Por Rodrígo Olivêira*

Essas cinco violências estiveram e estão presentes desde o meu diagnóstico de autismo aos 29 anos até os meus atuais 31 anos. A primeira dessas cinco violências fez com que eu optasse por fazer meu Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo sozinho, sendo que deveria ser em grupo. 

Ter a sensação de não caber no mundo foi algo muito comum na minha fase da adolescência. E com isso vieram também os múltiplos questionamentos: por que eu sou assim? Por que eu me sinto diferente dos outros? 

Só aos 29 anos, eu, Rodrígo Olivêira, pude saber que toda a minha atipicidade, os meus anseios, dificuldades em ter e manter amigos e as relações afetivas com minhas ex-namoradas, ansiedades, depressão etc. tinha um nome: autismo. 

Esta reportagem multimídia é para todos os autistas que irão crescer, se tornarem adultos, mas que nunca deixarão de ser pessoas autistas. É também o meu grito de existência nesta sociedade brasileira segregadora e preconceituosa.

Me silenciar nunca foi uma opção que aceitei.


A DESCOBERTA 

O diagnóstico do autismo não é algo fácil de se absorver, e, por vezes, pode ocorrer uma mistura de sensações, como se sentir aliviado por finalmente descobrir o motivo das dificuldades do dia-a-dia, bem como da não aceitação. Além disso, há situações em que a equipe multidisciplinar de profissionais da saúde sequer suspeita do diagnóstico de autismo. 

Andréa Werner, tutora de dois Golden Retrievers, jornalista, deputada estadual por São Paulo, ativista na causa do autismo e da pessoa com deficiência, teve o seu diagnóstico de autismo em 2023, aos 47 anos, tardiamente. No entanto, ela não estava em busca do diagnóstico, mesmo tendo em seu círculo social pessoas autistas.

Com o diagnóstico de autismo do filho em 2010, e anos mais tarde, com a descoberta do seu diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), Andréa passou a entender que todas as suas inquietações eram provenientes do TDAH. 

Após ser provocada pelos amigos, Werner foi buscar o diagnóstico oficialmente, que, segundo ela, durou seis meses e foram necessárias entrevistas com o marido, pais e amigos.  

Para o influenciador digital, ator e produtor cultural Kelvin Lamare, foram muitas as características autísticas que apareceram durante sua infância, apesar de, no seu caso, não ter tido atraso de fala. Kelvin começou a falar antes do convencional, antes do primeiro ano de vida.

Com a chegada da adolescência, sua saúde mental começou a ficar prejudicada, chegando ao ponto de ter crises psiquiátricas agudas e, consequentemente, sua primeira internação psiquiátrica. Com o episódio em que tentou atentar contra sua própria vida, ele foi levado ao hospital e já direto para uma clínica psiquiátrica para internamento integral durante um mês. No entanto, ele ainda relata que a equipe multidisciplinar sempre o tratava como borderline, ao invés de suspeitarem do autismo.

Somente em 2021, Kelvin e sua mãe foram em busca de uma resposta para descobrir o seu diagnóstico. Ela entrou em contato com uma clínica especializada em autismo, e passou três meses por uma avaliação neuropsicológica. 

“No final, a avaliação neuropsicológica e o instituto acusaram o meu autismo e o meu TDAH.” desabafa Kelvin Lamare.

Ainda que o diagnóstico do autismo aconteça de forma tardia e após um longo caminho percorrido, com grandes danos psicológicos, sua descoberta pode ser um alívio para quem sofreu por muitos anos sem entender os motivos dos seus prejuízos sociais. 

Para César Alexandre (nome fictício para preservar a identidade do entrevistado), diagnosticado com TEA e TDAH tardiamente, a sua infância foi muito difícil, principalmente na escola e no relacionamento com a sua família.

