Marcadores sociais e a luta pela visibilidade Trans nos Jogos Paralímpicos
Valentina Petrillo, atleta transexual que possui deficiência visual, é competidora na modalidade Atletismo
Por Gabriel Coelho, para Cobertura Colaborativa #NECParis2024
Os Jogos Paralímpicos de Paris 2024 possuem uma importante participante em prol da representatividade e inclusão no contexto esportivo. Trata-se da italiana Valentina Petrillo, atleta que compete nas provas de 200 e 400 metros da classe T12, para deficientes visuais. Valentina carrega os marcadores de ser uma mulher transexual e possuir uma deficiência visual adquirida aos 14 anos pela doença de Stargardt – uma condição hereditária que afeta a retina e leva a uma perda progressiva da visão. Sua presença na competição é de suma importância para a luta contra a invisibilização de pessoas que possuem de maneira conjunta os marcadores da transgeneridade e de deficiência, junto a sua inclusão, no entanto, surgem narrativas contrárias e discriminatórias contra a atleta, e que nos fazem questionar a associação entre “Jogos Paralímpicos” e “Inclusão”.
Os veículos midiáticos já polemiza a participação de Valentina, o que não foi diferente com Laurel Hubbard em Tóquio 2020. Na segunda-feira, dia (02/09/2024), a corredora ficou na terceira colocação na semifinal da categoria T12 dos 400 metros, com tempo de 57s58. Todavia, isso não foi suficiente para que ela se classificasse para a final. Não será estranho se a repercussão deste resultado se construa de maneira a apontá-lo como uma surpresa, devido a um preconceito muito bem formulado contra atletas transexuais. Este é um dos diferentes preconceitos que Valentina carrega, a ideia de que ela leva vantagens esportivas com relação a suas adversárias cisgênero – que se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento. Valentina já tem sido alvo de preconceito, comentários transfóbicos e uma narrativa que confronta sua inclusão com uma ideia de justiça esportiva. Mesmo com resultados que entram em conflito com essa ideia produzida pelo senso comum, a narrativa das vantagens biológicas não cai. Foi assim com Laurel Hubbard, será provavelmente com Valentina.
Valentina Petrillo é uma atleta transexual. A italiana de 50 anos, iniciou sua transição de gênero em 2019, já casada e com uma filha. É importante contextualizar as políticas de elegibilidade de atletas transexuais, para evitar uma disseminação de informações incoerentes e incorretas a respeito destas. A partir de produções científicas do Laboratório de Estudos Olímpicos e Socioculturais dos Esportes, da Universidade Federal de Viçosa, essa disseminação ocorreu com Laurel Hubbard. Ela foi a primeira mulher transexual a participar de uma edição dos Jogos Olímpicos, nos Jogos de Tóquio 2020.
Políticas de elegibilidade
A última vez que o Comitê Olímpico Internacional (COI) trouxe atualizações a respeito das políticas para inclusão de atletas transexuais nas modalidades foi em 2021. Naquele momento, a organização já havia estabelecido em 2015 que mulheres transexuais, como Valentina, deveriam comprovar uma taxa limite de 10 nmol/L pelo menos um ano antes da competição, e mantê-la ao decorrer. Já no ano de 2021, o COI concedeu autonomia para as federações estabelecerem suas próprias diretrizes, podendo usar, ou não, como base as diretrizes de 2015.
A autonomia concedida pelo COI abriu margem para que, no ano de 2023, a World Athletics, federação internacional responsável pela regulamentação do Atletismo, se posicionasse contrária à inclusão de mulheres transexuais na categoria associada a sua identidade de gênero. Porém, a organização responsável pelo Atletismo Paralímpico é a World Para Athletics, que definiu que mulheres transexuais poderiam competir na modalidade, se posicionando contra a World Athletics. No caso de Valentina, ela precisou atender às diretrizes criadas pelo COI em 2015, no que diz respeito à testosterona sanguínea.
Valentina Petrillo representa um grupo muitas vezes invisibilizado na sociedade. Pessoas com deficiência que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento existem, e merecem ser representadas e reconhecidas. Claro que carregar estes marcadores coloca Valentina, e outras/outros semelhantes, em uma realidade subjetiva de pessoas que carregam especificamente as mesmas marcas. Valentina é estigmatizada duplamente por uma sociedade que marginaliza pessoas transexuais e com deficiência.
Kimberlé Crenshaw, autora feminista estadunidense, desenvolveu uma linha de raciocínio que aponta para compreensão de que os sujeitos se inserem na sociedade de diferentes formas, por conta de relações de interseccionalidade entre marcadores sociais de diferença. Estes marcadores podem colocar os sujeitos em posições de desvantagens sociais, devido a sistemas de opressão, e a interação entre estes marcadores – chamada de interseccionalidade – produz uma realidade específica, e na maioria das vezes, mais complexa, para sujeitos que carregam diferentes marcas de opressão.
É complexo entender a realidade de Valentina. Ela precisou compreender sua deficiência e a partir disso compreender seu lugar no mundo. Posteriormente, precisou compreender sua identidade de gênero e lidar com preconceitos que se acoplaram aos que ela já vivenciava antes. O simples fato de competir no Paradesporto já produz marginalização. Ser transexual, no esporte Paralímpico, a coloca em um contexto de marginalizada dentre os outros sujeitos marginalizados. Será que os Jogos Paralímpicos atuam são verdadeiramente inclusivos para pessoas como Valentina?
Ademais, a presença de Valentina possui suma importância, ainda mais por vir logo na sequência de uma edição dos Jogos Olímpicos marcada por uma falsa ideia de representatividade transexual, a partir de uma onda de desinformação. Porém, é importante olhar para os Jogos Paralímpicos e para os marcadores sociais que Valentina carrega. Será que este grande evento é realmente inclusivo para pessoas similares a Valentina? Que a participação da corredora sirva de impulsão para visibilização de sujeitos como ela, mas também para questionamentos sobre o quanto um evento que se vende a partir de uma narrativa de inclusão tem sido verdadeiramente inclusivo.
Entendendo conceitos
Antes de mais nada, é importante realizar uma distinção terminológica. O caso da boxeadora argelina Imane Khelif, medalhista nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, e toda a onda de desinformação que acompanhou sua participação aponta para uma necessidade de explicar alguns termos. Transgênero é um termo “guarda-chuva” que engloba diferentes identidades de gênero, como, por exemplo, travestis, transexuais, intersexo, não-binários, etc. Transexuais trata-se especificamente de uma pessoa o qual não se identificou com seu gênero atribuído no momento do nascimento e realizou uma transição de gênero.
Retomar estas distinções é necessário, uma vez que houve uma onda de preconceito direcionado a Imane a partir da difusão de informações incoerentes. A boxeadora medalhista nos Jogos Olímpicos possui uma condição de hiperandrogenismo, e como consequência, aumento na produção de testosterona. A questão é que a partir destas características da atleta, houve a construção de uma narrativa que falsamente colocava Imane como uma mulher transexual, e uma onda de ataques nas redes sociais. É curioso como uma edição dos Jogos Olímpicos que não possuiu nenhuma mulher transexual, resgatou tanto preconceito.