‘Babygirl’, um filme com medo de si mesmo
Os erros e acertos de um filme que quase chega lá
“Uma CEO coloca sua carreira e família em risco quando inicia um tórrido caso amoroso com um estagiário”. A sinopse de “Babygirl”, thriller erótico dirigido, roteirizado e produzido pela holandesa Halina Reijn, despertou meu interesse. Como já comentei ao falar sobre “Rivais”, tenho um interesse particular por filmes que abordam questões sexuais e como seu impacto social desafia o moralismo conservador. Estava especialmente animada porque estamos falando de uma mulher num papel de liderança, então, quem sabe, finalmente alguém decidiu fazer um filme mainstream sobre uma mulher dominadora e não dominada, como gostam de retratar no contexto sadomasoquista.
Porém, ao ver o trailer, foi rápido para perceber que essa não é a história que o filme se propõe a contar — e tudo bem. É interessante explorar que, quando uma pessoa se apresenta como dominante em muitos aspectos da sociedade, acaba um espaço onde pode simplesmente obedecer sem pensar. Muitas vezes, esse espaço é o sexo. E, dada as vezes em que vi memes no TikTok de mulheres se jogando no colo dos seus parceiros depois de serem “guerreiras” o dia todo, é uma alegoria onde muitas se enxergam.
Lançado no 81º Festival Internacional de Cinema de Veneza, o filme competiu pelo prestigioso Leão de Ouro. A estreia nos cinemas foi feita pela dinâmica A24 nos Estados Unidos e, agora, chega ao Brasil. O elenco traz a premiada Nicole Kidman e o britânico Harris Dickinson, que já não pode ser considerado desconhecido após “Triângulo da Tristeza” e duas indicações ao BAFTA (e o número crescente de fanfics com seu nome). Para completar o trio central, temos o apaixonante Antonio Banderas. Se você não tá com água na boca pelo que pode acontecer, você leu errado.
O filme começa com um estrondo: gemidos de Nicole preenchem os ouvidos, mas há algo de errado, algo de falso naquilo. A tensão cresce nos takes seguintes, mesmo enquanto a vida monótona e cinza de Romy é apresentada. Entendemos rapidamente que não é apenas o sexo do casal o problema; toda a construção de Romy até o topo da empresa é entediante. O filme quer nos fazer acreditar que Samuel, o novo estagiário, pode ser uma distração-solução para isso, mas para mim, os problemas são gritantes demais.
Talvez aqui o barreira seja o meu olhar, mas simplesmente não me convenci que Nicole é a manda-chuva da empresa. E isso é importante – a simples correção feita por sua assistente durante a gravação de um infomercial transmite que Romy não está no controle, então o arquétipo de que ela é uma pessoa poderosa desmorona. Ela transparece desesperada por atenção. Logo, não há entrega de poder se não há poder para ser tomado. Romy entrega isso de bandeja.
As cenas que desenvolvem o caso entre os dois, sofrem de um problema recorrente no filme: um ritmo que lembra a prática do edging (onde o orgasmo é constantemente adiado). Halina Reijn não tem medo em colocar Nicole nua no quadro, ou mostrar atos lascivos como beber leite de forma provocativa, nem mesmo colocá-la de quatro ou compará-la a uma cachorra, mas parece hesitar em explorar as consequências dessas cenas. Não estou clamando por um filme pornô, estou suplicando pelas entrelinhas. Ficamos desejando takes mais longos, conversas mais profundas e desejos mais explícitos. Queremos que a audiência também “goze”, e não apenas (finalmente) a protagonista.
Há gratas exceções. Em um dos encontros iniciais, o fetiche de Romy é normalizado, um exemplo do quanto a comunidade kinky compreende que tudo é válido desde que consensual. Outro momento significativo é quando Romy oferece aftercare (cuidado pós-sessão) a Samuel, garantindo que ele se sinta bem com tudo o que aconteceu. Geralmente, o aftercare é associado ao submisso, mas é importante que os dominantes também recebam suporte. Infelizmente, essa cena é arruinada com um diálogo digno das novelas geradas por IA que temos visto nas páginas de meme, justamente pela forma que ela jura que ele não é um cara mau.
O grande problema para mim neste cenário é que este é um filme que utiliza contexto sadomasoquista e não um caso extraconjugal baunilha. E quando isso acontece, senhoras e senhores, é preciso sentar e falar dele, o famoso consenso. Quando ele se apresenta na tela, vem de forma confusa, num jogo de poder torpe que no fim se torna uma chantagem deslavada. Não são duas coisas que deveriam andar juntas, não sem alguma consequência narrativa. E se junta isso com cérebros de mulheres que foram negadas à educação sexual e altamente impressionáveis pela escassez de softporn feita para elas, é um risco que não sei se precisamos correr.
Passado os deslizes, existem cenas constrangedoras interessantes, como a briga de Jacob e Samuel, onde ele demonstra que técnicas de dominação nada mais são do que formas de acolher sentimentos. E neste embalo, até o marido traído é “dominado”.
Ah, gostaria de adicionar a minha tese de que uma mulher como Romy nunca seria uma CEO, o fato de que no fim ela é pressionada por todos em sua volta: sua assistente, filha, marido e claro, seu caso extraconjugal, todos conseguem a forçar contra parede até o ponto onde tudo que resta é beber deitada no sofá.
Independente disso, é importante destacar o fato de que quem interpreta esta mulher é Nicole Mary Kidman, vencedora do Oscar, Emmy, Globo de Ouro, SAG, BAFTA, Cannes, Berlim, Veneza e atualmente da inveja das donas do fã-clubes de Harris Dickinson. Poucas se arriscaram nessa altura da carreira como ela e estão enfrentando uma tour de imprensa tão desconcertantemente deliciosa. Esse é o tipo de enredo que obriga a atriz a sustentar o filme nas costas por onde passa e é isso que ela tem feito. Vai ser uma pena vê-la perder a indicação do Oscar para Fernanda Torres no dia 19 (tô manifestando, me deixa).
O filme termina e a redenção da personagem não se dá só quando ela coloca um dos sócios no seu devido lugar por tentar recriminá-la por uma prática comum entre os homens (ainda é crime viu, galera!), mas sim por apresentar um debate exalado em cada suspiro dos seus 114 minutos:
Tudo bem trair se for para realizar uma fantasia sexual?
Para mim, o grande mérito desse filme é fazer essa pergunta para mulheres. E se reparar bem, estamos numa safra de boas histórias para elas, onde uma porcentagem suculenta das indicadas ao Globo de Ouro passam pela faixa etária de Romy (Tilda Swinton, 64 anos / Demi Moore, 62 anos / Fernanda Pikachu Torres, 59 anos / Pamela Anderson, 57 anos / Nicole Kidman, 57 anos / Karla Sofía, 52 anos / e Amy Adams, 50 anos).
Então, repito a provocação do filme. Sem conexão romântica, especialmente se isso vai curar lugares que seu marido nunca conseguiria, é possível buscar realização sexual sem que isso atrapalhe sua vida afetiva, profissional e familiar? A resposta parece ser: Não se antes combinar com todo mundo.
Então, aprenda com os erros da garotinha: Se combinar direitinho, todo mundo transa.