Por conta da falta de conhecimento sobre o espectro do autismo, que teve grande influência na falta de entendimento dos pais sobre seus déficits de aprendizagem e socialização, ele sofreu muitas violências físicas. Atualmente, César Alexandre faz uma reflexão de que, mesmo que os traumas provenientes dessas violências não se apaguem e que haja perdão aos pais, para ele é um alívio saber o motivo do seu funcionamento neurodiverso.

DE FILHO PRA PAI/MÃE? 

No vocabulário de expressões brasileiras, existe aquele célebre dito popular “filho de peixe, peixinho é” para poder descrever a grande semelhança dos filhos com um dos ou os dois pais. Mas, e se a descoberta do autismo tivesse o mesmo sentido da descrição, mas de forma invertida? Confuso, né?

Esse é o caso de Liliane Macedo, 49 anos, mãe de Letícia Vicência, que descobriu o diagnóstico de autismo em janeiro deste ano após o diagnóstico da filha, uma jovem de 18 anos, estudante de biomedicina e TEA influencer.

Letícia afirma que, para ela, não foi nenhuma surpresa o diagnóstico e que veio como uma forma de se entender e melhorar a qualidade de vida. Porém, para Liliane, foram necessários três anos com diagnósticos errados, como o de borderline, para então chegar ao diagnóstico de autismo.

Esta situação vivenciada por mãe e filha, atualmente, não é algo tão incomum neste universo de descoberta do autismo.

Não muito diferente de Letícia e Liliane, Romeu Sá, advogado baiano e especialista nas causas jurídicas de pessoas autistas, também descobriu ser autista nível 1 de suporte alguns anos após o diagnóstico de sua filha Maria Clara, aos quatro anos.

No entanto, desde que sua filha teve o diagnóstico, Romeu precisou estudar muito sobre a temática, se tornando um hiperfoco (intensa concentração mental em tópico específico, muito comum no autismo), o que resultou em se observar a partir das características da própria filha. A partir disso, ele foi reunindo indícios e sendo incentivado a fazer consultas com especialistas, como neuropsicólogo e psiquiatra, até chegar ao diagnóstico de TEA.

Um estudo feito com 2 milhões de indivíduos e em cinco países diferentes, publicado na JAMA Psychiatry em julho de 2019, confirmou que entre 97% e 99% dos casos, o autismo tem causa genética, sendo em 81% hereditário.

O trabalho científico ainda sugere que 18% a 20% dos casos têm causa genética somática (não hereditária), e o restante, de 1% a 3%, tem causas ambientais, por exposição a agentes intrauterinos como drogas, infecções e traumas durante a gestação.

Portanto, cientificamente, é possível que um adulto que é pai ou mãe de uma criança, que tenha descoberto o TEA precocemente, também faça parte do espectro.

O QUE É O TEA? 

Cientificamente, de acordo com o DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da American Psychiatric Association, o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades de interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e restritos.

No entanto, é preciso pontuar algumas peculiaridades acerca do autismo, que, de acordo com a psicóloga Yngrid Gomes, especialista em atender crianças no espectro, o TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento e não uma doença.

Yngrid aponta alguns fatores que podem ocorrer no autismo durante o neurodesenvolvimento. De acordo com a médica Rachel Lorencini, existem critérios científicos baseados no DSM-5 para poder dar com precisão o diagnóstico de autismo. Segundo Yngrid e Rachel, os fatores e critérios do TEA são:

No entanto, é preciso salientar que, apesar de haver uma classificação do autismo como “doença” no CID-10 (Classificação Internacional de Doenças), as nomenclaturas utilizadas por este método de classificação de doenças e problemas relacionados à saúde são desatualizadas se comparadas com o DSM-5.

Neste sentido, Yngrid Gomes salienta algumas questões de nomenclatura e também sobre os níveis de suporte. Dra. Rachel Lorencini ainda ressalta um grande equívoco por parte das pessoas de que o nível de suporte está associado ao nível de “funcionalidade” do indivíduo com TEA. No entanto, segundo ela, o nível de suporte pode também estar ligado a alguma comorbidade associada ao autismo, como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), dislexia (afeta a capacidade de ler, escrever e soletrar), discalculia (transtorno específico da aprendizagem com prejuízo na matemática), entre outros.

