Cinco vezes agroecologia: experiências no Rio de Janeiro
De agricultura em favelas a uma cozinha solidária de emergência, como cinco redes e movimentos sociais promovem segurança alimentar no estado
Texto e fotos: Raquel Torres
“A gente faz muitas coisas, mas tem sempre essa dificuldade de resgatar a memória e sistematizar as nossas ações”: a fala é de Andreza Araújo, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), mas sintetiza uma dificuldade vivida por vários movimentos sociais. Há tanto trabalho a ser feito que muitas vezes faltam pernas para promover a chamada sistematização de experiências – um procedimento metodológico que permite produzir conhecimento a partir das práticas sociais, por meio de uma interpretação crítica dos processos vividos.
O trabalho envolve compreender, registrar e re-ordenar as experiências, e é importante porque ajuda a identificar aprendizagens que podem ser compartilhadas, tanto para melhorar a própria experiência quanto para inspirar outros movimentos. Além disso, essas aprendizagens são potenciais indutoras de políticas públicas sustentáveis.
Por isso, o MPA e outros quatro movimentos ou redes atuantes na região metropolitana do Rio de Janeiro receberam com entusiasmo a chamada para participarem da segunda etapa do projeto Afluentes do Rio, que lhes ofereceria apoio para sistematizar experiências. O projeto – promovido pela Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), coordenado pela organização AS-PTA e financiado pelo Agroecology Fund – já havia tido uma fase inicial em 2023, quando um mapeamento no estado identificou 260 iniciativas de abastecimento popular e solidário. A segunda fase, que se desenrolou ao longo do segundo semestre de 2024, foi dedicada à sistematização de cinco das experiências mapeadas, desenvolvidas pelo MPA, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Rede Favela Sustentável (RFS), e a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), esta a partir do trabalho da Rede Ecológica.
Entre os critérios para a escolha das experiências, estavam o foco no envolvimento ativo de mulheres e jovens, a atuação com populações de baixa renda e o fortalecimento de organizações e coletivos nas comunidades.
Comida, diversão e arte
O MPA decidiu analisar o Raízes do Brasil, que funciona em um casarão no bairro de Santa Teresa e promove a conexão entre campo e cidade. Criado em 2017, o Raízes vai ao encontro dos objetivos do “Plano Camponês: Aliança Camponesa e Operária por Soberania Alimentar”, lançado dois anos antes pelo movimento como uma estratégia concreta para enfrentar os desafios as e os agricultores camponeses familiares, estreitar a aliança entre eles e os trabalhadores da cidade e garantir segurança e soberania alimentar. Hoje, o projeto envolve direta indiretamente cinco mil famílias.
O espaço do Raízes funciona como um centro logístico para a distribuição de alimentos – as “cestas camponesas”, que conectam diretamente agricultoras e agricultores e consumidores. Há também um café da manhã camponẽs, que acontece todos os sábados, além de uma loja com alimentos não-perecíveis e uma feira com produtos frescos produzidos pelo MPA.
Apesar das conquistas, ainda há muitos desafios, especialmente no que diz respeito ao acesso de famílias em situação de vulnerabilidade aos alimentos. Em 2016, foi iniciada uma parceria entre esse movimento e o MTST com a doação de alimentos do MPA para cozinhas solidárias. Mas, no geral, os representantes do MPA envolvidos na sistematização avaliam que a falta de subsídios públicos não permite reduzir o preço das cestas camponesas, de modo que o preço final dos produtos fica elevado, principalmente por conta do alto custo da logística.
Algumas estratégias estão sendo pensadas para dar conta disso. Entre elas, estão um programa de cestas solidárias – em que consumidores que podem pagar mais ajudariam a subsidiar as cestas destinadas às comunidades de baixa renda – e uma cozinha solidária para oferecer refeições nutritivas para comunidades economicamente vulneráveis.
De acordo com Andreza, a ideia é expandir o Raízes para outros estados, o que já começou a acontecer. “Temos espaços físicos na Bahia, no Sergipe, no Piauí e em Santa Catarina – neste último, o espaço ainda está sendo organizado. E todos têm essa mesma ideia de ser uma ligação [entre campo e cidade], de ter alimento do campesinato dentro das grandes cidades”, diz. Também está em andamento a abertura de um espaço do Raízes em Campinas (SP), ainda em 2025.
