Por Lilianna Bernartt

Depois de anos, a abertura da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo voltou a ocupar a prestigiada Sala São Paulo, que comemora 25 anos. A Mostra teve sua primeira edição em 16 de outubro de 1977, no MASP, idealizada por Leon Cakoff. O que seria apenas um evento especial no mês de outubro, em comemoração aos 30 anos do MASP, acabou por gerar uma das iniciativas de resistência cultural mais importantes do Brasil, colocando o país no circuito mundial de cinema.

Sua criação nasce como movimento de contracultura, em plena década de 70, como forma de resistência à censura – política e mercadológica – já que o Brasil se encontrava sob ditadura, de forma que todas as obras eram submetidas à censura estatal. Por conta disso, tínhamos um mercado igualmente submetido à censura, regido por uma Embrafilme receosa, que acabava por trazer ao mercado produtos plastificados, oprimindo, portanto, novos e independentes realizadores.

Para driblar esse encaixotamento cultural, Leon Cakoff propôs a exibição de uma programação pautada na diversidade e na internacionalidade, garantindo assim, a apresentação de uma seleção pautada pela variedade de linguagens, gêneros e nacionalidades.

Ao exibir filmes experimentais e de diversos países como Cuba, por exemplo, a Mostra se tornou um evento pioneiro em proporcionar ao público, à época, a possibilidade de se relacionar com novas formas e linguagens cinematográficas. Outra característica de destaque da Mostra também foi a votação do público, a possibilidade de validação da opinião popular foi essencial para que o público abraçasse o evento, e até mesmo uma forma de reparação à supressão da possibilidade do voto popular à época.

A Mostra então se tornou uma tradição da cidade de São Paulo, responsável pelo fomento do circuito cinematográfico na cidade, ao se espalhar pelas mais importantes salas e espaços culturais do cinema. MASP, Conjunto Nacional, CineSesc, o antigo Espaço Itaú – que hoje resiste como Espaço Augusta -, FAAP, REGBelas Artes, Cinemateca, Centro Cultural São Paulo, são alguns dos locais já ocupados pela Mostra, promovendo não só o cinema em si, mas a propagação da cena cultural pela cidade.

Desde 2011, a Mostra é dirigida por Renata de Almeida, que perpetua a excelência da programação e das convicções do evento. Retornando à noite de abertura, o início do evento foi marcado pela lembrança desta história, com a apresentação da capa dos catálogos das Mostras anteriores, o que, sem sombra de dúvida, fez com que cada um dos presentes relembrasse algum momento de conexão com a Mostra. Pessoalmente, já quebro um pouco a convenção (que nunca foi muito o meu forte) para destacar a 44ª Mostra, realizada de forma online durante a pandemia, que foi essencial não só a mim, como a muitos, como forma de alívio e esperança em um momento de extrema incerteza.

Assim, a Mostra resiste e retorna cada vez mais forte, inovando, fomentando o cinema e garantindo a conexão do público com a diversidade cinematográfica mundial. Dificilmente você encontrará um cinéfile que não tenha tido seu caminho cruzado pela Mostra SP.

Tendo isso em foco, a 48ª Mostra SP será marcada pelo lançamento da série “Viva o Cinema! Uma história da Mostra de São Paulo”, dirigida pelos cineastas Marina Person e Gustavo Rosa de Moura. Em quatro episódios, a série relembra e conta a história da Mostra Internacional de Cinema, sob a perspectiva da própria diretora, que conta emocionantes e curiosas histórias que marcaram essa trajetória de resistência do evento, revelando as pessoas que encararam produzir todo ano – ininterruptamente – esse evento vital à cultura brasileira.

A Mostra Internacional de Cinema em São Paulo tem como destaque este ano o cinema indiano, que, além de Bollywood, uma das maiores e mais conhecidas indústrias cinematográficas do mundo, possui diversas outras indústrias tão bem sucedidas quanto. Se você se aprofundar no estudo do cinema indiano, verá que existem mais de 21 línguas diferentes e que há uma indústria cinematográfica para cada uma, de acordo com o que a própria diretora da Mostra, Renata de Almeida, ressaltou durante a coletiva do evento.

Convidado de honra para a abertura, o embaixador da Índia no Brasil, Suresh Reddy, dimensionou que o país produz cerca de 2 mil filmes por ano, movimentando um mercado estimado em US$ 235 bilhões de dólares. O homenageado desta edição é o cineasta Satyajit Ray, um artista múltiplo, artista gráfico, compositor (ele compunha as canções de seus filmes), roteirista, publicitário, escritor, diretor de arte, de fotografia, autor, roteirista, dentre outras coisas. O evento terá uma retrospectiva de sua obra com a apresentação de sete títulos. Serão exibidos longas realizados por Ray entre 1995 e 1966.

