‘Tipos de Gentileza’ resgata a loucura calculada de Yorgos Lanthimos
Novo longa do diretor de “Pobres Criaturas” chega aos cinemas nesta quinta-feira (22), e tem Emma Stone, Jesse Plemons e Willem Dafoe no elenco
Por Débora Anunciação
Assisti ao novo filme de Yorgos Lanthimos, “Tipos de Gentileza” (“Kinds of Kindness”), sem saber nada sobre a história. Esperava o retorno da parceria bem-sucedida entre o diretor, Emma Stone e Willem Dafoe em “Pobres Criaturas”, indicado ao Oscar de Melhor Filme em 2024; uma cena de dança em um estacionamento e uma participação de Hunter Schafer, de “Euphoria” (cenas do trailer). Recebi, além disso, três histórias distintas costuradas por linhas nada tênues de submissão, codependência e bastante acidez.
Quando os créditos começaram a subir, pouco mais da metade do filme, chequei o relógio. Não é possível que o tempo teria passado tão rápido. Não tinha. Logo outra história começou, com os mesmos atores (Stone, Dafoe, Jesse Plemons, Hong Chau, Joe Alwyn, Margaret Qualley e Mamoudou Athie). E o feito se repetiu mais tarde, em uma espécie de ato final.
Na nova produção, Yorgos retoma as raízes. O resultado é algo muito diferente de seus trabalhos mais recentes, mas tudo aquilo que o espectador já familiarizado com os universos peculiares, surreais e satíricos de “Dente Canino (2009), “O Lagosta” (2015), “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017) espera de uma obra de Lanthimos.
A direção dantesca eleva o absurdo á máxima potência a cada história. E por baixo de cada situação absurda, há reflexões caras e necessárias demais para uma sociedade adoecida nas relações interpessoais.
A maior ironia de todas está no próprio título do filme: é difícil encontrar algum tipo de gentileza em “Kinds of Kindness”. Onde se espera gentileza, se recebe violência.
E a violência ali está presente nas mais diversas formas: desde a violência física de uma acidente de carro ou de uma mutilação corporal, à violência sexual em relacionamentos, à violência psicológica, moral e patrimonial em ambientes corporativos e também no contexto familiar.
A primeira
O filme começa com Robert (Jesse Plemons), um gerente que parece seguir à risca tudo o que o patrão e amante (Willem Dafoe) ordena. Todos os dias, ele recebe uma lista do que vestir, comer, fazer, até mesmo de quando transar com a esposa (Hong Chau). O retorno é financeiro, patrimonial, e envolto por muitos presentes esportivos raros — como até mesmo o capacete usado pelo piloto brasileiro Ayrton Senna no dia do acidente fatal.
Após anos desta rotina, Robert perde a si próprio. Perde-se tanto que se torna incapaz de escolher uma bebida em um bar sem a indicação de outra pessoa. Sua derrocada começa quando ele finalmente se recusa a cumprir uma dessas instruções: forçar um acidente de carro e, possivelmente, machucar ou matar outra pessoa.
A segunda
Sem tempo para digerir o final do primeiro enredo, que poderia aproveitar de mais minutos de tela, o espectador é inserido em um roteiro ainda mais provocativo.
Aqui Plemons vive Daniel, um policial que reencontra a esposa, Liz (Stone), que estava desaparecida após uma expedição marítima. Aos poucos, porém, ele começa a questionar se a mulher que retornou é realmente a sua companheira.
A última
A última narrativa gira em torno de uma seita. Andrew (Plemons) e Emily (Stone) estão à procura de uma mulher com poderes de ressuscitar os mortos, enquanto dividem a atenção dos líderes, Omi (Dafoe) e Aka (Chau). É tudo que se espera de uma seita (do abuso à ausência de livre arbítrio), com o acréscimo de elementos fantásticos e surreais.
Na atuação, o destaque mesmo é Jesse Plemons. Não é atoa que o ator foi premiado pelo trabalho no Festival de Cannes, neste ano. Conhecido por atuações marcantes em “Guerra Civil” (2024), “Assassinos da Lua das Flores” (2023), “Estou Pensando em Acabar com as Coisas” (2020) e “O Irlandês” (2019), entre outros, Plemons encara o complexo trabalho de encarnar personagens que não poderiam ser mais diferentes entre si.
A primeira talvez seja a melhor das três histórias, por soar mais real. Removidos alguns exageros, é um plot bastante realista e, dependendo de quem o assiste, a interpretação pode alcançar pontos nevrálgicos. Afinal, não é difícil imaginar o desespero de uma mulher ao descobrir que toda a sua vida matrimonial foi planejada por um terceiro.
A direção é outro show à parte e não passa despercebida, mas também não tem essa pretensão. Closes muito perto te dão a sensação de que você está onde não devia. É muito intimo, desconfortável e inquietante.
Mas nada ali parece gratuito. Nem mesmo as cenas de sexo, tão criticadas em “Pobres Criaturas”. Da fotografia ao design de produção, passando pela trilha sonora que inclui hits como “Sweet Dreams (Are Made Of This)”, tudo parece milimetricamente calculado para transmitir a sensação de um controle coercitivo cada vez maior.
Uma edição mais criteriosa seria bem-vinda, porque “Kinds of Kindness” é um filme longo — seja pelas três histórias diferentes, pelos enredos densos, ou pela quase uma hora de duração de cada. Um filme longo, que você sente que é longo, e não precisava ser tão longo.
A dica é: vá ao cinema, confronte seus pensamentos intrusivos e desfrute da loucura calculada de Yorgos Lanthimos.