Por Zezé Almeida, Keka Bagno e Matheus Alves

“Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininha
Mas eu vim de lá, pequenininha
Alguém me avisou
Pra pisar neste chão devagarinho”

Dia 29 de janeiro, dia do aniversário de 15 anos de Henrique, em Planaltina DF, uma das regiões mais populosas da capital federal, fomos entrevistar Maria José Costa Almeida, nordestina, mulher preta, mãe do aniversariante, liderança pelo direito à moradia e Coordenadora Nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), presa injustamente no dia 03 de junho de 2024.

Zezé, como é conhecida, viveu sua infância até os 11 anos em uma comunidade chamada Povoado, no Quilombo Monte Cristo, no estado do Maranhão. Filha do Sr. Antônio Almeida e da Dna. Zilda, possui 16 irmãos e irmãs. Nem todos são do casal, mas é a quantia total de pai e mãe, pois ambos já tinham sido casados antes. Zezé é a mais velha.

Tanto seu pai quanto sua mãe são referências para ela. Tem muito dos dois. O lugar em que sua família morava no Quilombo era bem grande e eram conhecidas pelo nome e por quem eram, não pelo endereço. Seus pais eram respeitados. Zezé brinca que as pessoas falavam que se o Almeida falou, a Terra parou e ela faz o mesmo para seu filho Henrique: se a Zezé falou, a Terra parou. Seu pai era angolano e sua mãe brasileira. Pessoas de fé. Cultivavam alimentos dados da terra e animais, principalmente arroz e gado.

Durante sua adolescência e juventude, Zezé residiu em outros estados como Ceará e Rio de Janeiro. Trabalho como cuidadora e esteticista. Nos anos 2000 veio passar férias em Planaltina com seu irmão e essas férias, como ela afirma, se prolongaram por 25 anos, mas sem descanso. 

Numa festa no Centro de Tradições Populares Boi do Seu Teodoro, na cidade de Sobradinho, Zezé conheceu o pai do Henrique, seu único filho. Namoraram, casaram, e durante 16 anos foram morar juntos e gestaram um garoto apaixonado por futebol e adorável com sua mãe, de olhos sempre marejados quando a vê e continuamente abraçado a ela. Ao ser perguntada sobre seu filho, Zezé se emociona, pausa por alguns instantes e afirma que seu filho é tudo em sua vida.

Ao longo de sua vida, passou por várias mudanças significativas no contexto de habitação e trabalho. No início, morava em uma casa boa, trabalhando em um salão, com uma vida aparentemente estável. Após a gravidez e algumas mudanças na vida pessoal e profissional, ela foi informada por sua irmã sobre uma ocupação em Planaltina e sua vida mudou completamente. Embora inicialmente hesitante, ela decidiu se envolver. A ocupação acabou se tornando uma forma de resistência e afirmação de direito, não apenas de moradia, mas de dignidade. Zezé relata sobre a discriminação e o julgamento social da sociedade e governantes, entendendo que muitas vezes as pessoas que lutam por moradia não são vistas em sua totalidade como seres humanos, com histórias de vida. A luta por moradia, para ela, não é apenas uma questão de ter um lugar para viver, mas também de reconhecimento, dignidade e oportunidade de ser.

Mesmo com Henrique, seu filho de 6 meses, ela passava as noites sozinha, arrumando e organizando o local, enquanto as pessoas ao redor não percebiam que ela tinha uma família, já que seu marido e filho não apareciam. Ela fez a construção de sua casa com madeira e barro, criando uma estrutura no estilo “taipa”, com a ajuda das pessoas. 

Após algum tempo, a situação tomou uma proporção inesperada quando fiscais do Governo do DF chegaram com tratores para realizar a remoção das construções irregulares. Ela tentou, de todas as formas, proteger o pouco que tinha feito para evitar que fosse derrubada, mas não conseguiu.

