Falta comida nas terras do Tio Sam? A crescente insegurança alimentar nos EUA
Para onde estão indo os dólares americanos, que não para alimentar sua população?
Por Mateus Ribeiro Silva e Thiago Lima
Publicado originalmente em OPEU – Observatório Político Americano
No mês de setembro, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês) lançou o relatório “Household Food Security in the United States in 2023”, que trata da (in)segurança alimentar no país no nível doméstico, com base em dados de 2023. A partir do mapeamento e da análise do comportamento de famílias com ou sem crianças, dos gastos com alimentos e do acesso delas aos programas assistenciais, o documento apresenta informações sobre a prevalência da insegurança alimentar no país. O que se observou foi que a insegurança alimentar cresce no território da superpotência, mesmo com a diminuição da inflação.
Contexto histórico
Pode parecer estranho, ao menos às pessoas menos familiarizadas com o contexto doméstico dos Estados Unidos, que a nação estadunidense conviva com a fome durante toda a sua história. Em primeiro lugar, o processo de formação nacional baseado na colonização impôs a fome às populações nativas, inclusive como estratégia de dominação. E, do século XVIII ao começo do XX, escravidão, crises climáticas, guerras civis e revezes econômicos também resultaram em processos de fome, ainda que assimetricamente distribuídos no território e entre grupos populacionais, sempre em maior prejuízo das populações não brancas.
Com a chegada à condição de superpotência, após a Segunda Guerra Mundial, criou-se uma percepção de que a mais poderosa economia mundial teria superado essa vulnerabilidade própria do mundo atrasado ou “em desenvolvimento”. Josué de Castro foi um dos pioneiros a descortinar a coexistência da fome em meio à opulência, em seu Geopolítica da Fome, publicado em sua primeira versão definitiva em 1951 (Lima, 2023). Muitos anos depois, em 1968, a situação se tornou gritante quando a empresa de televisão CBS exibiu o documentário “Hunger in America”, onde se viam crianças em condições esquálidas, em contraste absoluto com a prosperidade dos chamados “Anos de Ouro” do capitalismo. Na esteira desta denúncia nacional, em 1969 o então presidente Richard Nixon convocou a Conferência da Casa Branca sobre Alimentação, Nutrição e Saúde para debater o tema (Kennedy, Dwyer, 2020). Esta situação contrastava com a alardeada bonança da chamada “Era de Ouro” do Capitalismo, ou os 25 anos gloriosos desde a Segunda Guerra Mundial.
Matéria da CBS sobre o documentário, que continua relevante e atual (Fonte: canal da CBS no YouTube)
Nos anos seguintes, os Estados Unidos desenvolveram e ampliaram políticas de assistência social, tornando, inclusive, mundialmente famoso o programa Food Stamps – vouchers para a aquisição de alimentos a preços subsidiados em estabelecimentos conveniados. Criado originalmente em meio à crise de 1939, foi encerrado em 1943, em meio ao boom econômico e à ampliação de exportações agrícolas decorrentes da Segunda Guerra. Deram impulso fundamental para a criação da escala de segurança alimentar, que inspirou a Escala Brasileira de Segurança Alimentar (EBIA) e de políticas de nutrição saudável. Nova denúncia contundente da fome em território estadunidense veio à tona, no entanto, com a publicação do livro American Hunger, que rendeu um prêmio Pulitzer ao jornalista Eli Saslow.
A situação se deteriorou com a pandemia da covid-19, levando o presidente Joe Biden a convocar a Conferência da Casa Branca sobre Fome, Nutrição e Saúde em 2022, 53 anos após sua predecessora. Esta Conferência, contudo, não parece ter produzido os resultados desejados, conforme os dados revelados neste ano e que analisamos a seguir.
O estado da insegurança alimentar nos EUA
A segurança alimentar é compreendida neste contexto como a capacidade de acesso de todas as pessoas, em todos os momentos, a alimentos suficientes para uma vida ativa e saudável. A insegurança alimentar significa, por sua vez, que as famílias, eventualmente, não conseguiam adquirir alimentos adequados para um ou mais membros da família, porque não tinham dinheiro suficiente e outros recursos para a alimentação.
