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Lorde Lazzarus: “Tem drag kings no Brasil!”
De mapeamento a concurso dedicado a drag kings, transformista e produtor cultural dedica seu trabalho para colocar artistas no mapa
Por Felipe Mesquita
Onde estão os drag kings? Foi essa a pergunta que motivou o Censo Drag King, um levantamento que busca mapear pessoas que exploram essa arte e estética no Brasil. O drag king e produtor cultural Lorde Lazzarus é o responsável pelo desenvolvimento da pesquisa que começou em 2022 e já teve mais de cem respostas: “O objetivo deste mapeamento é colocar os drag kings no mapa, quase que literalmente. Mostrar “Olha, existem drag kings no Brasil!”. O levantamento quer investigar uma série de questões, que vão desde identificar onde estão esses artistas até descobrir o que motivou eles a se montar. “Essa pesquisa é uma sementinha para o meu futuro mestrado, se tudo der certo”, revelou Lazzarus. “Precisamos de eventos e espetáculos que empreguem drag kings. Precisamos de fomento e subsídio de dinheiro público para alimentar essa classe de artistas”.
Dar visibilidade e espaço para esse segmento artístico tem sido um esforço do produtor cultural nos últimos anos. “Não temos lugar em festas e eventos grandes, não temos lugar em nenhum espaço. Então precisamos fazer algo para mostrar que os drag kings são incríveis e tem tanto talento quanto as drag queens”, explicou.
Em 2021, Lorde Lazzarus criou o primeiro concurso voltado exclusivamente para drag kings no Brasil, o Concurso KING OF KINGS, cuja primeira edição ocorreu virtualmente por causa da pandemia. Dois anos depois, a segunda edição da competição teve a oportunidade de acontecer presencialmente no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo. A competição, que teve Rud Fiamino e Egon Maurice LaSand como ganhadores da primeira e segunda edição, respectivamente, teve uma boa repercussão midiática na época e foi divulgada em diversos veículos. “Foi maravilhoso, foi uma das melhores sensações da minha vida”, contou o criador do evento.
No Artista Foda desta semana, conversamos com Lorde Lazzarus. Confira a entrevista abaixo:
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Você começou como drag king em 2001. De lá pra cá, você sente que houve alguma mudança em como a arte drag king e os artistas são vistos dentro da cena drag?
Olha, eu acho que sim, mas essa mudança se deu muito devagar. Para começar, a gente tem alguns artistas que exploram o que eles chamam de “andróginos”. É o termo que eles usam. Eles são “os andróginos”. Geralmente são pessoas AMAB (Assigned Male at Birth – Designados Homens ao Nascer), homens gays que já são veteranos, alguns têm 40 ou 50 anos de carreira, e eles exploram essa estética da masculinidade também. Tem por referência alguns personagens de desenho, de filme, de videogame e se inspiram também em artistas como Boy George, David Bowie e Ney Matogrosso. Então a gente tem os homens que sempre estiveram explorando isso também.
Acho que arte é para todo mundo. Assim como acho que eu, como pessoa AFAB (Assigned Female at Birth – Designada Mulher ao Nascer) posso ser uma drag queen. Quando fiz o meu concurso, todo mundo podia participar. Nós tivemos três homens cis participando do concurso, e um deles foi finalista, que foi Hera Now (ficou em terceiro lugar). Acho que isso não é um impedimento. Esses caras sempre trabalharam essa estética.
Eu também faço uma pesquisa, que é o “Censo Drag King”, em que eu tô mapeando as pessoas que se montam, que experimentam a estética, que fizeram personagens masculinos no teatro, no cinema ou para alguma coisa, para alguma performance e também pessoas que atuam como drag kings. Eu senti que o impulso mesmo veio, aqui para nós, com a participação do Landon Cider no [The Boulet Brothers’] Dragula. Ele ganhou, e acho que isso deu um “boom”, e todo mundo quis aprender a se montar e quis experimentar também. Só que a gente tem atividades de kings muito anteriores ao fenômeno do Landon Cider, que é tipo eu, né? (risos), que é o Piratas de Gênero, que foi criado a partir de uma provocação de um coletivo no Rio de Janeiro, uma experimentação partindo dos escritos do filósofo Paul B. Preciado.
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A gente tem um coletivo na Bahia chamado Cabaré Drag King, que acontece desde 2013 sob o comando de Adriana Prates. Esse foi o primeiro coletivo drag king, primeiras ações drag kings – até onde a minha pesquisa foi. Tem a Renat no Rio de Janeiro, que faz uma pesquisa, também fez mestrado e, inclusive, me entrevistou para o mestrado dela. Ela também se monta de king, fez parte do Piratas de Gênero.