Mesmo com a destruição, começaram a reconstruir suas casas, com madeira e outros materiais. Durante esse processo, ela relata que os serviços de água e outros recursos eram escassos, mas a comunidade se ajudava, usando carro-pipa e comprando água do vizinho. As derrubadas continuaram, mas o grupo não cedeu. Em pouco tempo, a resistência da Zezé e seu poder de mobilização a colocaram como uma liderança. O momento de maior mudança em sua vida foi quando ela começou a se envolver mais com os movimentos sociais. Conheceu o MTST e outros movimentos que estavam organizando uma grande jornada de lutas naquele período, o que a levou a se engajar na política de defesa dos direitos à terra e à moradia. Zezé conta que foi escolhida pela comunidade para representar os moradores nas mesas de negociação com o Governo de Brasília, algo que fez com que ela entrasse para a Coordenação do MTST.

Ao todo liderou oito ocupações. Essas ações, o enfrentamento com os governos e a constante luta pela moradia são um retrato de sua persistência e força. A maneira como os movimentos e a comunidade se organizam para negociar e, ao mesmo tempo, reivindicar seus direitos, mesmo diante de promessas não cumpridas, é um exemplo claro da realidade de muitos que vivem em áreas de conflito social, político e manutenção da desigualdade em Brasília. Zezé liderou ocupações que resultaram mais de centenas de casas conquistadas.

Perguntamos para Zezé o que o movimento significa na vida dela e como é estar neste lugar que inspira tantas outras mulheres negras. Ela afirma que teve outras mulheres no movimento que a inspiraram e que não tinha dimensão da sua liderança até ser presa. Para ela, compor um movimento social com tantas negras, foi algo que a motivou a continuar e a se envolver cada vez mais. Mas ressalta que muitas vezes o reconhecimento e o espaço para essas mulheres não vêm com a visibilidade que deveriam, mesmo sendo elas as principais forças que carregam o movimento.

Afirma que o MTST não impôs uma forma de agir ou de falar, mas lhe deu autonomia e confiança para expressar suas ideias e perspectivas. A liberdade para agir e construir a sua própria narrativa dentro do movimento foi fundamental, principalmente quando se propõe a ter na linha de frente a participação de mulheres e da luta pela igualdade de gênero e raça.

Questionada sobre o que significa a falta de moradia para ela, Zezé prontamente responde que significa luta contínua e que é necessário ser feita. E o quê a moradia significa? Emocionada, Zezé traz uma reflexão muito profunda sobre o significado e como ele está diretamente ligado à nossa capacidade de seguir em frente, de lutar e de ter um espaço de cuidado. A moradia, como ela disse, não é apenas um local físico, mas um espaço de renovação energética, tanto no aspecto mental quanto físico e emocional. É a base onde se pode planejar, descansar e se preparar para enfrentar o próximo desafio, seja ele de natureza pessoal, social ou política.

“Uma moradia. Moradia significa a parte principal. Assim que é a tua, o teu ponto de reviver as energias para você. Tipo, você vai para o campo de batalha, luta, luta. E aí você precisa de novo. Então, é fortalecer para voltar de novo. Então, você tem que ter essa moradia, porque essa moradia é o espaço da moradia, é o espaço que você dá. É como eu falo, lá que trabalha teu psicológico, o teu físico, o teu mental e o teu espiritual, porque com a moradia você consegue pensar na escola, no trabalho e lazer, em outras coisas. Porque tu faz tudo isso, tendo a certeza que tu tem uma casa para voltar depois, que é esse campo de batalha que eu falo, né? E aí, a hora que a gente chega no cárcere… tramaram pra mim. É um sepultamento vivo para mim… tentaram me sepultar tanto socialmente quanto politicamente, né?! Diante da comunidade e dos espaços, só que eles não conseguiram, muito pelo contrário, eles fizeram um grande trabalho que eu não teria tempo em vida, suficiente, para fazer. Só que eles ainda não se deram conta. Do trabalho que eles fizeram, mas eles já fizeram muito, fizeram trabalho de base, fizeram trabalho de divulgação. Sempre disse, até os inimigos, que tentam fazer o mal, eles ainda conseguem fazer o bem?! Mari (Marielle Franco), eles fizeram um grande bem que nem imaginavam!”