Para traçar a prevalência de insegurança alimentar, os autores recorrem à diferenciação entre os termos “segurança alimentar baixa” e “segurança alimentar muito baixa”. No primeiro caso, considera-se que as famílias evitaram reduções substanciais, ou interrupções, na ingestão de alimentos, em alguns casos confiando em alguns alimentos básicos e reduzindo a variedade em suas dietas. No segundo, as famílias estavam em situação de insegurança alimentar, na medida em que os padrões alimentares de um ou mais membros da família foram interrompidos, e sua ingestão de alimentos foi reduzida, pelo menos em algum momento durante o ano, porque eles não podiam comprar alimentos suficientes.
É curiosa a escolha dos termos para investigar o grau de insegurança alimentar, uma vez que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) costuma pesquisar o mesmo tema com os termos “insegurança alimentar moderada” e “insegurança alimentar severa”. A condução da pesquisa com estes termos leva a crer que se trabalha com a noção de que todas as famílias têm segurança alimentar em alguma medida. Isso inverte a lógica de que é premente chamar a atenção para o problema, o que é possível observar durante as explicações no relatório.
De qualquer maneira, os dados chocam pela crescente incidência da insegurança alimentar no país, considerando-se que estamos falando da primeira economia mundial e do 12º PIB per capita, segundo o Banco Mundial. No ano de 2023, 13,5% das famílias estavam em situação de insegurança alimentar, o que significa aproximadamente 47,4 milhões de pessoas. Dentro da série histórica (2001-2023), este número indica que desde 2014 não se tinha notícias de níveis tão elevados de insegurança alimentar. No referido ano, as estatísticas revelavam que em torno de 48,2 milhões de pessoas (14%) estavam nessa situação.
Ao classificar as famílias com ou sem crianças, nota-se que as famílias com crianças seguem a mesma tendência, indicando que, no comparativo da série, no ano de 2023, estavam em situação de insegurança alimentar 17,9% (aproximadamente 3,3 milhões de famílias) e, especificamente no quantitativo de crianças, 19,2%, ou pelo menos 7,2 milhões. Em 2014, eram 19,2% das famílias (3,7 milhões), e 20,9%, das crianças (7,9 milhões).
Diferentemente das outras categorias, as estatísticas das famílias com crianças revelam um quadro ainda mais crítico, em que, desde 2001, o número absoluto de domicílios com segurança alimentar é o mais baixo da série histórica. Em 2001, 32,1 milhões de famílias com crianças estavam em situação de segurança alimentar, em contraposição a 29,7 milhões no ano de 2023. Em relação às crianças, ainda que a quantidade dessas em situação de segurança alimentar em 2023 (58,4 milhões) não seja o mais baixo na série histórica, em 2001 eram 59,6 milhões, do que se pode inferir, no mínimo, uma ineficácia, ao longo de 22 anos, em manter a população infantil em condições dignas de alimentação e nutrição.
Ao tratar de características selecionadas dos domicílios estadunidenses, é relatado que, em relação à composição, famílias chefiadas por mulheres, sem parceiro, são as que têm maior incidência de insegurança alimentar (34% das famílias nesta condição); em relação à raça ou etnia, é nas famílias chefiadas por pessoas negras (23,3%); em relação à região geográfica baseada no censo, naquelas que estão no Sul do país (14,7%); e, em relação à localização da residência, nas famílias que estão nas principais cidades (15,9%). Ao diferenciar famílias com crianças, a tendência é a mesma para essas características.
O dado referente à localização da residência é interessante. De acordo com o relatório SOFI 2024 da FAO, os países do Norte Global apresentam, dentro de suas realidades, a incidência da insegurança alimentar principalmente nas regiões mais urbanizadas. Já os países do Sul Global tendem a ter maiores níveis de insegurança alimentar nas áreas rurais ou periurbanas. Nos EUA, os dados do USDA refletem exatamente a constatação da FAO de que as áreas urbanas vêm sofrendo mais com essa situação, sendo este um país nortista.
