Dignidade nas cozinhas: A importância
A gastronomia é muito mais do que comida no prato.
Por Vanessa Santos e Gustavo Guterman, publicado originalmente no blog Comida RJ-CE
Restrito é o olhar de quem acredita que a gastronomia se limita ao entretenimento! Superficial é o entendimento de quem ignora os ecos da complexa trilha que um alimento percorre até chegar ao prato, movimentando economias inteiras. E desinformado é quem desconsidera a representatividade cultural e a profundidade simbólica de um hábito alimentar para um grupo social. A gastronomia é muito mais do que comida no prato. Ela não é maior que a cultura, mas é, de fato, a cultura que se come. A gastronomia é ciência, tradição e inovação. É química, design, saúde, política e movimento social. É uma força invisível, mas poderosa, que conecta milhões de pessoas em suas rotinas, celebrações e momentos de vulnerabilidade.
No Brasil, onde a insegurança alimentar ainda afeta milhões, a gastronomia se apresenta como uma ferramenta essencial para transformar realidades. Por meio dela, combatemos a fome, promovemos inclusão social, sustentamos economias locais e preservamos identidades culturais. Cada refeição servida carrega consigo uma cadeia de esforços que começa nos pequenos agricultores e chega às mãos habilidosas de cozinheiros(as) profissionais. Esses profissionais não apenas preparam alimentos; eles têm em suas mãos a responsabilidade de moldar e direcionar os hábitos alimentares de uma geração. São eles que oferecem conforto em momentos de dificuldade, resgatam histórias através dos sabores e transformam o ato de comer em uma experiência de conexão, pertencimento e identidade.
Este artigo pretende mergulhar na diversidade das cozinhas brasileiras para oferecer diversos ângulos de interpretação, não apenas chamando a atenção para a importância de cada uma delas na sociedade, mas também propondo outros olhares para a prática profissional. Mais do que apresentar pratos ou técnicas, buscamos mostrar como a gastronomia é um pilar essencial para o funcionamento do país, ligando comunidades, preservando histórias e fortalecendo economias. Da merendeira em uma escola, que educa as crianças para um futuro mais saudável, sustentável e diverso, ao cozinheiro em um restaurante, que transforma a tradição em expressão, a gastronomia é o alicerce invisível que sustenta uma nação. Reconhecer e valorizar seu impacto é o primeiro passo para construir uma profissão mais justa, digna e reconhecida.
COZINHA INSTITUCIONAL
As cozinhas institucionais, presentes em escolas, hospitais, asilos e outros aparelhos do Estado, são pilares fundamentais para a segurança alimentar e a cidadania. Mais do que preparar refeições, esses espaços moldam hábitos, oferecem conforto e promovem dignidade. Nas escolas, as merendeiras (cozinheiras profissionais) desempenham um papel central na formação do gosto e na educação alimentar das crianças – o futuro da sociedade. Por meio de programas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado em 1954, quando corretamente aplicado, elas preparam refeições nutritivas para milhões de estudantes diariamente. Esse trabalho não só nutre, mas também ensina. Crianças expostas a uma alimentação saudável na escola desenvolvem padrões de consumo mais conscientes e saudáveis, que moldarão suas escolhas futuras. Quando integrado ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o PNAE assegura que alimentos frescos, provenientes da agricultura familiar, cheguem às escolas, fortalecendo tanto a saúde dos estudantes quanto a economia local. Nos hospitais, cozinheiras e cozinheiros oferecem conforto em momentos de maior fragilidade. Dietas personalizadas são preparadas para acelerar a recuperação de pacientes e promover bem-estar. Já nos asilos, refeições adaptadas atendem às necessidades dos idosos, garantindo saúde e qualidade de vida. Essas cozinhas, conduzidas por profissionais dedicados, transcendem o ato de alimentar – elas cuidam de vidas.
COZINHA CORPORATIVA
As cozinhas corporativas, localizadas em grandes empresas, fábricas e indústrias, sustentam a força de trabalho brasileira. Mais do que uma comodidade, essas cozinhas são estratégicas para a produtividade e o bem-estar dos funcionários. Estes cozinheiros(as), acompanhados de nutricionistas, garantem refeições equilibradas que mantêm a energia ao longo do dia, impactando diretamente a saúde e a qualidade de vida dos trabalhadores. Além disso, refeições no ambiente de trabalho economizam tempo e dinheiro, promovendo maior satisfação e eficiência. Esses espaços também fortalecem o ambiente corporativo, criando momentos de integração entre colegas e um clima mais harmônico. Ao alimentar milhares de trabalhadores diariamente, essas cozinhas desempenham um papel essencial na economia e na sustentabilidade do setor produtivo, reafirmando o impacto da gastronomia no funcionamento da sociedade. O PAT – Programa de alimentação do trabalhador, criado em 1976, tomou como referência o PNAE, justamente por ter o mesmo objetivo. Ao aderir ao programa, que prioritariamente busca atender trabalhadores de baixa renda, para contribuir com a qualidade nutricional dessa população, as empresas têm benefícios fiscais.