Em 2016 ou 2017, o [coletivo] Kings of the Night foi fundado em Curitiba, sob o comando da Rúbia Romani e de Carol Winter. Depois disso acho que cresceu bastante. Aí, a gente fez o concurso em 2021, no formato online. Aqui em São Paulo tem o Don Valentim, que tem bastante projeção e fez o documentário “All That Drag”, que foi um documentário de uma drag queen, a Maluvitta. No Rio de Janeiro tem o Helinho do Rio, um king que já tem mais de 50 anos (de idade). Helinho participou do nosso concurso. Se monta há oito anos. Oito anos também já é um tempinho.
Eu acho que melhorou um pouquinho, sabe? Um pouquinho. Por que eu digo que melhorou só um pouquinho? Eu escrevi um texto para o Grafia Drag sobre isso: Por que as pessoas ainda têm medo de drag king? [O festival] Realness, em 2024, colocou um drag king no line up, que é o Pietro Lamarca. Pietro foi o primeiro drag king a se apresentar na Realness, só que o nome dele era o último no flyer [de divulgação]. Isso foi muito emblemático: mostrar o local em que os drag kings ocupam em um line grande.
Na Festa Priscilla (São Paulo) nunca teve um drag king. O Piratas de Gênero não existe mais. Esse ano o pessoal da Bahia fez um evento grande chamado Cena King 2024, tiveram várias atividades envolvendo kings. Então, assim, todo dia plantando uma sementinha, cresce uma plantinha. Se vai adiante, se vai virar uma árvore, a gente não sabe. Eu fiz o concurso. Foram duas edições, passaram mais de 45 pessoas pelo concurso incluindo os jurados, então acho que o pessoal tá descobrindo o que é king e tá achando legal, mas dizer que a gente tá incluído, dizer que a gente tá na cena, que a gente tem trabalho, não… sabe? Acho que ainda tem um longo caminho.
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Você se mudou de Santa Catarina para São Paulo em 2019. Isso impactou de alguma forma o seu trabalho como artista e produtor?
Ah, impactou bastante, porque é muito caro produzir em São Paulo. Para alugar um teatro, vai, no mínimo, 7 mil reais, então a gente só conseguiu fazer no Teatro Maria Della Costa porque conseguimos uma parceria. Inclusive, o teatro fechou durante a pandemia porque o gestor do teatro faleceu. Aqui é muito caro para alugar um lugar, é muito difícil. Elas não estão dispostas a aceitar a sua pauta. Elas dizem: “Ah, eu não sei se isso aqui é muito relevante para o nosso espaço”, sabe? Esse tipo de coisa.
Aqui em São Paulo nós temos uma coisa muito preciosa que é um teatro só para produções LGBT, que é o “CC Diversidade” (Teatro Décio de Almeida Prado). Eu estou há cinco anos mandando e-mails, ligando, e eu não consigo pauta no CC Diversidade, nem para o meu espetáculo, nem para os meus concursos, nem para as minhas oficinas ou meus shows. Em Santa Catarina eu conseguia alugar a Casa da Cultura de Itajaí, que tem um teatro pequeno, para 100 pessoas, mas a casa toda é grande. Você pode dar uma oficina e no mesmo dia fazer show, fazer um festival, por 150 reais. O Teatro Municipal Bruno Nitz, em Balneário Camboriú, eu aluguei 500 reais para o dia inteiro. Eu alugava o Teatro Municipal de Itajaí também por 500 reais. Aqui em São Paulo, você tem que pagar três mil reais por hora para utilizar um teatro, o que impacta muito na hora de montar luz, dar uma passadinha [ensaiar], então isso prejudicou bastante o meu trabalho aqui.
Como surgiu o concurso King of Kings?
Pensei assim: “Pô, a gente nunca viu um king no Drag Race”. A gente não tem lugar em festas e eventos grandes, a gente não tem lugar em nada. A gente precisa fazer alguma coisa, onde a gente possa mostrar que os drag kings são incríveis e tem tanto talento quanto as drag queens, e que são capazes de qualquer coisa, se não fazer até melhor, né? Porque as pessoas AFAB, como eu sempre digo, tem que fazer cinco vezes mais para serem reconhecidas.
Foi quando pensei: “E se a gente fizesse um concurso só com drag kings?” Seria uma oportunidade tanto de os kings mostrarem os seus talentos e ter uma plataforma adequada para isso, serem julgados de forma adequada, ter um júri que vai olhar para eles com carinho, que não vai deixá-los em último lugar. Mas, também porque vai ser uma forma das pessoas se sentirem interessadas em conhecer [os drag kings]. Eu queria fazer um concurso e que ele tomasse lugar no teatro, não na boate.
