A Banda Épica: em novo espetáculo, Cia do Latão distancia o Brasil para mostrá-lo de perto

“A Banda Épica na Noite das Gerais” traz o encontro de um Brasil consigo mesmo em temporada que termina no próximo dia 16 de março

A Companhia do Latão apresenta, em sua nova montagem, em São Paulo, um Brasil que ainda se debate entre violências estruturais e os ecos de sua história. Com a direção de Sérgio de Carvalho, “A Banda Épica na Noite das Gerais” leva ao palco um grupo de músicos de rock alternativo em turnê pelo interior de Minas Gerais, em 1972. Portanto, um país que vivia o auge da popularidade de seu regime ditatorial ao tempo em que lançava obras primas da música brasileira – como “Clube da Esquina”, para citar somente um exemplo da terra. A jornada do grupo toma um rumo inesperado quando o ônibus da banda quebra próximo ao Rio Doce, colocando-os frente a frente com personagens de um Brasil pouco representado nas narrativas urbanas: uma caminhoneira, a dona de um pequeno bar, um militar de baixa patente, o funcionário de uma grande estatal e um fazendeiro.

A peça traz aqui a reunião entre duas perspectivas do país: uma banda de esquerda, urbana – forjada na contracultura, que desafia os limites impostos pelo regime, ainda que cada personagem encare a questão de forma distinta -, e um Brasil muito mais complexo do que eles imaginavam, marcado por conflitos territoriais e econômicos. A narrativa se desenrola como um mosaico de tensões sociais, revelando as contradições e complexidades que moldam nossa própria história.

Aqui, portanto, o tema chave de “A Banda Épica” é o encontro. O encontro do Brasil consigo mesmo. Logo de início somos confrontados a nos posicionar diante desta contenda: “Quem são vocês?”. No teatro da maior capital da América Latina, não seria difícil nos encontrar. O Brasil de dentro que a Companhia do Latão apresenta é o interior de Minas Gerais, em uma região conhecida pelo seu histórico de violência. Nesse breu de floresta, estamos no escuro, e de lanterna somos convidados ao zoom in no mapa dos trilhos da Vale. Cresci ouvindo dizer que o Brasil só poderia se conhecer quando adentrasse a floresta e de fato descobrisse sua origem e seus encantados. Mas, como alguém que já nasceu no Amazonas, de fato conheci o Brasil nas estradas das Gerais – quando confrontei um país com outro sotaque, outras vivências e grandes potências culturais que por vezes se perdem na pasteurização das capitais.

Nesta zona de invisibilidade, o Latão traz a breve história da desmontagem de um reformatório Krenak, usado como campo de concentração feito pra prender lideranças indígenas. O fim do reformatório, no entanto, abriu portas para a grilagem de terras e potencializou o conflito agrágrio na região, uma forte característica do Brasil de Minas Gerais. Ainda que seja um caso que necessite de ouvidos atentos, estimula nosso interesse à pesquisa num período em que a história da ditadura no Brasil chega ao topo da indústria cinematográfica na corrida pelo Oscar. Quantas histórias não conhecemos para além de músicos exilados e parlamentares detidos?

Nesta trilha, é tão importante destacar que o processo de redemocratização brasileira não começou a partir de uma ruptura brusca com o regime de ditadura tal como ocorreu em muitos países! Com militares na ativa até hoje, as torturas continuaram a existir, militares estão praticamente anistiados em um país sem impunidades e as questões fundiárias e ambientais ganharam potência depois do processo de colonização moderna – os militares usavam exatamente este nome – de terras ditas vazias nos anos 1960-70. Quarenta anos após o regime, portanto para além do que conta o espetáculo, o rompimento da barragem da Samarco matou o Rio Doce naquela mesma região, despejando 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério no maior desastre ambiental na história do país.

O papel da arte

Diante de tantas mazelas que poderiam se fazer presentes na descoberta da história de um país, vale destacar o papel da arte diante desse desafio de abrir olhos e ligar a lanterna. Desafio posto com D maiúsculo, já que, poderiam dizer, estamos cada vez mais distantes de um público com vontade de discutir política nas plateias. Será? O desafio é estético e a Companhia do Latão talvez seja um dos grupos com maior importância no Brasil no que tange à discussão de produção simbólica nas artes da cena por uma leitura politizada e engajada. Fundada em 1997, estamos falando de peças icônicas como “A Comédia do Trabalho” e “O Patrão Cordial” que, podemos não ter visto – particularidades das artes efêmeras do teatro – mas que ficaram gravadas na história.

Foto: Miriam Silva

O teatro tem uma potência de produzir experiências que, desculpem, nunca consegui decifrar verbalmente – como a própria palavra da experiência pode denotar. Teatro se vive e a música que Latão põe em cena nos convoca a esta festa sem perder a leitura crítica. “A banda épica não tinha nada de épica, não queríamos saber de histórias estruturadas com começo, meio e fim, queríamos um movimento livre”, conta um dos personagens. O conceito épico no teatro brechtiano, adotado pela Companhia do Latão, se reflete na fragmentação dramatúrgica e na quebra da linearidade do drama. Como o músico anuncia, de fato não entramos no formato de um teatro musical que conta uma história por meio de suas canções e por vezes somos convidados a enxergar a construção de uma narrativa coletiva e refletir junto sobre os mecanismos que a regem.

Não sabemos se a falta de um sotaque mineiro teria relação com este afastamento do público diante do Brasil que se apresenta, conferindo ao texto um alcance ainda maior. Pois poderia ser onde cresci ou qualquer outro ponto invisível na nossa imensa floresta? Contudo, neste zoom in zoom out constante do espetáculo, a música pode ser o elemento que diferencie as personagens do Brasil de dentro e o de fora, da vida e do palco. Dora (Helena Albergaria) conta – canta – sua história em um dos momentos mais belos da Noite das Gerais e provoca: “Tem que cantar de verdade, se não é mentira”.

Se “A Banda Épica na Noite das Gerais” é um convite à reflexão sobre o papel da arte diante das violências estruturais do país, ela também aponta as soluções coletivas diante do modelo político do fascismo. “O seu ódio não pode ser sozinho”. O que se desvenda diante de um Brasil invisível, onde as árvores se mantinham em pé e as pessoas viviam em comunidade, é que há um sistema cujo modelo de vida e negócio é o “cada um por si”. Neste ponto, o teatro tem um papel ainda mais potente pois sua poesia não se constrói apenas na busca do melhor verso. Além da paixão pelo outro, o teatro se constrói na prática, e a prática – com algumas exceções – é inerentemente coletiva.


“A Banda Épica na NOITE DAS GERAIS”, da Companhia do Latão está em temporada de 14 de fevereiro a 16 de março de 2025 no Teatro Raul Cortez, Sesc 14 Bis (Rua Dr. Plinio Barreto, 285 – Bela Vista – São Paulo). Sempre quinta à sábado, às 20h e domingos, às 18h, exceto em 02/03. Vendas pelo site central relacionamento.sescsp.org.br e presencialmente nas bilheterias das unidades do Sesc SP.