COZINHA DE JORNADA
As cozinhas de jornada desempenham um papel crucial na vida de milhões de brasileiros, atendendo à necessidade de refeições rápidas, práticas e acessíveis em um mundo cada vez mais acelerado. Presentes em restaurantes, lanchonetes e serviços de entrega, essas cozinhas oferecem muito mais do que nutrição: elas são o combustível que mantém a produtividade e o ritmo das cidades. Esses espaços se destacam pela agilidade e eficiência, respondendo à crescente demanda de trabalhadores que precisam de soluções alimentares práticas durante sua rotina. O desafio enfrentado pelos profissionais que atuam nessas cozinhas é notável. Eles precisam equilibrar qualidade, sabor e custo, enquanto lidam com o tempo reduzido para preparo e uma grande diversidade de perfis de consumidores. Desde um executivo que precisa de uma refeição saudável e rápida entre reuniões, até trabalhadores autônomos que buscam opções acessíveis para garantir sua energia ao longo do dia, essas cozinhas se adaptam constantemente para atender a diferentes necessidades.
Além de atender à demanda por refeições práticas, as cozinhas de jornada têm um impacto significativo na economia local. Eles são responsáveis por movimentar cadeias produtivas inteiras, desde os fornecedores de insumos até os serviços de logística e transporte. Cada prato preparado gera investimentos diretos e indiretos, fortalecendo pequenos negócios e contribuindo para a economia das cidades. Restaurantes, lanchonetes e empreendimentos de entrega, muitas vezes administrados por pequenos empresários, se tornam pontos de apoio para comunidades urbanas e suburbanas. Além disso, essas cozinhas desempenham um papel essencial na democratização do acesso à alimentação. Elas oferecem opções que, mesmo em cenários econômicos desafiadores, garantem que pessoas de diferentes classes sociais possam ter acesso a refeições balanceadas e nutritivas. Esse aspecto é especialmente relevante em um país como o Brasil, onde desigualdades estruturais muitas vezes limitam o acesso a uma alimentação adequada.
COZINHA INVISÍVEL
As cozinhas invisíveis são o retrato do esforço silencioso que sustenta a sobrevivência de muitos. Em sua essência, são espaços informais, muitas vezes improvisados em cozinhas domésticas, onde se preparam marmitas e refeições acessíveis que chegam às mãos de trabalhadores e pessoas em situação de vulnerabilidade. Essas cozinhas, embora invisíveis para grande parte do mercado gastronômico formal, são fundamentais para alimentar quem mais precisa, oferecendo não apenas sustento, mas também uma alternativa econômica e acessível para muitas famílias.
Para as cozinheiras e cozinheiras que operam essas cozinhas, o trabalho vai além do sustento próprio: é uma forma de transformar suas habilidades em um ofício que alimenta comunidades inteiras. Sem salão, sem sofisticação, mas com muita dedicação, essas cozinhas são verdadeiros exemplos de resiliência. Enquanto seus pratos carregam o sabor do lar, eles movimentam uma economia subterrânea que, embora informal, é robusta e crucial para o setor de alimentação. Num contexto de desigualdade e insegurança alimentar, as cozinhas invisíveis são pontos de apoio silenciosos, muitas vezes os únicos capazes de fornecer refeições dignas a preços acessíveis. Elas conectam histórias de luta e superação, reafirmando o papel da gastronomia como uma ponte entre a necessidade e a esperança. Invisíveis para muitos, mas essenciais para tantos outros, essas cozinhas provam que, mesmo na simplicidade, há espaço para transformar vidas.
COZINHA SOLIDÁRIA
As cozinhas solidárias representam a essência da solidariedade e do compromisso social na gastronomia. Elas se consolidaram como uma tecnologia social de combate à fome, regulamentada pelo Decreto nº 11.937/2024 , de 5 de março de 2024, e criada pela Lei nº 14.628/2023 , que estabelece o objetivo de fornecer energia gratuita e de qualidade para a sociedade em situação de vulnerabilidade socioeconômica e insegurança alimentar. O Programa Cozinha Solidária , uma iniciativa do governo federal, formaliza e apoia essas ações organizadas pela sociedade civil. As cozinhas solidárias são normalmente instaladas em territórios vulneráveis, estrategicamente localizadas para atender às necessidades da população local. Cada unidade possui gestão própria e pode ampliar seu impacto social ao desenvolver outras atividades de interesse coletivo, como oficinas de formação. O programa permite que entidades privadas sem fins lucrativos realizem atividades de forma direta ou indireta, desde que cadastradas e credenciadas exclusivamente por meio do portal eletrônico oficial. Essas cozinhas são reconhecidas como essenciais para combater a fome e promover a segurança alimentar, unindo esforços do governo e da sociedade civil para atender a quem mais precisa.