A Plasticine Produções acredita que a arte é educação e que a arte precisa ser fruída por todos os públicos. Eu não foco só no público LGBT nas minhas produções. Eu sou uma pessoa LGBT, mas eu quero que todo mundo assista: criança, adulto, idoso, pessoas de todas as idades, de todas as culturas e todos os credos. Eu quero que as pessoas estejam lá. Fazer o concurso no teatro fez com que as famílias fossem prestigiar, fez com que jovens, crianças, adolescentes, pessoas mais velhas que são fãs de transformismo fossem. Isso é uma coisa que eu já fazia com o meu espetáculo e foi uma coisa que eu fiz com o King of Kings. Foi uma forma de a gente ter um evento voltado 100% para drag kings e onde eles recebiam um tratamento mais adequado para as necessidades deles como artistas.
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Claro que a gente não deixou tão barato assim. Não é porque é king que a gente vai passar a mão na cabeça, não. Eles tinham que fazer uma maquiagem bonita, um figurino bonito, fazer um número bonito. Eu tirei do repertório deles Ney Matogrosso, David Bowie, Freddie Mercury, porque senão dá 15 Freddie Mercury, 15 David Bowie (risos). Eles tinham que ser criativos, buscar por outras referências, referências queer fora do queer também, porque a gente tem, por exemplo, Sidney Magal que é uma grande referência para king. A gente tem Beto Barbosa, a gente tem Falcão, que é uma referência para mim, por exemplo. Eu fiz com que eles buscassem na nossa cultura, valorizando o que é nosso, sabe? E foi lindo, foi muito especial.
Eu fico muito triste de não poder fazer o [Concurso] King of Kings todos os anos, porque ainda não teve alguém que se destinou a patrocinar, para ajudar a fazer ou então um equipamento público aqui de São Paulo que se abra para receber ou contrate a gente, que contrate o concurso. O concurso nasceu dessa necessidade de a gente mostrar que os kings existem, e dar um palco especial para eles, para a galera conhecer o trabalho dos drag kings.
O concurso já teve duas edições. Como foi ver esse projeto sair do papel?
Foi muito emocionante! A primeira vez, quando a gente fez online e estava todo mundo dentro de casa foi aquela incerteza. Um misto de “a gente não sabe se a gente vai ter que se adaptar a esse tipo de coisa para o resto das nossas vidas” ou se vai sair disso algum dia, porque não havia previsão de vacina. A primeira vez foi muito especial, porque eu não imaginava que tanta gente ia se inscrever, eu não imaginava que tanta gente ia se dedicar. Vinte pessoas em uma finale é muita gente. Se você acompanhar os episódios, vai ver o tanto de criatividade, o tanto de esforço que essas pessoas colocaram na competição, o quanto essa plataforma reverberou. Era gente do Brasil inteiro participando. Essa é a vantagem que o evento remoto te dá, de poder participar gente de todo lugar. Então, teve uma diversidade cultural, uma diversidade de sotaque, de abordagens, de informações. Foi muito gostoso, eu fiquei muito emocionado.
Mas também sofri muito ódio, sofri muito hate. Não só de gente de fora, como de outros drag kings, de outras pessoas que julgaram o concurso, de incentivar a competitividade entre pessoas AFAB. Eu falei: “Gente, não é isso. Não é uma competição tóxica. Nem toda competição precisa ser tóxica. A gente não tá no esporte aqui.” Drag não é um esporte, drag é uma forma artística, e concurso é uma é uma tradição da arte LGBT. Nós temos concursos de drag queen, que é o “Miss Gay”. Infelizmente ainda é “Miss Gay”, mas o certo seria ser “Miss Drag Queen”. A gente tem concurso, faz parte da nossa história. Silvetty Montilla começou a carreira dela fazendo “Miss Drag Queen”. Não pode dizer que isso é tóxico para sempre, tem forma sadia de se fazer isso. Quando fizemos ano passado no teatro foi demais. Eu quase morri, porque eu tive que performar, apresentar o concurso, fazer toda a produção, fazer divulgação, fazer redes sociais, receber inscrição, criar formulário, fazer tudo. A gente fez tudo sozinho, com o “salário do Professor Raimundo”. No final do dia, eu estava exausto, mas muito realizado, muito feliz. Quando a gente digitou “Concurso King of Kings” no outro dia no Google, apareceu um monte de coisa, era um monte de gente mandando as matérias e falando: “Olha isso! Olha a gente na capa do Terra! A gente tá no G1”. A gente tá em todo lugar”. Foi maravilhoso, foi uma das melhores sensações da minha vida.
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Que impacto a realização do concurso King of Kings teve na cena drag king?