O cartaz da 48ª Mostra traz uma arte de Satyajit Ray que faz parte de um storyboard criado pelo cineasta durante a preparação de seu primeiro longa metragem, “A Canção da Estrada”. O artista também é o autor do pôster da 1ª Mostrinha, outra novidade que marca uma nova história dentro das 48 edições da Mostra, que é dedicada à infância e juventude, que chega com uma seleção de filmes voltada para a nova geração de espectadores. A abertura do evento aconteceu também na Sala São Paulo, nesta quinta-feira (17), com a exibição de “A Arca de Noé”, animação de Sérgio Machado e Alois di Leo.

A 1ª Mostrinha também homenageia os 30 anos do programa “Castelo Rá-Tim-Bum”, da TV Cultura, bem como os 25 anos do filme de mesmo nome, do cineasta Cao Hamburguer. O escritor e Cartunista Ziraldo, falecido em 2024 também será homenageado pela programação.

Além de fomentar a exibição de filmes, a Mostra ainda se consolidou no decorrer dos anos como um espaço de formação e de discussão de cinema. A Mostra promove três masterclasses gratuitas durante o evento, que abordarão a evolução do cinema indiano, os primórdios do audiovisual e adaptações de obras literárias para as telas. E ainda, a Mostra realiza pelo quarto ano consecutivo, o encontro de ideias audiovisuais, que incluem o III Mercado, o VIII Fórum e o VIII da Palavra à Imagem, Todos os eventos são abertos ao público e reúnem debates, exposições, lançamentos de livros e reuniões – entre os dias 24 e 26 de outubro, na Cinemateca Brasileira.

Outra tradição particular e essencial da Mostra Internacional de Cinema é a exibição de clássicos restaurados. A programação de obras restauradas conta com o brasileiro “Somos Irmãos (1949)”, de José Carlos Burle, restaurado pela Cinemateca Brasileira e um dos primeiros filmes a abordar o racismo no Brasil. Também serão exibidas cópias restauradas de “Onda Nova –Gayvotas Futebol Clube” (1983), de Ícaro (Francisco) C. Martins e José Antonio Garcia – exibido na 7ª Mostra, e logo em seguida proibido pela censura -, “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), de Odilon Lopez, “Brincando nos Campos do Senhor” (1991), de Hector Babenco, o curta inédito “Auto de Vitória” (1966), do baiano Geraldo Sarno e, em homenagem a Rogério Sganzerla, morto há 20 anos, a Mostra exibe a versão digitalizada do longa “Abismu” (1977), que teve roteiro e direção do catarinense.

Comemorando os 100 anos do nascimento de Marcello Mastroianni, serão exibidos “Marcello Mio” (2024), de Christophe Honoré, exibido no Festival de Cannes. Cópias restauradas de seis filmes com o ator produzidos em diferentes países completam a homenagem pelo centenário. Fechando com chave de ouro sua trajetória impecável até aqui, a 48ª Mostra contará com a presença de um dos maiores cineastas de todos os tempos, o cineasta americano Francis Ford Coppola, que vai receber o Prêmio Leon Cakoff da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

A escolha de Coppola para receber o Prêmio Leon Cakoff da 48ª Mostra se dá por conta de sua ótica visionária no fazer cinematográfico, que se perpetua até os dias de hoje, ultrapassando gerações, e que vai de encontro à própria história do evento, e de seu fundador, Leon Cakoff, que nomeia o prêmio. A entrega vai ocorrer no encerramento do evento, em 30 de outubro. A cerimônia será seguida da exibição do filme mais recente do diretor, “Megalópolis”, que estreou no Festival de Cannes e ainda é inédito no Brasil. O longa é distribuído no Brasil pela O2 Play, que viabilizou a vinda de Coppola ao país. Se há maneira melhor de fechar mais um ano de excelência, desconheço.

A 48ª Mostra chega em 2024 valorizando e reafirmando a importância da nossa produção nacional, bem como, abrindo um espaço valioso para novos realizadores, com o incentivo da experimentação e ousadia. E agora também, transmitindo a valoração da cultura às novas gerações, através da criação da 1ª Mostrinha. São 48 anos de uma história de resistência, luta, criatividade, tudo isso, regado à uma curadoria cinematográfica fina, que preza pela expansão e quebra de olhares e convenções, provocando uma série de novos pensamentos, olhares, gostos. A Mostra Internacional de Cinema ressalta o cinema no exercício de sua função sociopolítica econômica, fundamental para o estabelecimento de conexões e relações, que colaboram para nossa organização e coexistência como indivíduos e como sociedade.

Eu terminaria com uma frase “resumo da ópera”, mas acredito que a frase “sinopse da história” se aplique melhor ao caso. Desta forma, a “sinopse da história” é a seguinte: enquanto houver Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o cinema será valorizado e nós estaremos lá.