Por Laila Shams

O Oscar ainda não é uma premiação inclusiva com a diversidade de mulheres, mas vem buscando crescer nesse aspecto, até pelo apelo midiático de torná-la popular devido a diminuição da audiência da cerimônia na última década. Segundo dados levantados pela Nielsen, o pico de audiência do Oscar foi diminuindo substancialmente em 2014 e nos anos seguintes, até apresentar uma melhora em 2024.

Este ano temos uma brasileira, depois de 25 anos, uma mulher trans, uma mulher negra, uma mulher no seu primeiro quarto de século e uma mulher nos 62 mostrando que a arte não morre com a idade. Mas e suas personagens? O que elas representam?

Em breves análises da mulher como ser político iremos revisar as cinco personagens das atrizes indicadas ao Oscar de Melhor atriz, percebendo como elas se inserem nas narrativas diárias que nós, mulheres, vivemos.

Emília Pérez, filme criticado pela forma que retrata a latinidade e também como desenvolve a narrativa de uma personagem transexual, é interpretada pela atriz trans Sofía Karla Gascón. A premissa do filme é de um líder do narcotráfico mexicano que ao fugir solicita que sua advogada ajude a realizar uma cirurgia para que possa reiniciar sua vida como mulher. Uma mulher não torna-se mulher ao realizer uma cirurgia para mudar o sexo biológico. Ser mulher é uma construção do eu – é um ser político não atrelado a um naturalismo biológico. Mulheres trans são mulheres independente de uma cirurgia. Dito isso e a nossa concordância com as críticas realizadas pelo filósofo espanhol Paulo B. Preciado, iremos analisar a personagem de Emilia a partir do que ela poderia ser, se tirada a transfobia e xenofobia da narrativa.

Emília não é um ser tipicamente bom, ela pode ser chamada, para fins textuais, de vilã. Mulheres também podem assumir papéis de líderes brutais, estarem envolvidas com o perigoso e ilícito – sem ser a busca pela redenção – como no filme. E essa imagem da mulher criminosa geralmente vem vinculada a uma heterossexualização. Os estereótipos “mulher de bandido”, “cargueiras” e “aliciadoras” são comuns, mas aqui vemos uma mulher no comando – que tem uma esposa, Jessi Del Monte, vivida por Selena Gomez, que também não é caracterizada como a “mulher da bandida”. Emilia é inteligente, sagaz e temida. Ela percorre o caminho do crime, mas com as reviravoltas da vida – e haveria muitas possibilidades – decide que precisa começar um novo capítulo. Emilia Pérez poderia ter sido bem construída se tivesse focado na líder criminosa que busca fugir do que criou sem apelar para uma trama preconceituosa, porém caiu no baú profundo de personagens femininas mal desenvolvidas. Em suma, de uma perspectiva política, Emilia é o representativo de quando a diversidade não é inclusiva, acobertando o mesmo grupo dominante que apela para um protecionismo fictício cujo objetivo é marginalizar mais ainda os grupos minoritários.

Foto: Page 114/Why Not Productions/Pathé Films/France 2 Cinéma


Anora, vivida pela atriz Mikey Madison, é uma jovem trabalhadora sexual, batalhadora que revisita o mito do homem salvador branco. A personagem já foi considerada superficial, sem camadas, o que nos faz pensar quanto dessa crítica está ligada ao fato de Anora ser ao mesmo tempo esperta para conseguir sobreviver em um rude mundo capitalista e sonhadora por ver além dele. Há uma tentativa patriarcalista de tentar tornar mulheres uma coisa ou outra. E nós mulheres, damos voz a esse pensamento ao estarmos inseridas no mesmo ambiente político social em que dinâmicas dicotômicas ocorrem. Se a mulher é forte, ela não pode ser feminina, se ela é batalhadora, não pode se render aos prazeres da vida, se é inteligente, não pode ser fútil. Anora não pode ser encaixada em uma caixa e isso incomoda.

