Inflação, violência e confiança no Governo
É fundamental entender como a percepção da violência cotidiana afeta os resultados da economia e as questões sociais
Por José Graziano da Silva, Instituto Fome Zero
A pesquisa do DataFolha publicada em 15-02-25 mostrou que a aprovação do governo do presidente Lula desabou para 24% e é a pior de todos os seus mandatos. E a reprovação também é recorde: 41%. Segundo a matéria que acompanhou a divulgação dos dados, “O tombo demonstra o impacto de crises sucessivas pelas quais passa o governo, sendo a mais vistosa delas, a do Pix. Ela ocorreu em janeiro, com a divulgação de que o governo iria começar a fiscalizar transações superiores a R$5.000 pela modalidade instantânea de transferência bancária. Ato contínuo, houve uma cobrança da oposição, sugerindo controle indevido e uma enxurrada de fakenews dizendo que haveria uma taxação do Pix. O governo ficou atônito e restou … revogar a medida.(…) Os problemas, contudo, continuaram”.
Na sequência, outra matéria se pergunta “ Como um governo que ostenta indicadores econômicos bastante razoáveis, com crescimento econômico decente e desemprego em níveis historicamente baixos pode gerar tanta insatisfação popular?” (…) “A resposta, como sempre, passa pela economia, sobretudo pela inflação. Produtos de grande peso simbólico, como café e laranja, subiram nas feiras e supermercados e pegaram em cheio as classes médias e baixas.
“Há algo maior do que isso, no entanto, e aí entra a própria figura de Lula, o que só alimenta a especulação de que ele terá de desistir da reeleição. Parece haver uma certa fadiga de material como presidente, que é agravada pelos seus recentes problemas de saúde, o etarismo de parte da sociedade e seu manancial inesgotável de gafes.
“Gols contra como a crise do Pix, turbinados por uma oposição que sabe amplificar polêmicas em redes sociais, passam a imagem de confusão e de que ninguém está no comando. Pior, retratam uma “casta” (para usar um termo emprestado de Javier Milei) que quer apenas tirar dinheiro da população e entrega pouco em troca”.
Concordo que “há algo maior do que isso”, mas discordo que seja a figura do presidente. Esse algo maior – e pior!, na minha opinião, é a violência cotidiana que afeta todos nós. Ela se manifesta desde a percepção de que “o tráfico ganha terreno em todo o país”, assaltos de todos os tipos, desde roubos de celulares até a grandes agências bancárias, coisa que só ocorreu antes nos tempos da luta armada contra a ditadura, passando por um sem número de fraudes e tentativas de golpes pela internet.
Infelizmente esse componente da violência cotidiana, que permeia toda a percepção do cidadão comum hoje em dia, não é sequer mencionado pelos nossos comentaristas que parecem presos à famosa e enganadora frase “é a economia, estúpido!”.
Se retrocedermos as últimas pesquisas antes do “caso Pix”, pode-se verificar que a Quaest por exemplo apontava que o “principal problema” que vivia o país na opinião dos entrevistados eram economia, violência e questões sociais, empatados em cerca de 20% (considerando a margem de erro) ao longo de todo o período de julho a dezembro de 2024. Pesquisa Genial/Quaest divulgada nesta quarta-feira (26-02) aponta que a violência é o problema mais grave nos estados de Rio de Janeiro (71%), Bahia(44%), São Paulo (34%) e Pernambuco (32%), entre os oito estados pesquisados.
É fundamental entender como a percepção da violência cotidiana afeta além da confiança nos Governos também os resultados da economia e as questões sociais do país. Há um livro da CEPAL de 2010 ( “América Latina de cara al esepejo”) que explorou pela primeira vez a relação entre dados objetivos, que refletem as condições econômicas e sociais (como crescimento do PIB, emprego, etc) e dados subjetivos medidos por pesquisas de opinião , que representam as percepções da população, nos países da América Latina com destaque para o Brasil.
