Caso Rebecca Cheptegei e a onda de feminicídios no Quênia
A maratonista Rebecca Cheptegei é a terceira vítima de feminicídio nos últimos anos
Por Melissa Gervásio, para Cobertura Colaborativa #NECParis2024
Na última quinta-feira (5), mais um caso de feminicídio tomou conta dos noticiários no Quênia. Trata-se de Rebecca Cheptegei, maratonista ugandesa de 33 anos que faleceu quatro dias depois ter sido incendiada por seu ex-namorado, Dickson Ndiema Marangachon. Ela teve mais de 80% do corpo queimado.
“Seus ferimentos foram extensos e cobriram a maior parte de seu corpo. Isso levou à falência de múltiplos órgãos”, disse o médico Kimani Mbugua, diretor da UTI do Moi Teaching and Referral Hospital na cidade de Eldoret, no Quênia.
“Fizemos o nosso melhor, mas não tivemos sucesso. Considerando a idade dela e os mais de 80% de queimaduras que sofreu, a esperança de recuperação era pequena”.
Nesta terça-feira (10), a agência Reuters informou que Dickson Ndiema faleceu em decorrência das queimaduras que sofreu durante o ataque a Rebecca. Ele teve mais de 45% do corpo queimado.
“Seu ex-namorado, Dickson Ndiema Marangach, faleceu às 18h30 (15h30 GMT) de segunda-feira, disse Philip Kirwa, diretor-executivo do Moi Teaching and Referral Hospital em Eldoret, no oeste do Quênia, onde Marangach estava sendo tratado e onde Cheptegei também faleceu”, informou a agência Reuters.
O pai de Rebecca, Joseph Cheptegei, também se pronunciou sobre a morte de Dickson. “Esse cara está morto porque matou minha filha. Ele faleceu devido a suas ações”, declarou à Reuters.
O ataque
Segundo informações, tudo foi motivado por uma disputa de um terreno.
Dickson Ndiema aproveitou que Rebecca estava na igreja com as duas filhas para invadir a casa.
“O casal foi ouvido brigando do lado de fora da casa. Durante a discussão, o namorado foi visto derramando um líquido na mulher antes de queimá-la”, disse o comandante da polícia do condado de Trans-Nzoia, Jeremiah Ole Kosiom, ao The Standard.
Joseph Cheptegei: “Não foi a primeira vez que ele a atacou”
Em entrevista ao The Washington Post, Joseph Cheptegei disse que a filha já havia denunciado Dickson Ndiema várias vezes por violência doméstica, inclusive na última sexta-feira (30). No entanto, a família foi orientada a retornar à delegacia na segunda-feira, o que não aconteceu, já que Rebecca foi atacada por Dickson no domingo (1).
“Em janeiro deste ano, ele bateu em Rebecca e queria cortá-la, mas Rebecca foi salva pelo irmão”, disse Joseph. “Nós denunciamos à polícia… a polícia não lidou bem com o caso, eles foram muito lentos”.
Segundo Joseph, Rebecca havia se separado de Dickson Ndiema em janeiro, após uma discussão sobre uma suposta infidelidade, e procurou ajuda para fugir dele.
Em entrevista à BBC News, a família de Rebecca Cheptegei contou que ela comprou um terreno no condado de Trans-Nzoia e construiu uma casa para ficar perto dos renomados centros de treinamento de atletismo da região. Rebecca chegou a participar dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, ficando em 44º lugar na maratona. Em 2023, no Campeonato Mundial de Atletismo, realizado em Budapeste, ela conquistou o 14º lugar.
“Ela era uma pessoa muito gentil e estava sempre disposta a ajudar, até mesmo financeiramente. Ela me trouxe tênis de treino quando voltou dos Jogos Olímpicos de Paris”, disse James Kirwa, parceiro de treinamento de Rebecca, à BBC News.
Na sexta-feira (6), a prefeita Anne Hidalgo anunciou que a cidade de Paris nomeará uma sede esportiva em homenagem à Rebecca Cheptegei.
“Ela nos encantou em Paris. Nós a vimos. Sua beleza, sua força, sua liberdade. E é muito provável que sua beleza, força e liberdade tenham sido intoleráveis para a pessoa que cometeu esse assassinato”, disse Hidalgo à imprensa.
“Paris não a esquecerá. Vamos dedicar a ela uma sede esportiva para que sua memória e sua história permaneçam entre nós e ajudem a transmitir a mensagem de igualdade, que é uma mensagem transmitida pelos Jogos Olímpicos e Paralímpicos”.
Casos recorrentes
Entre atletas de alto nível, Rebecca Cheptegei é a terceira vítima de feminicídio nos últimos anos. Em abril de 2022, Damaris Mutua, corredora do Bahrein de origem queniana, foi encontrada morta com sinais de estrangulamento na cidade de Iten, no Leste queniano, conhecida mundialmente como “casa dos campeões” por ser formadora de grandes corredores.
Segundo as autoridades locais, o principal suspeito é o namorado, um atleta etíope, que está foragido.
