Por Ricardo Carvalho

Um filme bancado por estadunidenses, de produção francesa e com elenco essencialmente hollywoodiano contando uma história sobre o México já levanta, por si só, desconfianças. A arte, contudo, tem seu jeitinho de nos surpreender e, o que inicialmente soa como algo extremamente colonial, estereotipado e até preconceituoso, pode acabar sendo uma linda e comovente obra. Vou além, até quando não chega a ser uma grande peça e lidamos com um filme com todos esses problemas, sendo o Cinema uma expressão artística tão ampla, coletiva e multidisciplinar, é possível tirar algo de positivo: seja uma boa fotografia, montagem ou uso de som, por exemplo. Infelizmente, “Emilia Pérez” não se encaixa em nenhum dos casos dessa minha visão um tanto otimista.

Coescrito e dirigido pelo francês Jacques Audiard, Emilia Pérez conta a história de Rita (Zoë Saldaña), uma advogada frustrada com seu trabalho e seu salário, que aceita uma oferta milionária e inusitada. Rita deve ajudar Manitas (Karla Sofía Gascón), um líder de um cartel de drogas, a se aposentar dos negócios e realizar uma transição de gênero. O filme segue, principalmente, a vida da personagem após o processo de transição para Emilia Pérez, mostrando toda sua nova jornada.

Este enredo, que à primeira vista parece algo interessante, afinal é raro ver Hollywood reconhecer histórias com personagens e estrelas trans como protagonistas, se entrega a uma série de tropos que acabam reafirmando as principais narrativas transfóbicas e racistas que circulam pela sociedade ocidental. A estrutura do filme se baseia na premissa de divisão sexual da violência, onde temos o homem violento e a mulher pacífica, reafirmando a simplista binaridade de gênero, sendo otimista. Para piorar, ao trazer Manitas como um brutal líder do narcotráfico, o longa torna essa premissa ainda mais problemática por atestar o tropo da pessoa trans que mascara um passado de crimes, assassinatos e até mesmo psicopatia. Existe uma cena onde Emilia perde o controle e ameaça sua ex-mulher Jessi (Selena Gomez) com a voz rouca, evocando seu “antigo eu” Manitas, como se sua vivência como mulher fosse esconder seu antigo gênero, seu passado, sua psicopatia.

Foto: Divulgação

Não obstante, o roteiro escrito por Jacques Audiard, Thomas Bidegain e Léa Mysius ainda sustenta mais um lugar comum sobre a transgeneridade: a percepção de que somente através da cirurgia de mudança de sexo a identidade trans se dá por completa. O equívoco escancara bem o fato de que nenhum dos roteiristas parece ter o mínimo de conhecimento sobre o principal tema do longa. O texto até tenta amenizar esse tropeço, apelado para uma roteirada ao dar à personagem Manitas uma única fala exageradamente explicativa de que já havia iniciado o controle hormonal anos antes. O diálogo, porém, acaba atestando a ideia de que esse processo só foi feito em busca da aptidão de Manitas para as tais cirurgias. Nessa visão transfóbica, também não poderia faltar o ápice da representação estereotipada e preconceituosa do que foge à heterocisnormatividade: a personagem trans morre ao final. Parece que não há escapatória, nem mesmo dentro de um enredo de suposta redenção, algo tão vangloriado na indústria.

Por falar em redenção de um passado criminoso, assassino e psicopata, aliás, essas são, essencialmente, as palavras que definem os homens mexicanos neste filme. Manitas afirma isso com todas as letras, e de forma extremamente expositiva, ao tentar justificar as razões pelas quais ele não abraçou sua transgeneridade mais cedo: ele não tinha outra maneira de ter sobrevivido sem ter se entregado à brutalidade do narcotráfico e do crime. Não bastando estereotipar as dinâmicas sociais do México e seus homens através dos diálogos, as caracterizações das personagens no filme reforçam cada sílaba. Neste ponto, o trabalho do figurino cumpre um papel tenebroso – ou excelente, já que supre bem a ideia do diretor que parece ser a de reafirmar a todo tempo um preconceito colonial e racista com o país e seus nacionais.

Nada pode ser tão ruim que não possa piorar. Em determinado momento do filme, com alguns temas já saturados pelos exageros e abordagens simplórias, o roteiro traz uma súbita vontade de Emilia Pérez em compensar seu passado de crimes através da filantropia. Essa nova e repentina bilionária mexicana decide, através do seu “altruísmo feminino”, resolver a crise dos desaparecidos forçados, uma realidade brutal que assola o país e vem crescendo nos últimos anos. A personagem passa a cobrar de seus antigos associados do crime a localização das suas próprias vítimas – é isso mesmo que você leu. Nem mesmo o número musical que mostra o rosto de diversas vítimas desta crise humanitária ameniza a abordagem simplista, ilusória e absurda do filme.