Ainda assim, ela é uma personagem na perspectiva de um homem que também a sexualiza ao tentar desconstruí-la. Mesmo Sean S. Baker, conhecido por suas histórias que compõem o falido sonho americano, como ‘The Florida Project’ com a questão da desigualdade social, ‘Starlet’ da pornografia, ‘Tangerine’ das prostitutas trans, suscita uma discussão importante com a Anora. Será que homens conseguem construir personagens femininas sem nenhum nível de misoginia? Se considerarmos o machismo estrutural da sociedade, a resposta é: dificilmente. Baker consegue abordar o trabalho sexual de uma forma válida, na tentantiva de combater o estigma e marginalizacão, mesmo que realize isso de forma superficial, no que tange que não temos Anora desvinculada do sexo. Fica subentendido que Anora precisa ser salva por um homem – como se sua inocência precisasse de um guia e a personagem só fosse se desenvolver se passasse por aquela situação determinante. É a típica forma de romantizar a mulher guerreira, as dores, e os relacionamentos abusivos que muitas mulheres passam e dizer que serviu para crescimento. Mas porque mulheres precisam sofrer para crescer? Nossas vidas já constituem lutas constantes em uma sociedade hipócrita. O que Anora precisa é da garantia de direitos enquanto pessoa e profissional. Sua história é um belo conto trágico que reflete discussões que deveriam ter evoluído, mas seguem encaixotadas em velhas alegorias.

Foto: Divulgação Universal Pictures

Elphaba, por Cynthia Evario, é o que precisávamos para desconstruir personagens malvadas das histórias da infância. O malvado é um ser político do contra, muitas vezes o subversivo, o outsider, o diferente. Elphaba é verde, Glinda é branca. Elphaba é má, Glinda é boa. Simbolismos da obra original de O Mágico de Oz de L. Frank Baum, deixadas de lado, o contraste dado em histórias infantis para o bem em oposição ao mal e personagens femininas, geralmente está vinculado à imagem da bruxa. Mas porque tanto se teme a bruxa? Historicamente como a filósofa italiana Silvia Federici fala, as bruxas eram mulheres independentes que tinham conhecimentos que iam além do permitido às mulheres. Curandeiras, parteiras, benzedeiras eram vistas como perigosas pelos poderes político-sociais dominantes – homens, porque ameaçavam o status quo e eram deliberadamente caçadas como bruxas. Surgem então os contos de bruxas para assustar as crianças e já criar no imaginário a ideia de um ser selvagem, perigoso e ruim – um comportamento a não só ser temido, como evitado.

Outro aspecto que deve ser abordado, é da rivalidade feminina que desde muito cedo é interposta como comportamento esperado de mulheres. Elphaba é o oposto de Glinda, e rivalizam devido à paixão pelo mesmo homem. Em ‘Wicked’ vemos uma narrativa diferente se desenvolver entre as personagens, Elphaba aqui não é vilã, mas sim insubmissa. Ela não aceita o governo corrupto de Oz. Ela não torna-se a bruxa má do Oeste e inimiga de Glinda. São desconstruídas a bruxa má e a rivalidade feminina. Oz entra como vilão, representante de sistemas opressores, e são as mulheres que lideram a resistência. Elphaba é uma personagem que precisa ser apreciada por transformar a fábula da bruxa colocando a mulher subversiva como centro da mudança.

Foto: Universal Pictures

Elisabeth Sparkle, em ‘A Substância’, cresce em um ambiente onde sua imagem é mais valorizada que sua pessoa. Rodeada de holofotes, normaliza para si a beleza que lhe é cobrada manter. Seguindo o conceito de beleza capitalista ligado à juventude e padronização inexistente de um corpo perfeito, Elisabeth é descartada de seu trabalho ao envelhecer. Ela encontra a solução para continuar nos holofotes com uma substância misteriosa que promete a cura para o envelhecimento. Ela só terá que dividir o seu espaço – tempo com Sue. Enquanto Sue vive, ela inexiste. É uma perfeita analogia aos procedimentos cirúrgicos invasivos que são vendidos pela indústria da beleza como solução para as “imperfeições” que todas nós mulheres temos. Interpretada por Demi Moore, que sofreu com essa mesma indústria, ela se entrega à personagem e mostra que este ponto final é ilusório na melhor atuação de sua carreira. Tristemente sua personagem não consegue vencer o monstro da beleza e se transforma nele, e na realidade, muitas mulheres sucumbem a procedimentos estéticos devido a pressão social – desde o mercado de trabalho até as redes sociais mais íntimas, que nos incutem a ideia de perfeição.

