, tinha horário, toque de recolher, sempre na grosseria, na agressividade”.
Lembrando do quão emocionados seus avós ficaram ao final da sessão, Letícia perguntou recentemente ao seu avô qual cena mais o tocou. Na memória dele, veio à tona a cena em que Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, é presa durante dias e dias sem contato com a família e sem saber os motivos de tudo aquilo. Letícia acredita que essa cena tenha mexido ainda mais com seu avô por conta de uma história de sua própria família. “O cunhado do meu avô foi torturado porque transcrevia cartas de outras pessoas para os exilados. Ele não era comunista nem nada, apenas sabia escrever”, conta. Quando o cunhado de seu avô voltou da prisão, ficou profundamente afetado mentalmente, precisou ser internado em um hospital psiquiátrico e acabou falecendo.
A crueldade na tática do desaparecimento
Ainda Estou Aqui é mais do que um resgate da memória ou um lembrete dos tempos sombrios. Ele aborda também a dor daqueles que ficam, que precisam conviver com o vazio inexplicável deixado pela perda, sem o direito de enterrar o corpo de uma pessoa amada, sem explicações, sem atestados. A dor de não saber o que aconteceu, de não poder fazer o luto de forma digna, é um sofrimento que dura para todo o sempre. Como bem colocado na cena em que Eunice diz que a tática do desaparecimento é uma das mais cruéis, porque mata-se uma pessoa e condena-se as outras a uma tortura psicológica eterna.
Dona Guiomar, avó de Netuno Calliope, compartilhou com o neto a dor de um desaparecimento em sua família. Ao final da sessão, ela contou sobre o primo, um jovem que estava no quarto ano da faculdade de medicina, que ela precisou esconder em sua casa. Ele desapareceu de repente, e, embora suas roupas tenham sido encontradas em uma praia distante, o corpo nunca foi achado, nem os culpados pelo seu desaparecimento: “Ela também escondeu minha madrinha, irmã mais nova dela, que era militante. Minha avó era professora do estado e sentia muito medo de tudo nessa época, mas nunca deixou de lutar”.
Lua levou sua avó para assistir ao filme depois de ter visitado uma exposição sobre a ditadura na Escola de Belas Artes da UFRJ. Já Letícia decidiu levar seus avós para a sessão porque cresceu ouvindo as histórias sobre a ditadura em sua família e queria que eles se sentissem acolhidos com o filme. Para Netuno, além de querer valorizar o cinema brasileiro junto à sua família, o que mais o motivou a assistir com sua avó foi a história de sua família materna durante a ditadura.
Assistir ao filme com seus avós aproximou os netos ainda mais de suas histórias familiares, ao mesmo tempo em que fez com que os avós se sentissem mais à vontade para compartilhar as cicatrizes deixadas pela ditadura. O filme não apenas despertou memórias, mas também fortaleceu esses laços, trazendo mais conexão e empatia. “E gratidão!”, afirma Lua, acrescentando: “Gratidão também por ela [a avó] ter confiado em mim e falado todas essas coisas.”
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.