Há uma cena, em especial, que parece um escárnio com o povo mexicano, onde Emilia dá uma entrevista a um jornal local e seu único discurso é sobre o quanto ela ficou revoltada com o fato de que as autoridades não investem dinheiro suficiente nas investigações. Pronto, agora tá resolvido! É de uma falta de tato com a realidade e de uma insensibilidade com temas tão delicados que me faltam palavras. Não me entenda mal, a ficção não precisa ser um documentário e se prender a fatos ao ponto de sacrificar a narrativa, mas a insistência no desprezo colonialista que assola a América Latina há séculos é desnecessário, principalmente em uma obra que se vende como diversa aos prêmios internacionais.

Filmado quase todo na França, Audiard também imprime na arte do filme uma visão definitivamente colonizadora para representar o México. Cidades escuras, sujas, pessoas sofridas, paisagens “exóticas”, etc. A lista é enorme. Nesse exotismo, não poderia ser diferente que a personagem trans seja uma coleção da tipificação mexicana da mulher rica: exagerada, colorida, um tanto brega e alienada da realidade que a cerca. Tudo é embrulhado em uma saturação de cores com uma marcação de sombra que tenta indicar uma dicotomia, mas a falta de nuance nas personagens e em seus componentes destrói qualquer esforço inventivo da fotografia. Além disso, os cenários são pedestres e também reforçam o exotismo que percorre o filme e sua narrativa. Há uma sequência que mostra o encontro final de Rita e Manitas, antes da sua cirurgia de redesignação sexual, que é de uma caricatura abjeta. Na composição das cenas, temos um terreno árido aberto cheio de cascalhos e pedregulhos rodeado de carros em uma pegada latina à la “Velozes e Furiosos”, sem uma função dramática, nem mesmo realista-fantástica. Parece que Audiard apenas quer retratar aquela paisagem que estamos tão acostumados em Hollywood: o México dos desertos. Por outro lado, há de se reconhecer que o diretor evitou o uso do filtro sépia (sic).

De vez em quando, ao longo das suas duas horas e dez de duração, somos lembrados que “Emilia Pérez” é um filme musical. Se não me falha a memória, o filme tem uns três números musicais de fato, o resto é uma tentativa enfadonha de sustentar o rótulo de musical através de supostas canções que nada mais são do que conversas ritmadas. Tudo bem, tudo bem! Aqui poderíamos abraçar uma espécie de realismo fantástico ou até dar crédito à tentativa de misturar alguma coisa da TV mexicana com Hollywood (desculpe, mas não dá para tratar esse filme de outra maneira), se isso fosse executado com algum sucesso. Existe, entretanto, pouca coisa que funcione nessas tentativas. O resultado nada mais é do que uma colcha de retalhos onde os fracos números musicais, diegéticos ou não, não entram em harmonia e os diálogos melodramáticos quase aleatórios em meio a tudo isso dão um choque que não agrega às temáticas, nem à narrativa e nem às personagens. As poucas coreografias são de uma preguiça que parece que faltou orçamento aqui.

Não me entenda mal, se o realismo fantástico latino era a ideia, por que se reprimir ao ponto dos números musicais serem tão enxutos? Para uma obra que trata os números musicais como algo fantasioso, fincar os pés deles no chão se aproximando da realidade, ao ponto de serem tão enxutos, acaba demonstrando que o longa não parece não saber ao que veio. Ou seja, até nisso a direção de Audiard é covarde.

“Emilia Pérez” é um filme que parte de uma história de escopo enorme, tentando abraçar tantos temas e justificá-los de tantas (e equivocadas) formas, que falha em praticamente tudo que se propõe. O resultado é uma obra carregada de racismo, transfobia, exotismo antilatino e de binarismo de gênero simplório. Com tudo isso, conteúdo e forma se contradizem o tempo inteiro e o filme acaba reforçando narrativas coloniais e patologizantes da transição de gênero e do México. Além das tragédias temáticas, o filme é uma grande bagunça estilística. Falha como musical, se perde enquanto drama e não alcança o melodrama mexicano que tanto tenta emular através de clichês.

A audiência acaba rindo de absurdos quando a obra se propõe ao naturalismo sério e seco e fica indiferente quando o filme se propõe ao absurdo fantasioso. Dentre tantos desastres, pelo menos o trio de atrizes protagonistas entrega boas atuações. Os papéis, contudo, são tão rasos e caricatos que é até difícil a devida apreciação do trabalho de Zoe, Karla e Selena. A impressão final que fica é que “Emilia Pérez” foi concebido inteiramente por engravatados com o único propósito de “roubar” os prêmios de língua não-inglesa da forma mais irresponsável possível, apelando para uma diversidade capitalista da pior espécie.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.