Por Viviane Pistache

Correr mundo, correr perigo. República é praça que pulsa cotidiano, libido e marginália, inclusive sob a vigilância da PM. São Paulo tem suas dialéticas, seiva pura da floresta de concreto. Com olhar forasteiro, o diretor mineiro Marcelo Caetano reparou bem nessas ousadias ao longo de sua filmografia. ‘Baby’, seu mais recente longa-metragem, traça uma cartografia de (des)afetos seja nas vias públicas, seja na intimidade do lar, ou dos cinemas de pegação. Uma obra que transpira masculinidade.

A sequência inicial é uma marcha que anuncia a maioridade de jovens cujas vidas podem ser institucionalizadas de múltiplas maneiras: seja no alistamento militar ou na liberdade condicional que carimba a vida de quem passou pela Fundação Casa, como uma tornozeleira invisível. É assim que o filme apresenta seu protagonista, Wellington (João Pedro Mariano), que precisa encontrar a família para certificar sua condicional após o cumprimento de medida sócio-educativa. 

Abandonado pela família, Wellington precisa sobreviver. Sem chances de abrigo até nas marquises, ter escrúpulo é um luxo. Assim, Wellington embarca numa trama de golpes juvenis que o leva até um cinema de pegação, onde a prostituição não é obrigatória, mas é bem vinda. Aqui, a ficção nos convida a uma etnografia de dark room, ou do não dito sobre a homossexualidade e seus pragmáticos refúgios de gozo fácil. 

É quando Wellington conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), eclipsando (des)amparo com cafetinagem e paixão entre Baby e Daddy. O codinome Baby começa como uma constatação carinhosa, mas quase acusatória do Ronaldo de que Wellington não sustenta o fetiche do cliente em um primeiro programa, e culmina com Wellington tomando consciência de que ser Baby é um capital valioso no mercado de sexo e afetos.

Quando Wellington escolhe ser Baby, a trama assume uma impressionante virada de maturidade nesse melodrama coming of age. Apesar de Ronaldo ter mais que o dobro da idade de Baby, a dinâmica de dependência física e emocional vai se invertendo. Ronaldo oferece um barraco a Baby, mas termina cativo da relação. 

Assim, Baby entende que é a cereja no Bailão do ABC, balada conhecida por ser frequentada por homens gays mais velhos que vão à caça sexual. Se aos 42 anos, Ronaldo ainda não tirou a sorte grande, Baby esquiva dos grilhões do azar da labuta tão interminável quanto perigosa, se apoiando na  família voguing, um refúgio da juventude queer que elege o close certo como modo de vida. 

A partir disso, Baby (sobre)vive de glitter e gilete.  Mas vender sexo no centro de São Paulo não garante as contas pagas. Desse modo, o paternalismo de Ronaldo se amplia para outros ‘corres’, como a venda de drogas ilícitas. Mais uma vez o filme aprofunda a etnografia da urbis, desvelando uma refinada vilania de personagens homossexuais capazes de muitos truques, como tráfico, talaricagem, conluio com a polícia, etc. 

Baby é um gato de muitas vidas porque sabe reinventar famílias, e sobretudo, aciona ou dispensa figuras paternas quando melhor lhe convém. Mas, nada mal encontrar um pai como Ronaldo, que é ‘99% perfeito, com aquele 1% vagabundo e safado que a gente gosta’, como canta Wesley Safadão. Opiniões hormonais à parte, Ronaldo equilibra traços que o tornam tão irresistível quanto intrigante: mesmo à espreita de clientes, consegue ser generoso; ensina a traficar, mas recrimina o uso de drogas; sustenta virtudes num mundo de corrupções; é super família, mas profundamente solitário; performa bissexualidade mas não se prostitui com mulheres; tem pinta, cordão e até relógio de cafetão, mas é ciumento; tem carranca, mas é carinhoso; é rodado mas ainda cai em armadilhas; tem senso de urgência, mas a vida não avança; é boxeador, mas toma muita porrada da vida; é malandro mas não sai da miséria. 

A alquimia de traços desse sugar daddy à brasileira resultou numa performance que consagrou o ator Ricardo Teodoro como Ator Revelação na 63ª Semana Internacional da Crítica no Festival de Cannes. De Minas para o mundo, esse preto zica também acaba de ser indicado ao International Cinephile Society na categoria de Melhor Ator Coadjuvante. Vale destacar a impressionante afinação do elenco, que tem ainda Ana Flávia Cavalcante como Priscila, ex-mulher de Ronaldo e mãe de seu filho, e Bruna Linzmeyer, que vive a Jana, companheira de Priscila, configurando um núcleo familiar onde também se aninha a Ronaldo e Baby.  

Baby’ resulta numa obra que habita a plúmbea República do Arouche com uma fotografia e direção de arte que é uma suruba de cores que nocauteia a cromofobia e por conseguinte, a homofobia. O filme é ainda uma carta de amor a São Paulo, por sua acolhida a quem escolhe famílias que não se rendem á heteronormatividade compulsória. 

Assim, personagens errantes devido à migração forjada pela homofobia encontram refúgios tanto em lugares sem esperança quanto em lugares libidinosos; desvelando cicatrizes e segredos invisibilizados na pólis. Na toada dos refrões do cancioneiro paulistano, ‘Baby’ nos lembra que existe amor em São Paulo ainda que o filho chora e a mãe não vê. Torre traçada por cabra macho, São Paulo é como o mundo todo. Mas ‘Baby’ subverte o fluxo ostentando prazer na cara dos caretas, já que o gozo queer é perigoso. 

Foto: Leo Lara/Universo Produção

Viviane Pistache é preta, mineira, pesquisadora, roteirista, curadora e, de vez em quando, crítica de cinema.