Do campo às mesas das periferias
Facilitar o acesso de comunidades vulneráveis a alimentos nutritivos foi o objetivo do projeto Periferia Viva: Nós por Nós contra o coronavírus, idealizado no contexto da pandemia de covid-19, quando a fome quadruplicou no estado do Rio. Realizado em uma parceria entre o MST, o Levante Popular da Juventude e o Movimento Brasil Popular (MBP), o projeto teve seu embrião no período mais severo da pandemia e, entre 2023 e 2024, foi executado a partir de um edital lançado pela Fiocruz.
O projeto foi realizado em oito territórios periféricos da região metropolitana do Rio e em assentamentos do MST no Sul do estado. A sistematização se concentrou em três ações realizadas em comunidades da capital (horta comunitária na Penha, cozinha solidária na Rocinha e feira popular em Cavalcanti) e no trabalho de produção de alimentos nos assentamentos.
A horta da Penha, no Morro do Sereno, foi criada numa pequena área em declive onde antes se acumulava lixo, e é mantida por 20 mulheres da comunidade com apoio técnico do MST. Os alimentos colhidos – como aipim, abóbora, milho, folhosas e temperos – são usados em almoços coletivos e distribuídos de graça em feiras populares. A horta atende a cerca de 80 famílias, e deu tão certo que o grupo de mulheres está procurando um espaço maior para ampliar a produção, mesmo após o fim do projeto.
Na Rocinha, uma das maiores favelas do país, o Periferia Viva fortaleceu as ações da Cozinha Solidária Tia Irani, que já atuava há muitos anos. Com o apoio do projeto, cozinha foi reinaugurada com equipamentos novos e com ampliação da capacidade de produção e armazenamento de alimentos.
Já no Morro da Primavera, bairro de Cavalcanti, o projeto organizou feiras populares, com alimentos da reforma agrária sendo dispostos em mesas para que as famílias se servissem conforme suas necessidades e desejos. Cada feira distribuiu quase uma tonelada de alimentos e beneficiou, em média, 80 famílias.
No Sul do estado, o projeto conseguiu a organização de quatro Unidades de Produção Agroecológica de Combate à Fome nos assentamentos Roseli Nunes (no município de Pirai) e Irmã Dorothy (em Quatis). Todas estão estruturadas em sistemas agroflorestais, produzindo hortaliças para feiras e cozinhas solidárias. Além disso, com apoio do Periferia Viva, os assentamentos conseguiram organizar o plantio de frutíferas e árvores nativas da Mata Atlântica. No ano passado, foi organizada uma visita de moradores de todos os territórios periféricos contemplados pelo projeto ao assentamento Roseli Nunes, para um mutirão de plantio e colheita de hortaliças.
De mãos dadas
A experiência da Rede CAU também veio das necessidades impostas pela pandemia: a Campanha Campo e Favela de Mãos Dadas Contra o Coronavírus e a Fome nasceu em 2020 para apoiar tanto famílias em insegurança alimentar, como agricultoras e agricultores que passavam por dificuldades para escoar seus produtos.
Em parceria com a Rede Ecológica – que promove a compra direta de produtos agroecológicos para consumidores do Rio há mais de 20 anos –, a campanha arrecadou doações individuais e conseguiu recursos de um edital da Fiocruz para comprar alimentos de produtoras e produtores locais e doá-los a famílias em situação de vulnerabilidade.
A sistematização foi construída a partir de rodas de conversa que a Rede CAU e a Rede Ecológica organizaram com produtoras e produtores, beneficiários e voluntários. “Nesse processo, pudemos dialogar com as pessoas dos territórios, as agricultoras e agricultores, o pessoal da Rede Ecológica e todos os envolvidos. Foi muito bacana ver as trocas e reflexões individuais que iam sendo fomentadas pela rememoração coletiva. Foi, então, um movimento muito rico para termos a compreensão do que a campanha significou para cada um”, avalia Luany Ferreira Marques, membro da Rede Ecológica que foi responsável pelo relatório da sistematização. De acordo com ela, o processo ainda serviu para que se pensasse sobre o futuro da campanha e como ela pode se reorganizar no momento presente.