A luta por moradia vai além de simplesmente conquistar um espaço físico. Ela está ligada a uma transformação profunda das pessoas que a vivem. Não é só sobre conquistar a casa, mas também sobre o processo de luta, de união, de fortalecimento coletivo. Como ela mesmo diz, muitas vezes, quem está no processo de luta por moradia se coloca no lugar do outro, se identifica com a dor e a luta do outro, e isso cria uma rede de apoio que vai além da conquista material.

Zezé fala algo muito bonito sobre as mulheres que encontra nesse processo. Às vezes, é difícil perceber o impacto que essas companheiras têm, o poder delas, porque muitas vezes o reconhecimento não vem de fora, mas sim de dentro da própria luta, na ação diária, na troca de experiências e no fortalecimento mútuo. As mulheres são verdadeiramente poderosas, e a luta por moradia é um espaço onde essas forças emergem de maneira muitas vezes invisível para o grande público. Mas, como Zezé menciona, é na luta que essas mulheres se revelam, se fortalecem e criam um impacto muito grande, mesmo sem o reconhecimento imediato. A luta por moradia não é um processo de conquista pessoal, mas de transformação coletiva, onde todos e todas que participam se ajudam, se aprendem e se fortalecem, de modo que até quem já conquistou seu espaço, não deixa de lutar pelos outros.

No dia 03 de junho de 2024, 28 dias após a primeira parte da sua moradia estar pronta, Zezé foi presa*. Ela estava em sua casa, passando mal, estava deitada em seu quarto quando os policiais chegaram em sua residência. Henrique, seu filho, presenciou a prisão. Ao falar sobre os últimos 7 meses, como foi estar no presídio e os motivos reais pelos quais ela acredita ter sido presa, ela cita o racismo:

“É o racismo estrutural. É, eu fui presa, né? Por conta de que, aquilo que a gente está falando não é comum, é mulher, preta, nordestina e umbandista. Vim para dentro da capital da desigualdade social, como eu já classifiquei Brasília bem antes disso e depois então… Então eu vejo que Brasília é a capital da desigualdade social. Não é normal a capital do Brasil com maior número de terra pública, e ainda é o maior déficit habitacional? Tem algo muito errado, não é?”

Zezé fala sobre a dor de ser vista como criminosa sem ser, o quanto o sistema de justiça é implacável para as pessoas mais vulneráveis, e como ele é moldado para proteger aqueles que estão no poder, enquanto oprime os que estão à margem. Ter sido presa, sem motivo justo, e convivido com tantas mulheres e histórias que mostram as injustiças da sociedade, foi uma experiência devastadora, mas ao mesmo tempo, também, uma oportunidade para enxergar o sistema de uma forma ainda mais clara. 

A sua visão sobre o cárcere, a desigualdade que presenciou e o sofrimento de tantas mulheres que foram parar lá por questões que não têm absolutamente nada a ver com a verdadeira criminalidade, é um retrato da falência do nosso sistema de justiça e das condições em que muitas pessoas vivem. As histórias que compartilha, como a da mulher condenada por roubar pão de queijo por fome é um reflexo de uma realidade onde a sobrevivência muitas vezes é criminalizada, mas nunca se olha para as causas estruturais que levam àquela situação.

Ao ser jogada em uma situação como essa, Zezé acabou se tornando ainda mais forte e mais consciente das realidades do sistema. A transformação que viveu, saindo do cárcere com um novo olhar sobre a política, a justiça e a luta por direitos, é uma verdadeira virada de chave. Mesmo ainda não tendo sido inocentada.