O estudo concluiu que as desigualdades materiais afetam a forma como os cidadãos interpretam a realidade, mas essas percepções também são moldadas por fatores culturais, históricos e sociais. Dessa forma, políticas públicas voltadas para a redução da desigualdade não devem se limitar à redistribuição econômica. É necessário promover a inclusão simbólica de grupos marginalizados, aumentar a transparência na gestão pública e reduzir a percepção de injustiça social.Também a percepção de conflito entre classes sociais é mais forte em países com maior concentração de renda na região, entre os quais o Brasil.
A análise da CEPAL mostra que, em países com menores desigualdades sociais, há uma relação mais forte entre crescimento econômico e sentimentos positivos sobre a economia. Em países com grandes desigualdades, mesmo melhorias econômicas significativas não resultam necessariamente em percepções mais otimistas E dependem da percepção da insegurança que vive a população.
A pesquisa destaca que a percepção de insegurança está relacionada diretamente à inflação e ao desemprego, sendo que a intensidade dessa relação varia em função do nível de desigualdade social existente em cada país. Mas podemos dizer que quanto maior a violência cotidiana, maior a percepção dos grupos sociais mais desfavorecidos do impacto da inflação e do desemprego sobre sua vida. Ou seja, um mesmo índice de inflação ou desemprego pode ser aceitável para um segmento da população e insuportável para outro dependendo da sua posição social.
A pesquisa também analisou ainda a relação entre a desigualdade e a percepção de insegurança. As taxas de homicídios são mais baixas em países com menores desigualdades sociais, mas a percepção de violência varia significativamente. Em alguns países, mesmo com taxas de homicídios relativamente baixas, a população se sente extremamente insegura. Essa percepção é reforçada pelo medo do conflito social e pela experiência pessoal com crimes. Indivíduos que foram vítimas de delitos apresentam níveis mais altos de percepção de insegurança. Além disso, a desigualdade social amplia o sentimento de vulnerabilidade, tornando a segurança um tema central na percepção da qualidade de vida da população.
Outro aspecto destacado no estudo pioneiro da CEPAL é a relação entre a carga tributária objetiva e a percepção de justiça fiscal da população. Os resultados mostraram que não há uma correlação direta entre os impostos efetivamente pagos e a percepção de carga tributária, com exceção do Brasil, país que tem de longe a maior carga tributária da América Latina.
No entanto, há uma relação direta entre a hostilidade aos impostos e a desconfiança na gestão dos recursos públicos em todos os países da região.Nos países com maior desigualdade como o Brasil, a principal razão apontada para a evasão fiscal é a corrupção, enquanto em países com desigualdades menores, a queixa principal é a alta carga tributária embora ela seja bem menor que no Brasil. Isso sugere que a aceitação dos impostos está mais ligada à percepção de um retorno justo em serviços públicos do que ao valor absoluto da tributação. A pesquisa da CEPAL mostra também que a confiança no governo afeta a aceitação da carga tributária.
Essa relação pode estar no cerne da explicação do episódio do PIX de janeiro no Brasil refletindo uma desconfiança maior no governo, especialmente depois das idas e vindas da “tributação das blusinhas”. Além disso, contribui muito a percepção de uma “reforma tributária inconclusa” que não deixa claro quando efetivamente irá entrar em vigor nem a fase da mudança na tributação do consumo que interessa mais os pobres e muito menos a fase seguinte de tributação sobre a renda que interessa mais os ricos.
O aumento da violência cotidiana e a perda crescente de confiança no Governo são duas faces da mesma moeda na desigualdade estrutural do Brasil.A percepção maior da inflação pelos grupos menos favorecidos não é a causa mas a consequência disso. E o Governo não vai recuperar a confiança da população enquanto não mostrar medidas efetivas de combate a violência cotidiana e não apenas promessas de mudanças no arcabouço legal que não dizem nada para quem a sofre no dia-a-dia.