Agroecologia urbana
A Terra Prometida é uma comunidade rural com casas simples, chão de terra e muita mata no Complexo da Penha. Fica na Serra da Misericórdia – a última área verde de Mata Atlântica em toda a Zona Norte do Rio –, e sofre com a falta de infraestrutura e de serviços urbanos, além de graves problemas de segurança pública.Lá, moradores se organizaram para criar em 2011 o Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), com atividades em diversas frentes, como reflorestamento, fomento de quintais produtivos e ações de educação. Por sua importância na comunidade no que diz respeito à soberania alimentar, a atuação do CEM foi a experiência que a Rede Favela Sustentável (RFS) escolheu sistematizar no projeto Afluentes do Rio. A Rede é formada por centenas de integrantes em mais de 300 favelas do Rio, incluindo a Terra Prometida, e trabalha em 11 eixos de atuação – entre eles, está o eixo Soberania alimentar.
Na verdade, quando recebeu o convite para participar do Afluentes do Rio, a RFS viu uma oportunidade para sistematizar não apenas uma de suas experiências, mas também todo esse eixo de soberania alimentar. “Como a gente trabalha com o fortalecimento de cada projeto integrante da rede, fazia muito sentido para nós fazer as duas coisas. Então aproveitamos para organizar tudo o que já foi construído dentro desse eixo. Isso nos fez perceber o quanto já fizemos nos últimos anos – esse é um dos eixos mais fortes dentro da Rede”, explica Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras (ComCat), ONG que mantém a equipe de gestão e facilita os processos da Rede Favela Sustentável.
Uma grande roda de conversa no CEM, com mais de 30 pessoas, foi organizada para subsidiar a sistematização. O grupo mapeou dezenas de atividades que foram ou estão sendo realizadas pelo CEM, e se percebeu que hoje o Centro se organiza principalmente em torno de cinco áreas: agroecologia e plantio (incluindo agrofloresta e quintais produtivos); fortalecimento das mulheres; geração de renda; incidência política, e iniciativas voltadas para a juventude e por meio das escolas.
Um modelo necessário
Na noite de 15 de fevereiro de 2022, uma chuva rápida mas incrivelmente volumosa provocou a maior tragédia climática já vivida pelo município de Petrópolis, na região Serrana do Rio. Foram 235 mortes e milhares de desabrigados ou desalojados, e boa parte da cidade ficou intransitável por conta dos escombros.
Poucos dias após o desastre, militantes do MTST se organizaram para montar uma cozinha solidária de emergência na cidade – e foi essa a experiência que o movimento decidiu sistematizar, em um processo que envolveu duas grandes oficinas, além de conversas individuais com pessoas que participaram da implementação da cozinha em Petrópolis.
“Fizemos essa escolha por ser uma ação cada vez mais necessária no contexto de crise climática”, avalia Vinícius. Não por acaso, o MTST avalia que uma das conquistas resultantes dessa experiência foi o desenvolvimento de uma estratégia para levar cozinhas solidárias a outros estados, em contextos de emergência. Em 2024, isso foi feito em Porto Alegre (RS) e em Rio Branco (AC).
A organização da cozinha solidária foi articulada com militantes do PSOL, que encontraram um imóvel disponível com dormitórios e uma estrutura de cozinha industrial, e com o MPA, que forneceria vegetais, ovos, arroz e feijão por meio do projeto Solidariedade Sem Veneno, financiado pela Fiocruz. Outros ingredientes, como macarrão, óleo e frango, foram comprados em mercados locais com recursos arrecadados pela campanha.
De acordo com o documento de sistematização, o movimento conseguiu agir com rapidez durante a tragédia em Petrópolis porque já tinha bagagem acumulada em duas cozinhas solidárias no estado: a Cozinha Solidária do Sapê, em Niterói; e a Cozinha Solidária da Lapa, no Centro do Rio.
Em apenas quatro dias de atuação em Petrópolis, foram entregues mais de 1,6 mil refeições feitas por mais de 20 voluntários. Na semana seguinte, militantes voltaram à cidade por outros quatro dias e distribuíram mais 1,6 mil quentinhas. A partir daí, a cozinha passou a ter ações mensais, que se estenderam até julho daquele ano.
Desdobramentos
Todas essas experiências mostram como ações articuladas em redes e movimentos sociais podem transformar realidades, mesmo nos contextos mais desfavoráveis. A sistematização dessas ações é importante não apenas para os próprios movimentos envolvidos – que constroem um conhecimento estruturado sobre elas – como para outros que queiram multiplicá-las. Mais que isso, as sistematizações são fontes de informação sobre a realidade na qual as experiências estão inseridas e sobre as reivindicações dos grupos envolvidos, podendo contribuir para a geração de incidência política.
Para que esse conhecimento seja compartilhado, a AS-PTA irá consolidar os documentos produzidos, que estão disponibilizados em seu site.