Walter Salles retrata o luto e a busca por justiça durante a Ditadura Militar em ‘Ainda Estou Aqui’
Filme é uma obra corajosa e relevante, que resgata as sombras de um passado recente e incômodo
Por Noelle Pedroso
“Ainda Estou Aqui”, filme dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello, é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, e tem sua mãe, Eunice Paiva, como eixo central da história. A trama começa com uma família feliz, vivendo uma rotina tranquila – passeios na praia, sorvete e sorrisos compartilhados –, mas uma atmosfera tensa paira a cada cena. Enquanto as crianças se distraem com preocupações infantis, como um cachorro abandonado ou uma bola de vôlei, os adultos enfrentam silenciosamente a realidade opressora de um país sob a ditadura militar.
Ambientado em um dos períodos mais rigorosos do regime, o filme usa cores claras e vibrantes no início, até que o drama da família ganha forma com a prisão de Rubens Paiva. Ex-deputado e engenheiro, Paiva foi levado por agentes do regime. Embora afastado da política ativa, ele ainda apoiava discretamente famílias, exilados e presos políticos, mantendo sua posição contra o autoritarismo brutal que dominava o Brasil entre 1964 e 1985.
A partir de seu desaparecimento, Salles mostra com sensibilidade o impacto na família. As cores vibrantes dão lugar a uma paleta escura, e a fotografia adota um tom sombrio e intimista, refletindo a ausência angustiante de Rubens. A mudança no estilo visual enfatiza o contraste entre o “antes”, marcado pela alegria e união familiar, e o “depois”, com o vazio e a incerteza devastadora sobre o destino de Rubens.
Fernanda Torres, conhecida pelo público brasileiro por seus papéis cômicos, entrega uma atuação poderosa e contida como Eunice Paiva. Sem alívio cômico, ela assume o papel da dona de casa que, de um lado, mantém a rotina e cuida dos cinco filhos, e, de outro, enfrenta a dura realidade imposta pelo desaparecimento do marido. Eunice transita entre o esforço de manter a família unida e o peso de uma luta silenciosa, que exige que ela esconda dos filhos a dor e o medo crescente.
Em uma das cenas mais intensas, Eunice e sua filha de 14 anos são levadas ao quartel para interrogatório, onde enfrentam torturas psicológicas. Salles intensifica a tensão com uma trilha sonora de sons ambiente, explorando vozes distantes e gritos que sugerem a violência sem mostrá-la diretamente. Essa técnica remete ao filme “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer, e envolve o espectador em uma experiência de terror psicológico.
Com o tempo, a família tenta retomar a normalidade: as crianças voltam à escola e reencontram amigos, enquanto Eunice, mantendo as aparências, retorna aos estudos e segue em sua luta por justiça. Mesmo sem respostas e enfrentando o silêncio sobre o paradeiro do marido, ela persiste, determinada e resiliente.
“Ainda Estou Aqui” é uma obra corajosa e relevante, que resgata as sombras de um passado recente e incômodo. Em tempos de ressurgimento de ideologias autoritárias, o filme ganha ainda mais peso, oferecendo uma narrativa latino-americana verdadeira e comovente sobre a luta contra a opressão e pela memória.
Quanto ao Oscar, uma premiação que frequentemente valoriza suas próprias ilusões e perpetua uma visão idealizada do mundo, não é raro ver a escolha de filmes que reforçam uma narrativa americana centrada no heroísmo militar e no patriotismo. Quase todos os anos, ao menos um filme sobre a Primeira Guerra Mundial ou conflitos históricos similares é incluído na lista de indicações, consolidando a guerra como um ato nobre, um sacrifício em nome de uma causa maior e nacionalista. Essa repetição constante contribui para criar uma memória coletiva moldada por uma ótica unilateral, onde a bravura e a lealdade nacional são exaltadas, enquanto as questões e interesses econômicos ou imperialistas que motivaram tais conflitos são omitidos.
Em contraste, histórias que expõem contradições e críticas ao papel das grandes potências são, muitas vezes, ignoradas. O Oscar, voltado em grande parte para celebrar a indústria norte-americana e suas narrativas, raramente concede espaço a perspectivas que desmistificam essas “verdades” ou que trazem uma visão externa e crítica, sobretudo quando essas histórias desafiam o legado de poder dos próprios Estados Unidos no cenário mundial.
Assim, uma atriz que incorpora uma figura de resistência contra um regime autoritário, especialmente um regime que, direta ou indiretamente, contou com apoio financeiro ou político dos EUA, encontra pouco espaço na celebração da academia. Sua atuação pode ter sido impecável, trazendo humanidade e profundidade a uma personagem real de luta e sacrifício, mas o simbolismo dessa premiação parece não tolerar histórias que confrontam a visão de mundo que o próprio Oscar se compromete a enaltecer.
Ao ignorar uma atuação que dá voz a vítimas e heróis de resistências esquecidas, o Oscar confirma seu papel não apenas como uma celebração da arte, mas também como um meio de difundir uma narrativa política e cultural que beneficia seus próprios interesses. Nesse contexto, a premiação não apenas nega reconhecimento àqueles que ousam resistir, mas também reafirma uma ferida histórica: a de que os mesmos regimes autoritários que atacam liberdades e vidas encontram, no cenário internacional, aliados e apoios silenciosos. Essa omissão é uma forma de censura sutil, que, ao mesmo tempo em que celebra alguns feitos, deslegitima outras vozes e histórias, deixando claro quais memórias merecem um palco e quais devem permanecer silenciadas.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.