O informe ainda traz os dados referentes aos estados do país, comparando-os por triênios: 2011-2013, 2018-2020 e 2021-2023. Entre os períodos de 2018-2020 e 2021-2023, não houve reduções significativas em nível estadual na prevalência de insegurança alimentar. Houve, no entanto, aumentos significativos nos estados do Arkansas, Califórnia, Flórida, Geórgia, Illinois, Iowa, Nova York, Oregon, Carolina do Sul e Texas. A prevalência da segurança alimentar muito baixa, acima da média, do país é referente aos estados do Sul censitário: Arkansas, Kentucky, Louisiana, Mississippi, Carolina do Sul e Texas.
Embora a inflação nos EUA tenha caído de 5,5% em janeiro de 2023 para 2,7% ao final deste mesmo ano, as famílias gastaram em média US$ 75 por pessoa semanalmente para adquirirem os alimentos. Esse valor corresponde a um aumento de 17% no custo em relação ao estabelecido pelo plano econômico alimentar do Departamento de Agricultura. A pesquisa indica que as famílias com filhos abaixo de 18 anos geralmente gastam menos com alimentos do que aquelas sem filhos.
Conforme as análises acima, não é inoportuno, portanto, prever que haveria necessidade de acesso a programas socioassistenciais por parte das famílias. Neste quesito, o relatório avalia três serviços: O Programa de Assistência Nutricional Suplementar (The Supplemental Nutrition Assistance Program – SNAP) que oferece benefícios mensais a famílias de baixa renda qualificadas para comprar itens alimentícios em estabelecimentos conveniados; o Programa Nacional de Merenda Escolar (The National School Lunch Program – NSLP), que oferece refeições gratuitas ou a baixo custo para as crianças de baixa renda; e o Programa Especial de Nutrição Suplementar para Mulheres, Bebês e Crianças (The Special Supplemental Nutrition Program for Women, Infants, and Children – WIC), que fornece subsídios aos estados para apoiar a distribuição de alimentos suplementares, encaminhamentos para assistência médica e educação nutricional para proteger a saúde de gestantes, puérperas e crianças de baixa renda abaixo de 5 anos.
Esperava-se que, ao oferecer tais programas às famílias, houvesse um aumento da segurança alimentar, mas o que se observou foi que mais famílias em insegurança alimentar buscaram os serviços das três principais políticas. Em torno de 58% das famílias com insegurança alimentar relataram receber assistência de um ou mais dos três maiores programas federais de assistência alimentar e nutricional.
Em resumo, estima-se que 51,9% das famílias que recebiam benefícios do SNAP estavam em situação de insegurança alimentar, assim como 43,7% das famílias que recebiam merenda escolar gratuita ou a preço reduzido e 37,0% das que recebiam benefícios do WIC. A prevalência de segurança alimentar muito baixa entre as famílias que participam do SNAP foi de 22,4%. Para as famílias que recebiam merenda escolar gratuita, ou a preço reduzido, a prevalência de segurança alimentar muito baixa foi de 15,3%, e para as famílias que recebiam WIC, de 14,0%.
Por diversas vezes, o relatório, entre outras causas, estabelece que as dificuldades em se alimentar estão relacionadas à falta ou à redução do acesso ao dinheiro. Mas estamos a falar dos Estados Unidos da América, a terra das liberdades, a maior economia global e o impressor da principal moeda do planeta. A pergunta que fica é: para onde estão indo os dólares americanos, que não para alimentar sua população?
Esse é o triste, porém exemplificativo, caso de que parâmetros econômicos não são suficientes para traçar metas de combate à fome e à insegurança alimentar. Os sucessivos acordos internacionais que vêm sendo estabelecidos não estão cumprindo seus objetivos. Aumento da economia do país ou grandes fluxos de dinheiro não são sinônimo de qualquer sinalização para melhoria das desigualdades, mas as decisões políticas podem determinar se o dinheiro vai para alimentação ou para armamentos bélicos.
Mateus Ribeiro Silva é engenheiro agrônomo pela UFRPE, mestre em Gestão Pública e Cooperação Internacional pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI). Contato: [email protected].
Thiago Lima é professor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador do FomeRI, da UFPB. É membro do INCT-INEU e do Instituto Fome Zero. Contato: [email protected].
Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 16 out. 2024.