Teve um impacto muito positivo, porque muita gente começou a se montar para o King of Kings e hoje tem uma carreira. Muita gente começou a se montar, muita gente começou a experimentar, muita gente fica me perguntando todo o ano “Ah, quando vai rolar o próximo? Eu quero me inscrever.” Gerou essa onda de montação e trouxe bastante trabalho para essas pessoas, pois muitas foram chamados para fazer vários eventos. Inclusive Vicente Van Goth, cuja carreira acredito que estava um hiato. Eu não sei como que esqueceram de Vicente no Rio, sendo esse artista muito foda, um drag king muito foda. De repente Vicente fez o concurso conosco, e ele não parou mais de trabalhar. Ele participou até do Drag Star. Foi finalista, mas deveria ter ganhado. Acho que reverberou muito bem para a comunidade drag king. Acho que se hoje a gente está tendo muitos eventos drag king sendo idealizados e produzidos ao longo do país, o concurso King of Kings tem bastante influência com relação a isso. Até para ajudar a fortalecer os eventos que já existiam, porque deu aquela força e aquele impulso de “Olha, vamos continuar, não vamos desistir, porque tem alguma coisa acontecendo lá também. Tem um concurso que saiu em todo lugar aí”.
Além disso, eu acho que é uma forma de mostrar que os drag kings têm uma arte tão relevante quanto a das drag queens, e gerar empregabilidade, porque eu acho que artista não pode viver de vento. A gente não pode ficar o resto da vida confinado no quarto tirando foto e postando no Instagram. A gente quer trabalho também. A gente quer dinheiro e arte, quer aparecer também. Apareceram documentários, apareceram os eventos grandes e começaram a prestar um pouco mais de atenção nos drag kings.
A partir daqui a gente só tem a crescer. Eu já recebi várias propostas e orçamentos de eventos que, infelizmente, não puderam sair ainda, mas quando saírem vão ser babadeiros. Eventos com foco nos drag kings. Então, acho que impactou positivamente a cena, ajudou a desenvolvê-la. Querendo ou não é um projeto pioneiro, um projeto que ainda vai reverberar muito, especialmente se a gente puder continuar fazendo.
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Você está desenvolvendo o Censo King. O que é esse levantamento? Em que estágio está a pesquisa?
O Censo Drag King é um mapeamento de pessoas que exploram a estética drag king, por exemplo, se um dia você quisesse montar e experimentar essa estética, você poderia responder o Censo. Não tem problema nenhum porque a experimentação também faz parte do processo de montação, de criação de persona, de desenvolvimento de habilidades e até de libertação dessa masculinidade tóxica que todo mundo sofre com ela, né? Não é só a gente, por exemplo, pessoas AFAB que sofre. Vocês também sofrem, porque vocês são cobrados o tempo todo para ter uma postura, uma masculinidade que não faz bem para ninguém. O Censo Drag King quer saber tanto das pessoas que se montaram uma vez, poucas vezes ou para um projeto, como para quem já atua como drag king. Saber onde essas pessoas estão, porque elas começaram a se montar, qual é a idade delas, qual é a que atividade que elas estão exercendo, a escolaridade delas, os gênero delas, tudo isso está dentro da pesquisa.
A pesquisa está rolando há dois anos. Essa pesquisa é uma sementinha para o meu futuro mestrado se tudo der certo. Eu quero ver se levo isso para o mestrado porque eu quero que na academia isso se expanda, porque daí vai virar pesquisa científica, vai virar dado, vai virar estatística e a gente vai saber como tem gente se montando de drag king no Brasil. Antes de eu começar uma última chamada esse ano para o Censo, eu já tinha tido mais de 100 respostas. São mais de 100 performers ou pessoas que estão experimentando e que responderam ao Censo. Eu quero saber quais são as referências, onde essas pessoas estão. Tem brasileiro na gringa se montando. Tem gente em tudo quanto é lugar. Eu descobri, por exemplo, muito mais gente se montando no meu estado do que eu imaginava eu achava assim. Eu nem imaginava que tinha drag king no meu estado. Tem. Tanto que veio um para cá e ganhou o concurso.
O objetivo é esse, mostrar esses dados para as pessoas e dizer “ó, a gente tem uma comunidade artística aqui firme, forte e lutando, e a gente precisa de palco para esse pessoal. A gente precisa de evento que empregue, a gente precisa de espetáculo. A gente precisa de fomento e de subsídio de dinheiro público para a gente alimentar essa classe de artistas. Onde estão os drag kings hoje, né? Se pegar os eventos do Sudeste e Sul, a gente não vai ver nenhum. Se você tiver um, vai ser muito. O meu objetivo com esse mapeamento é colocar os drag kings no mapa, quase que literalmente. Mostrar “ó, tem drag kings no Brasil”.