Por Thays Villar

O vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024 é uma obra do cinema independente dirigida pelo estadunidense Sean Baker, conhecido por contar histórias que retratam personagens estigmatizados à margem do sonho americano.

Em seu segmento inicial, “Anora” seduz e convida para uma aventura promissora. Em “Emilia Pérez”, Manitas expõe seu drama, o qual, embora desconfiados, estamos dispostos a comprar, na intenção de suprirmos o nosso desejo de sermos enganados.

Sean Baker desenvolve uma trama recheada de vida e, naturalmente, de surpresas. Nos faz criar as mais loucas expectativas, mas nos mantém no limbo da incapacidade de prevermos o futuro. Audiard, sedento por surpreender, esbanja milhões de euros ao atropelar questões sociais urgentes e absolutamente alheias a ele, para lançar um produto que é puro fetiche da técnica, por meio de uma linguagem vendida como inovadora, mas que já conhecemos desde os primórdios da MTV.

“Anora” dá o play em hits que nos são familiares e embalam seus acontecimentos na medida certa. Para se dizer original, “Emilia” inventa canções problemáticas que, embora tentem, não acrescentam quase nada na narrativa. São obras estruturalmente frágeis, que fazem jogos de palavras nada inspirados e, ao invés de valorizarem as cenas em que são usadas, servem apenas para resumi-las, soando como uma estratégia de avançar com o roteiro por cima do que o seu criador parece considerar trivial, como as cirurgias de afirmação de gênero.

Consigo facilmente imaginar Baker improvisando planos ao explorar os cenários que as locações naturalmente dispõem a ele, debochando da indústria da cultura com inteligência e economia. E vejo um Audiard perdido em meio a dezenas de refletores, que precisam, freneticamente, ligar e desligar para fazer uma “fotografia bonita” sob uma estética que, por não ter unidade, aposta que tudo que propõe tem que ser aceito.

Em “Anora” temos um dos melhores elencos da temporada, composto por atores pouco conhecidos, que nos afetam intensamente ao darem vida, com elevado grau de realismo, a personagens cativantes, complexos e que são desenvolvidos sem a menor pressa. Em “Emilia Pérez”, a performance do elenco é o ponto mais sólido, mas esse esforço é por personagens facilmente esquecíveis e muito pouco consistentes, que ficam esmagadas, em suas rasas narrativas, por subtramas que não cansam de surgir. 

Já não é preciso reproduzir todas as polêmicas que envolvem aspectos da produção de “Emilia Pérez”. Entretanto, é difícil esquecer declarações bombásticas, como a da diretora de casting que disse não terem encontrado atrizes mexicanas para os papéis. Para além de ser um enorme desrespeito com artistas do país que eles fingem retratar, esse posicionamento ajuda a revelar a tentativa frustrada do filme de disfarçar a velha fórmula hollywoodiana: investir em grandes nomes do blockbuster para estrelar uma história que, à primeira vista, parece importante apoiar e que na tela promete ser surpreendente, mas que, neste caso, desmorona no meio do caminho.

Foto: Divulgação

Em seu desejo de ser relevante, bem-sucedido e premiado, o diretor francês explora um país já colonizado por seus vizinhos e apresenta um resultado tão artificial quanto as suas intenções de pautar temas sensíveis, como a causa trans, que, sobretudo no atual cenário político mundial, ansiamos, na comunidade, por representações que nos valorizem com dignidade.

Enquanto Jacques Audiard tenta nos empurrar essa oca e improvável fantasia, “Anora” nos surpreende com o quão complexa e emocionante pode ser a realidade, rompendo com ilusões que costumam nos alienar quando vamos ao cinema assistir a produções dos Estados Unidos. Nem sempre é assim. No filme de Sean Baker, nada vem pronto para ser digerido e, nesse sentido, pode até causar desconforto no estômago. A provocação aqui é: o que você enxerga no outro quando olha através da sua lente?

Se a conclusão é que Emilia Pérez foi como uma santa, é a cereja desse bolo solado. O que eu vi foi só uma boneca, que, não obstante a minha visão, tentou ser sustentada por uma justificativa tão caça-níqueis quanto a da outra loirinha que inspirou o arrasa-quarteirão do ano passado.

Se passar por um temporal, não sobra nada. Anora já é nada, e a ela me deu vontade de entoar uma canção de ninar. Por outro lado, há de se silenciar o caos que “Emilia Pérez” instaurou na tentativa desesperada de ter estas e tantas outras falhas perdoadas, enquanto insiste em atravessar o oceano rumo ao sonho americano para fazer dancinhas do TikTok sobre o letreiro de Hollywood. 

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.