Por Hyader Epaminondas

Justiça 2 retorna com episódios densos e cheios de alegorias, mergulhando profundamente na complexidade das vidas de seus personagens e novamente utilizando uma narrativa intrincadamente entrelaçada para explorar questões sociais, econômicas e emocionais para trazer reflexões profundas sobre os limites da moralidade e da própria noção de justiça na sociedade.

Os primeiros quatro episódios são desenvolvidos para apresentar os novos protagonistas, interpretados por nomes fortíssimos do cenário nacional como Juan Paiva, Alice Wegmann, Belize Pombal, Nanda Costa e Murilo Benício, cada um carregando consigo suas próprias histórias e lutas, todas ambientadas no cenário sombrio e negligenciado de Ceilândia, a periferia mais populosa do Distrito Federal. O elenco secundário de peso incrementa camadas adicionais à força visceral dos personagens principais. Com nomes como Paolla Oliveira, Júlia Lemmertz, Marco Ricca, Danton Mello, Fábio Lago e Leandra Leal, para elevar ainda mais a qualidade da produção.

A primeira temporada foi bastante aclamada pela crítica e pelo público em 2016 por sua trama complexa e pela forma como abordou questões morais e éticas, explorando temas como vingança, justiça e redenção. A segunda temporada da antologia foi escrita pela idealizadora do título Manuela Dias, com colaboração de Walter Daguerre e João Ademir, apostando na direção de Mariana Betti, Pedro Peregrino e Ricardo França, com direção geral e artística de Gustavo Fernandez para dar forma à trama. 

Desde o início, a série estabelece uma atmosfera sombria, melancólica e sem muita teatralidade, ressaltada pelo icônico tema musical “Hallelujah“, que ecoa como um lamento abafado ao longo dos episódios em seus momentos de tensão. Essa trilha sonora emblemática se torna uma parte essencial da identidade da série, exaltando músicas brasileiras como uma sombra enquanto acompanha cada reviravolta emocional e revelações criativas que distorcem expectativas.

Nessa segunda fase, a história se desdobra ao longo de 28 capítulos, a cada sexta-feira, quatro episódios são disponibilizados no serviço de streaming divididos em quatro tramas entrelaçadas, cada uma centrada em torno de um dos casos apresentados.

É abordado também de forma incisiva as falhas do sistema judicial, expondo sua incapacidade de proporcionar uma justiça imparcial e as consequências devastadoras disso na vida dos envolvidos. As tramas destacam as desigualdades sociais e econômicas, que influenciam diretamente as trajetórias dos personagens e lançam luz sobre questões mais amplas de injustiça estrutural.

Um mosaico brasileiro de humanidades

Um dos pontos mais fortes desse início da temporada é sua crítica incisiva à “uberização” do trabalho, destacando os perigos do monopólio dos aplicativos e a precarização das relações trabalhistas. Isso é sempre utilizado num contexto de corrupção sistêmica onde apenas o trabalhador sai perdendo, com a justificativa de que agora se tornaria seu próprio patrão. 

Essa crítica é encabeçada de maneira convincente pelo talentoso ator Juan Paiva, que empresta seu carisma e olhares firmes para dar vida ao cativante motoboy Baltazar. Aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de testemunhar sua performance em “M8 – Quando a morte socorre a vida”, dirigido por Jefferson De, ou na novela atual da Globo Renascer, estão perdendo uma experiência fenomenal de atuação.

A série não apenas expõe a diluição das leis trabalhistas e a falácia da suposta ascensão da era do empreendedorismo a partir de 2016, mas também lança luz sobre as injustiças e desigualdades profundamente enraizadas na sociedade moderna. Essas injustiças são frequentemente ignoradas devido à avalanche contínua e rápida de informações que enfrentamos diariamente, querendo ou não, é impossível se manter saudável e informado ao mesmo tempo. Ao destacar esses temas, a série nos confronta com a realidade inquietante de um sistema que, ao invés de promover igualdade e oportunidade, perpetua desigualdades e exploração.