Sua visão também mostra um ponto crucial: a luta por direitos não é apenas sobre protestar ou pedir, mas também sobre entender e atuar nos espaços de poder, onde as decisões acontecem. Sua experiência e visão sobre o parlamento e o sistema político mostram como, para verdadeiramente mudar a realidade das pessoas, é necessário estar em lugares onde essas decisões são tomadas. O seu ponto sobre o papel dos “sem teto” no parlamento é muito pertinente. Quem já vivenciou a falta de moradia e a miséria, como tantas pessoas em nosso país, tem um entendimento muito mais profundo do que é preciso fazer para mudar essa realidade, muito mais do que aqueles que têm seus privilégios garantidos.

Ao olharmos para tudo isso, temos a certeza que a sua luta não é só pela moradia, mas pela dignidade humana e justiça social de forma mais ampla. Sua história reflete a resistência das mulheres, das pessoas marginalizadas, que tem que se desdobrar para sobreviver e, ao mesmo tempo, se tornam verdadeiras líderes na luta por um mundo mais justo. Zezé afirma que se sente “diplomada” como ativista, e devemos enxergar isso como um testemunho da sua força e da sua determinação. A luta por justiça nunca é fácil, mas pessoas como ela, que passaram por essas experiências duras e ainda assim saem mais fortes, são as que realmente transformam as estruturas injustas.

Uma experiência intensa e difícil como a prisão, pode também se tornar um ponto de reconexão com a própria força interior e com a luta coletiva. Este é um dos ensinamentos da Zezé. Longe de acreditarmos que qualquer pessoa íntegra como ela devesse passar por isso ou que as barbaridades do cárcere reintegram socialmente alguém e possam de alguma forma serem justificadas. 

Ao relatar sonhos durante as noites longas nas celas, Zezé relembra a conexão que teve com suas companheiras e sabe que isso foi fundamental para sua sobrevivência e persistência pela sua liberdade. Afirma como a solidariedade e o apoio coletivo têm o poder de renovar nossas energias e nos lembrar do nosso propósito. É uma reconexão com algo maior, algo que vai além de você mesma, mas que é essencial para sua jornada. Em muitos momentos de nossas vidas, podemos sentir que estamos perdidos, desorientados ou desconectados, principalmente quando as pressões externas são grandes e as dificuldades parecem insuperáveis. No entanto, como Zezé nos ensina, esses momentos de fé e reflexão podem nos ajudar a reencontrar o caminho, a força e a clareza para continuar a luta.

Uma mulher de fé, filha de Iansã, argumenta que sua fé é um propósito, especialmente dentro de um sistema que tenta te desumanizar, é um reflexo da força que possui e da importância da coletividade, em movimentos como este em que aguarda mais um julgamento sem ter cometido qualquer ilicitude. Assim, a força da sua fé nos Orixás a alimentaram, a protegeram e a empoderaram.

Hoje, dia 01 de fevereiro é seu aniversário. Lhe afirmamos companheira, sua jornada é uma prova de que, mesmo nos momentos mais difíceis, você não esteve sozinha, e essa conexão com as pessoas que compartilham o mesmo sonho e os mesmos desafios é o que torna a nossa luta possível. A maneira como você encontrou essa força renovada é inspiradora e mostra que, mesmo quando parece que estamos em nossos piores momentos, podemos ser capazes de encontrar dentro de nós a luz para seguir em frente. Que bom você ser essa luz que guia tantas pessoas sofridas neste país e que Xangô lhe presenteie com a justiça. Que assim seja. 

*Em junho do ano passado, Zezé foi presa, depois de ser condenada por extorsão e ameaça nas instâncias recursais. A partir de então, uma rede de solidariedade de ativistas, militantes e juristas ajuizou um pedido de revisão criminal, apontando os vícios do processo anterior. No dia 18 de dezembro de 2024, seis meses depois, o relator da revisão criminal concedeu uma liminar, suspendendo a execução da pena. Nos próximos meses, a revisão vai ser submetida a julgamento pelo colegiado do Tribunal.

“É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre…
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.”

(Carlos Mariguella)

Fotografias de arquivo da luta do MTST no DF realizadas pela equipe da Mídia NINJA DF e seus colaboradores: Oliver Kornblihtt, Matheus Alves, Nadia Nicolau, Leo Milano, Henrique Fernandes.