Exemplos como a Quebrada Alimentada , que surgiu no restaurante Mocotó durante uma pandemia, e as cozinhas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) ilustram o impacto desse modelo. A Quebrada Alimentada, por exemplo, já fez mais de 100 mil refeições e projeta a construção de uma cozinha-escola comunitária. Durante a pandemia, iniciativas como essas salvaram inúmeras famílias da fome e continuaram a transformar vidas, mostrando que cozinhar é, também, um ato político e cultural. Ao regulamentar e fortalecer o programa, o governo federal reafirma o papel das cozinhas solidárias como pilares da transformação social e da garantia do direito básico à alimentação, criando redes de solidariedade e organização popular capazes de combater as desigualdades e promover a dignidade humana.
COZINHA DE ENTRETENIMENTO
As cozinhas de entretenimento são espaços onde a gastronomia se transforma em celebração, criatividade e preservação cultural. Elas atendem diversas camadas da sociedade, oferecendo cardápios e estruturas que vão desde botecos e cafés, que são verdadeiros cenários de memórias históricas, até restaurantes sofisticados, onde amigos e famílias se encontram para comemorar conquistas e criar novos momentos de convivência. Mais do que alimentar, essas cozinhas conectam pessoas, histórias e territórios.
Nos botecos, bares e cafés, a gastronomia encontra a informalidade que convida ao encontro e à troca de histórias. Esses espaços são guardiões de memórias afetivas, onde um prato ou uma bebida carrega o peso da tradição e o conforto do conhecido. O café da manhã em uma padaria, a cerveja no bar ao final de um dia de trabalho ou o petisco compartilhado em um boteco não são apenas atos de consumo, mas experiências que reforçam laços e criam uma sensação de pertencimento. Esses estabelecimentos, muitas vezes modestos, desempenham um papel fundamental na vida cotidiana, aproximando comunidades e preservando a identidade cultural.
Por outro lado, restaurantes familiares oferecem um cenário mais intimista, onde cozinheiros(as) promovem encontros que vão além do prato. É nesses lugares que famílias se reúnem para comemorar aniversários, celebrar conquistas ou simplesmente passar um tempo juntos. O ato de compartilhar uma refeição nesses momentos vai muito além do alimento em si – é uma celebração de vínculos, uma oportunidade de reconexão e fortalecimento de relações. Esses ambientes transformam a gastronomia em uma linguagem universal, capaz de unir diferentes gerações ao redor da mesa.
Já nos restaurantes que oferecem experiências mais elaboradas, a gastronomia atinge um nível ainda mais simbólico. Nesses espaços, cada detalhe – desde a escolha dos ingredientes até a apresentação do prato – é projetado para criar memórias únicas. Cozinheiros(as) pesquisam incessantemente novos ingredientes, experimentam técnicas e desenvolvem combinações inéditas, promovendo um diálogo constante entre a tradição e a modernidade. Muitos estabelecimentos formam parcerias com produtores locais, conectando o cliente às histórias e saberes por trás dos alimentos, transformando o ato de comer em um ato de aprendizado e preservação cultural.
Independentemente do formato, as cozinhas de entretenimento desempenham um papel vital na construção de uma sociedade mais conectada. Elas preservam culturas alimentares, criam oportunidades econômicas e, acima de tudo, aproximam as pessoas. Seja no aconchego de um restaurante familiar, no charme de um café de esquina ou na inovação de um restaurante de alta gastronomia, esses espaços reafirmam a capacidade da gastronomia de transformar encontros cotidianos em experiências inesquecíveis.
TRANSFORMAÇÃO
A diversidade das cozinhas brasileiras reflete a complexidade de nossa sociedade. Cozinhas institucionais moldam o futuro ao educar crianças e cuidar dos mais vulneráveis. Cozinhas corporativas sustentam a produtividade, enquanto cozinhas de jornada garantem que a força de trabalho continue em movimento. Já as cozinhas de entretenimento celebram a cultura alimentar, conectando inovação e tradição e promovendo o encontro entre pessoas e histórias. Os profissionais que atuam nas cozinhas brasileiras – sejam merendeiras (cozinheiras profissionais) em escolas, chefs em restaurantes renomados ou cozinheiros(as) em pequenos negócios – desempenham papéis fundamentais na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e conectada. Por meio de sua prática, alimentam não apenas corpos, mas também memórias, culturas e economias inteiras. Invisibilizados em muitas situações, esses profissionais merecem reconhecimento pleno, valorização e condições de trabalho que reflitam sua importância na estrutura social.