A interligação das histórias dos personagens é elaborada com meticulosidade, se atentando aos mínimos detalhes na criação do conflito coletivo em que os protagonistas estão gradualmente se envolvendo, como vitrais, cada um revelando um fragmento da luz que tenta penetrar as sombras da injustiça e da desigualdade vivida por eles.

Essa abordagem narrativa proporciona uma visão panorâmica das vidas dos protagonistas, para criar toda a ambientação claustrofóbicas causada pelos conflitos internos das histórias abordadas, mergulhando nas profundezas de suas angústias e desafios, enquanto desvela os fios invisíveis que os conectam em um intrincado tecido social onde a falsa ideia de democracia social impera.

A cinematografia desempenha um papel fundamental na criação da atmosfera opressiva da série, utilizando planos criativos e ângulos de câmera para projetar a emoção pretendida. O uso do espaço físico reflete as restrições e limitações enfrentadas pelos personagens, enquanto o olhar da câmera posiciona o espectador como um observador voyeurista, testemunhando as tragédias pessoais por trás dos buracos de uma fechadura.

Um afogamento familiar

A história de Carolina, interpretada por Alice Wegmann, serve como um poderoso retrato do silenciamento dentro da dinâmica familiar. Através de uma metáfora sutil, o som do chuveiro ecoa as lágrimas não derramadas de Carolina, simbolizando sua voz silenciada. Conforme a temporada avança, Carolina quebra o silêncio opressivo, reivindicando sua própria narrativa e rompendo com a tradição do sofrimento calado.

Sua dor é transmitida como um reflexo de uma realidade frequente, onde casos semelhantes ao de Carolina são abafados e não expostos dentro do próprio seio familiar. O contraste entre a denúncia implícita e o som do chuveiro cria uma atmosfera de tensão crescente, o clima que se desenvolve ao longo do segundo episódio evoca um silêncio quase sepulcral, culminando quando Carolina finalmente encontra sua voz.

Nessa história específica, Alice não é a protagonista, e sim Murilo Benício, o que inicialmente causa estranheza nos quatro primeiros episódios. Porém, ao refletir, voltamos ao título da produção para buscar explicações e então encontramos Carolina como protagonista, tratando com sensibilidade absurda as injustiças do sistema penal brasileiro.

Um soco no estômago

O desenvolvimento das histórias após a passagem de tempo serve como uma poderosa ilustração das deficiências do sistema penal em proporcionar uma segunda chance aos cidadãos que cumpriram suas penas. Ao mostrar como os personagens enfrentam obstáculos e estigmas após sua liberdade, a narrativa destaca a falha do estado em fornecer suporte adequado para a reintegração dos ex-detentos à sociedade. 

Essa abordagem não apenas oferece uma reflexão sobre as questões sociais e políticas relacionadas à justiça criminal, mas também promove uma discussão crucial sobre a necessidade de reformas no sistema para garantir oportunidades justas e igualdade de chances para todos os indivíduos, independentemente de seu passado criminal.

Apesar do tom de denúncia que permeia a série, há uma sensação constante de desespero e impotência que paira sobre os personagens. O silêncio e a invisibilidade se tornam elementos essenciais na construção da conectividade entre as histórias, criando uma atmosfera de desespero e isolamento.

A vingança é apresentada como um fio condutor, permeando as histórias dos personagens e questionando os limites entre justiça e vingança pessoal. O desejo de reparação e retomada surge como uma força motriz enquanto acompanhamos o desenvolvimento dos personagens, revelando os dilemas morais enfrentados por eles em meio a relações interpessoais.

Mesmo por ser uma produção com sua narrativa episódica, sua linguagem é orgânica e conectada, seja na atuação sinérgica do elenco quanto na elaboração da montagem das cenas com performances impressionantes. Cada aspecto da construção do imaginário da série é elaborado com destreza, tomando seu tempo para que, quando o impacto chegar ao seu ápice, o estrondo seja verdadeiramente arrebatador.