Por Pedro Vasconcelos, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

No dia 16 de outubro é celebrado o dia mundial da alimentação. A data coincide com a criação da Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em um período pós-guerra no qual a segurança alimentar global emergiu como questão fundamental a ser tratada pelos Estados. A partir deste marco, a chamada “Revolução Verde” da agricultura industrial foi levada nas décadas seguintes a diferentes países, incluindo o Brasil, como promessa de combate à insegurança alimentar e garantia de desenvolvimento. 

Hoje, oitenta anos depois, a fome e a insegurança alimentar ainda são grandes desafios a nível mundial:  mais de 700 milhões de pessoas ainda convivem com níveis de insegurança alimentar no planeta, e mais de 2,4 bilhões de pessoas não conseguem ter acesso a uma alimentação saudável (SOFI, 2024). Para comer, populações em todo o mundo dependem de sistemas alimentares altamente concentrados, com a oferta de alimentos pouco diversos, cada vez mais caros e intensivos em recursos naturais. Ao mesmo tempo, a desnutrição se soma à crise climática e de obesidade, em uma sindemia global que ameaça cada vez mais direitos fundamentais, em particular o direito humano à alimentação e à nutrição adequada (Dhana).  Este direito é condição básica para a fruição de todos os direitos: sem comida adequada não podemos aprender, conviver, buscar o que queremos na vida, ter dignidade. Neste sentido, compete aos nossos tempos repensar, em um contexto de múltiplas crises e com urgência, as formas de produzir e distribuir alimentos. 

A ideia corrente de alimentação saudável traz a perspectiva de comer o que nos faz bem do ponto de vista nutricional, da saúde física e do bem estar. Este certamente é um dos componentes essenciais do que o direito à alimentação considera como alimentação adequada. Um alimento saudável é adequado para nós na medida em que não possui substâncias adversas, ou seja, não nos faz mal. Entretanto, para além disso, a dimensão de adequação da alimentação se relaciona também a aspectos como sustentabilidade, cultura e acessibilidade.

Pactos internacionais, a nossa própria Constituição Federal e normativas nacionais reconhecem o direito humano à alimentação adequada como direito fundamental. Este reconhecimento pressupõe obrigações aos Estados voltadas à garantia de que todas as pessoas, hoje, amanhã e nas próximas gerações, tenham pleno acesso a uma comida boa, nutricionalmente adequada para cada fase de sua vida, livre de substâncias que façam mal à sua saúde e que seja culturalmente adequada, isto é, que faça sentido para o seu modo de ver e viver a vida. 

A realização deste direito deve ser realizado progressivamente, na forma de avanços em políticas públicas de diferentes campos: segurança alimentar e nutricional, políticas fiscais, ações voltadas ao acesso à terra, políticas de saúde, entre outras. Entretanto, a continuidade da fome, da insegurança alimentar e da desnutrição; a destruição da sociobiodiversidade e os efeitos climáticos provocados por mudanças no uso da terra, cuja forma de produção de commodities agrícolas é um eixo central; e a proliferação de doenças crônicas não transmissíveis associadas à alimentação indicam que há muito o que ser feito.

Neste sentido, um debate urgente que precisa ser feito e respondido à altura do ponto de vista das políticas públicas é o tema dos agrotóxicos. Antes uma “solução” difundida na Revolução Verde para a proteção dos cultivos agrícolas, são fartos hoje estudos que apontam numerosos riscos à saúde e ao meio ambiente provocados por diferentes grupos de fungicidas, herbicidas e de outras categorias de moléculas de uso crescente no Brasil e em diferentes países. Além disso, a presença de combustíveis fósseis  nestas formulações e as emissões oriundas do seu processo produtivo contribuem em grande escala para a crise climática. 

A produção e o uso de agrotóxicos violam diferentes dimensões do direito à alimentação adequada. Além de prejudicar diretamente a saúde de agricultoras(es) e trabalhadoras(es) do campo, a contaminação dos solos e das águas provocadas pelo uso de agrotóxicos  também prejudicam os polinizadores, como as abelhas. O uso crescente destes produtos implica na diminuição de produtividade com o tempo, o que motiva a investida sobre outras terras e territórios. Em conjunto, estes fatores influenciam diretamente a disponibilidade e a sustentabilidade da oferta de alimentos, assim como a soberania alimentar de populações tradicionais e agricultores familiares. Além disso, os resíduos presentes na oferta de alimentos representam substâncias perigosas, inadequadas para o consumo na medida em que podem levar a contaminações crônicas. 

Entre avanços e retrocessos, o Brasil apresentou recentemente um retorno a caminhos importantes no que diz respeito ao combate à fome, estando hoje na contramão da tendência mundial de agravamento desta condição. Entretanto, a trajetória crescente do uso de agrotóxicos no país, muitos deles proibidos em outros países, exige mudança profunda nas ações conduzidas pelo poder público nesse campo, sob o risco de aprofundar violações ao direito humano à alimentação adequada. 

A realização do direito à alimentação implica nas obrigações do Estado perante nós, sujeitos de direito. Como claramente descrito em nossa Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, o Estado tem as obrigações de “respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade”. (Lei nº 11.346/2006, Art. 2º, parágrafo 2º). 

Do ponto de vista da regulação de agrotóxicos no país, um olhar para a questão da perspectiva dos povos e do meio ambiente deve implicar avanços em pelo menos quatro aspectos:

i) a proteção dos sujeitos de direito e aos territórios, em especial os mais vulneráveis à exposição destas substâncias, através de ações como fiscalização, restrições à pulverização, ampliação da testagem de resíduos, respaldo de órgãos ambientais e sanitários, responsabilização, entre outras;

ii) a mudança de rota em relação ao crescimento exponencial de novos registros de agrotóxicos, assim como a importação de substâncias proibidas em outros países;  

iii) a transição rumo a modelos de produção e oferta de alimentos saudáveis ao solo, às águas, aos animais, às pessoas e às culturas, como a agroecologia;

iv) a promoção de ações efetivas voltadas à garantia do direito à terra e soberania para a produção e acesso a alimentos.

Neste cenário, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA) emerge como um conjunto de ações essenciais para enfrentar os desafios relacionados ao uso crescente de agrotóxicos no Brasil. O PRONARA, a ser proposto no âmbito do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), visa promover a transição para sistemas agrícolas mais saudáveis, sustentáveis e justos, reduzindo progressivamente o uso de substâncias químicas prejudiciais, fomentando a agroecologia e contribuindo para a proteção das pessoas e do meio ambiente. Ao fortalecer iniciativas que priorizam  a defesa dos sujeitos de direito envolvidos no processo alimentar, a preservação ambiental e busca por alternativas de produção para além do uso de agrotóxicos, o PRONARA se alinha diretamente com os princípios do direito humano à alimentação adequada.

No contexto do Dia Mundial da Alimentação, é essencial demarcar também a perspectiva do Dia Mundial da Soberania Alimentar dos povos, comemorado em 16 de outubro pela Via Campesina. A promoção de sistemas alimentares sustentáveis e atentos à soberania dos povos é indispensável para garantir a alimentação adequada. Esta perspectiva nos remete a como a luta pela erradicação da fome e da insegurança alimentar deve ser integrada à luta contra o uso intensivo de agrotóxicos, uma vez que a saúde humana e ambiental estão interligadas. A soberania alimentar, o direito à alimentação e o combate aos agrotóxicos caminham lado a lado: não basta garantir o acesso ao alimento, é preciso garantir que ele seja adequado, livre de substâncias nocivas, produzido de forma sustentável e com respeito à autonomia dos povos.