O filme traz insights dos corpos das atrizes para além de uma sexualização, refletindo o que é valorizado na sociedade. Moore foi protagonista do filme “Striptease” no qual interpreta uma stripper, e podemos comparar sua acolhida com a de Myke Madison em ‘Anora’. Demi Moore ficou lembrada de forma pejorativa pelo papel no filme, que era transmitido em sessões noturnas da TV aberta como um filme “erótico”. O fato de hoje termos as duas mulheres em papéis de destaque concorrendo ao Oscar nos traz um ponto importante de como nossos corpos são utilizados artisticamente e quanto amparo temos para enfrentar a sexualização deles, mesmo quando o objetivo da arte não foi esse. Quase três décadas depois, temos Demi Moore sendo aplaudida em um filme de terror dirigido pela única mulher concorrente na categoria de Melhor Direção. São três barreiras que o filme consegue superar. Mulheres não são uno, são multi, e ainda é necessário brigar por espaço em premiações e para que nossa imagem física não defina o valor que temos.

Foto: MUBI/ Everett Collection

Eunice Paiva é a representação das mulheres da classe média na ditadura. Isso não significa que não abraça a dor de outras esposas e mães que também foram vítimas desse período. Eunice permanece à margem das ações do marido, vivendo sob uma ditadura e dedicando-se à família, até ser surpreendida pelo aprisionamento dele e pela invasão de sua casa. Ela torna-se a protetora da família, e em busca de seu marido, é torturada. Rubens Paiva, com o sentido de proteger, não a incluiu. Essa é a história de muitas mulheres durante conflitos. Relegadas ao espaço da casa e deixadas às cegas no espaço público. Mas quando o público invade o privado, precisamos nos adaptar rapidamente.

Foto: Globoplay/Divulgação

Eunice também representa a dor silenciosa das mulheres. Na cena da sorveteria, ela é a imagem da mãe que tudo aguenta, que engole a saudades, que esconde o choro, para proteger seus filhos. Lembro da minha mãe dizer que chorava baixinho enquanto sorria, quando alguma coisa ruim acontecia, que nós crianças não podíamos entender. Ela aprendeu a chorar baixinho com a mãe dela, minha avó, que aprendeu com a dela. Quantas mulheres choravam baixinho na ditadura brasileira enquanto tentavam achar seus familiares? Enquanto enterravam os corpos de seus maridos, filhos, pais? Porque ainda temos que chorar baixinho? A dor da mulher é tão grande que não é suportada pelos nossos parceiros. A nossa dor poderia matar uma sociedade alardeada. É isso que minha mãe sentia ao chorar baixinho e aposto que era o que essas mulheres sentiam. Foi isso que senti ao chorar baixinho assistindo Eunice em ‘Ainda Estou Aqui’.

Eunice também é uma mulher inteligente, que não se curva. Ela segue. Ela respira. Ela estuda e torna-se símbolo. Ela é memória. Mulheres carregam as memórias do povo enquanto os homens causam os conflitos que os levaram a elas. Somos corpo político de sociedades falidas por falácias masculinas. São homens que fazem a guerra, e mulheres que recolhem os pedaços, que carregam a história. Eunice vive. Com dores, marcas, sorrisos. Mas não é reduzida a uma esposa, mãe, vítima da ditadura. Eunice é mulher, é política, é luta. Por todas as Eunices que foram, que são e que virão que possamos parar de chorar nossas perdas pelas armas da opressão. Que possamos chorar alto sem medo de nossa dor ser muito grande.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.