Em outubro de 2021, a corredora queniana Agnes Tirop, de 25 anos, foi encontrada morta a facadas em sua casa, na mesma cidade de Iten. Seu marido, Emmanuel Ibrahim Rotich, está sendo processado pelo assassinato, mas nega as acusações.
Conforme a Femicide Count, ONG que monitora casos de feminicídio no Quênia, foram registrados 150 assassinatos de mulheres em 2023. Segundo ela, “esse número representa apenas os casos noticiados na mídia, já que a contagem real é provavelmente muito maior”.
“Em média, uma mulher ou menina era morta dia sim, dia não, muitas vezes pelas mãos do marido, namorado, pai ou outro membro da família”, diz o relatório da Femicide Count.
“O governo não pode permanecer conivente”
Segundo a Femicide Count, só em janeiro de 2024 foram registrados 28 casos de feminicídio. Em dados divulgados pela ONG no Instagram, 45% das mulheres entre 15 e 49 anos foram vítimas de violência física, enquanto 14% sofreram violência sexual. Além disso, 70% dos casos de violência baseada em gênero não são denunciados.
“O Quênia não protege adequadamente mulheres e meninas. Apesar das políticas destinadas a promover a igualdade de gênero, os feminicídios continuam sem cessar. Após cada assassinato, as autoridades afirmam que a justiça será feita, mas a violência só aumenta”, aponta o relatório da Femicide Count.
“O governo não pode permanecer conivente. O Quênia é parte nas convenções internacionais contra a violência baseada no gênero. O próprio presidente prometeu proteger a vida das mulheres. Essas promessas são vazias quando o feminicídio continua desenfreado”.
Njeri: “Se o chefe do país não se pronuncia sobre o feminicídio, como vamos tratar?”
Em entrevista ao News Central TV, Njeri Wa Migwi, fundadora da Usikimye, uma organização de combate à violência de gênero, destacou a grande necessidade de um posicionamento do governo sobre o crescente número de feminicídios no país. Muitos casos seguem sem justiça.
“Quando Agnes Tirop foi morta, o caso continua em tribunal. Quando Damaris foi morta, o homem desapareceu. Estou analisando casos de atletas e também os casos que já aconteceram e ainda não vimos o cumprimento da justiça. Se o chefe da nação, o presidente William Ruto, não se pronuncia sobre o feminicídio, como vamos tratar?”.
Em suas redes sociais, Njeri Migwi lamentou a morte de Rebecca.
“Rebecca Cheptengei está morta. Falamos o seu nome na terra dos vivos. Descanse no poder. Sim, isso é feminicídio”.
Ela também destacou sobre como os assassinatos das atletas estão relacionados às conquistas que elas vinham alcançando ao longo de suas carreiras.
“Todas essas atletas chegaram ao topo de suas carreiras e foram abatidas por seus maridos. O centro de suas discussões tem sido as finanças. Não há justificativa para a violência e precisamos que o governo se pronuncie e faça campanhas contra a violência no atletismo feminino”, disse Njeri Migwi.
“Estamos indignados com essa barbaridade injustificável e unimos nossas vozes às daqueles que pedem por responsabilização”.
Milhares vão às ruas pelo fim da violência
No dia 27 de janeiro, milhares de mulheres quenianas foram às ruas para pedir o fim da violência contra a mulher. A manifestação anti-feminicídio foi a maior já realizada no país da África Oriental. Usando camisas com os nomes de mulheres vítimas de feminicídio, as manifestantes gritavam palavras como “Pare de nos matar!” enquanto agitavam cartazes com mensagens como:
“Ser mulher não deveria ser uma sentença de morte.”
“As mulheres são a maioria neste país, mas ainda estamos marginalizadas na estrutura política, social e econômica”, disse uma manifestante. “É por isso que hoje estamos marchando para afirmar que o feminicídio e a voz das mulheres importam. Nossas vidas importam”.
“Estou aqui como homem porque meu país não está seguro, minhas irmãs não estão seguras, minha esposa não está segura, meus filhos, minhas filhas não estão seguros. Estou aqui porque a nação não está segura”, disse um manifestante.
“Não se trata apenas do governo”
Para o Daily Nation, a jornalista Moraa Obiria relatou que entrou em contato com o porta-voz do governo, Isaac Mwaura, para entender o motivo do silêncio do presidente William Ruto. Já se passavam seis dias desde a grande manifestação contra o feminicídio, e ninguém havia se pronunciado.
Segundo a jornalista, nenhuma palavra sobre os casos de feminicídio havia sido mencionada durante uma coletiva de imprensa realizada no dia 1º de fevereiro de 2024.
“Quando os jornalistas fizeram a pergunta para Isaac Mwaura, a sua resposta não foi tão séria quanto deveria ser”, disse Moraa. Ele reconheceu que as mulheres são as que mais sofrem. Mas ele deu alguns conselhos para elas: “Pare de amar o dinheiro e de ser ingênua”. Ele ainda acrescentou: “Que não se trate apenas do governo; que os pais conversem com os seus filhos também”.
Moraa Obiria termina a matéria dizendo:
“Então, senhor presidente, onde você está? Os gritos das mulheres e dos homens quenianos chegaram até você?”.