Ao alimentar o presente, esses cozinheiros(as) moldam o futuro. Eles educam o paladar de crianças, garantindo uma relação saudável e sustentável com a alimentação. Oferecem conforto em momentos de fragilidade, como em hospitais e asilos, e criam experiências de celebração e pertencimento em restaurantes e cafés. Além disso, conectam a população aos pequenos produtores locais, promovendo práticas sustentáveis e fortalecendo economias regionais. Cada prato servido é parte de uma cadeia de esforços que une cultura, economia e responsabilidade social.
No entanto, a realidade que enfrentam muitas vezes não condiz com a importância de sua atuação. Jornadas exaustivas, baixa remuneração, insegurança trabalhista e falta de regulamentação deixam esses profissionais expostos a condições precárias. Isso não afeta apenas suas vidas, mas também compromete a qualidade da alimentação oferecida à sociedade. Garantir direitos justos e delimitar deveres claros para cozinheiros(as) é uma pauta de interesse público e uma necessidade para fortalecer a cadeia produtiva da gastronomia. A regulamentação da profissão não é apenas uma questão de dignidade, mas também de segurança e eficiência. Ela protege os profissionais de jornadas insalubres, assegura a valorização econômica e estabelece padrões de qualidade para o consumidor. Em um campo onde os erros podem ter consequências diretas para a saúde da população, regulamentar é garantir que todos – do cozinheiro ao cliente – estejam amparados por um sistema que respeita direitos e deveres.
CAMINHOS
Reconhecer a gastronomia como um pilar estruturante de nossa sociedade exige que olhemos com atenção para quem a torna possível. Investir na valorização e proteção desses profissionais é essencial para preservar as tradições, impulsionar inovações e assegurar a continuidade de um campo que conecta passado, presente e futuro. É também um caminho para reduzir desigualdades e construir uma sociedade mais ética e equilibrada.
Neste especial de artigos, já exploramos as nuances de uma realidade que é ao mesmo tempo árdua e essencial. Em “O Trabalho,” abordamos o que significa ser cozinheiro(a) no dia a dia. No segundo artigo, “A Luta,” mergulhamos na batalha diária dos profissionais da gastronomia pela valorização e dignidade no trabalho, destacando os desafios estruturais que os aprisionam em um ciclo de exaustão e precarização. Neste artigo, “A Importância,” destacamos o papel fundamental da gastronomia na sociedade, desde as cozinhas comerciais até as institucionais, como as escolares, que combatem a fome e promovem a inclusão social.
No próximo artigo,“A Formação”,exploraremos o papel da formação profissional no amadurecimento da gastronomia no Brasil. A educação, essencial para uma profissão mais estruturada e respeitada, vai além das salas de aula, qualificando profissionais, disseminando saberes e valorizando culturas alimentares. Com um olhar transversal, a gastronomia dialoga com economia, produção local, sustentabilidade e inclusão social. Refletiremos sobre como a formação de qualidade prepara novos cozinheiros(as) para os desafios contemporâneos, impulsionando avanços na prática profissional, na valorização das cadeias produtivas e nas políticas públicas, alinhando o setor às demandas sociais e econômicas do país.
**Este texto faz parte da série especial “A Dignidade,” em que o professor Gustavo Guterman discute a necessidade urgente de regulamentação e de condições de trabalho justas para cozinheiros(as), com base em exemplos internacionais que demonstram o impacto positivo da regulamentação. Na série, trataremos da regulamentação como um caminho para que cozinheiros(as) tenham seus direitos garantidos e sua saúde e bem-estar preservados, protegendo esses profissionais de condições insalubres e jornadas excessivas.
SOBRE OS AUTORES
” Juntando o nosso tempo de trabalho dedicado à Gastronomia dá 45 anos! Cozinha, gestão, coordenação de cursos, sala de aula, fóruns, congressos, textos, blog, e muita, muita dedicação pela Gastronomia. Por ela, para ela, por respeito a todos que fazem parte, tentamos juntar a experiência dos dois para contribuir com a profissão que garante que as pessoas comam, que garante saúde, alegrias e sentimentos. – Vanessa Santos e Gustavo Guterman, professores de gastronomia e produtores de conteúdo no blog Comida RJ-CE.