Os níveis de suporte atinentes ao TEA não podem ser considerados uma caixinha na qual o autista ficará para sempre inserido ou até mesmo uma sentença de vida.

Há entendimentos atuais de que pessoas com autismo podem transitar durante a vida entre os níveis de suporte. Ou seja, progredir do Nível 3 para o 2 e 1 ou regredir do Nível 1 para o 2 e 3. Isso variará de autista para autista e será influenciado, principalmente, pela rede de apoio familiar e pelo acompanhamento médico multidisciplinar que a pessoa autista terá durante o seu tratamento. 


O QUE A ALEMANHA E ÁUSTRIA NAZISTAS TEM A VER COM O AUTISMO?

Entre os anos de 1933 a 1945, período obscuro da humanidade, onde o Nazifascismo exterminou mais de seis milhões de pessoas, entre judeus e pessoas com algum tipo de deficiência por conta de ideais onde se pregava uma “raça pura ariana”, ocorriam em paralelo os primeiros estudos sobre o autismo. 

De acordo com o livro “Crianças de Asperger: As origens do autismo na Viena nazista” de Edith Sheffer, na década de 1930, no Hospital Infantil da Universidade de Viena, o médico Hans Asperger e sua equipe, que tinham suas atenções voltadas para a socialização, iniciaram os estudos sobre as características autísticas.

Foi identificado também que alguns jovens poderiam apresentar habilidades incomuns, como especialidade em calendários e números. 

Porém, os estudos de Asperger tinham finalidades em identificar pessoas com características autistas (ou com alguma deficiência mais acentuada) e que não fossem úteis para a sociedade nazista, e condená-las à morte nos campos de concentração.

No entanto, é importante salientar que o médico judeu radicado nos Estados Unidos, Leo Kanner, também tinha estudos sobre o autismo, porém, foi o primeiro da terra do Tio Sam a definir como diagnóstico independente. 

Por estar inserido em um ambiente médico e acadêmico de língua inglesa, os estudos de Kanner sobrepuseram-se aos de Hans Asperger, que só publicava em alemão. Com isso, a definição de Kanner, publicada em 1943, prevaleceu no mundo inteiro e, por isso, acreditava-se que crianças e adultos que apresentavam deficiências cognitivas significativas, e que também eram menos verbais e socialmente interativos, eram os “verdadeiros” autistas.

Por conta do prevalecimento da definição dada por Leo Kanner, o seu conceito sobre autismo perdurou por muitos anos nos estudos médicos e influenciou a forma como as pessoas entendiam o autismo como algo que tornava as pessoas com deficiência cognitiva significativa e menos verbais. 

MARCOS HISTÓRICOS SOBRE O AUTISMO 

Confira abaixo no infográfico os principais marcos históricos sobre o autismo nos últimos 44 anos.

MITOS E DESINFORMAÇÃO 

No Brasil dos anos 1980 e 1990, esse conhecimento científico de Lorna Wing ainda não havia sido amplamente divulgado. O que se sabia até então sobre o autismo se encaixava na definição dada por Kanner: pessoas com deficiência cognitiva significativa e menos verbais. 

Nesse sentido, no ano de 1989, em concomitância com esse período de revolução do conhecimento sobre o autismo, foi veiculada uma propaganda do AMA (Associação de Amigos do Autista), com a presença do ator Antônio Fagundes, onde se pode observar a divulgação de um estereótipo advindo de um conhecimento incompleto sobre o autismo naquela época aqui no Brasil. 

No comercial é possível ver, durante toda a peça publicitária, que ao fundo há uma criança que não tem controle sobre os seus movimentos corporais. Enquanto isso, o ator narra:

Você sabe o que é o autismo? Essa criança sofre desse mal. Ela é prisioneira do seu próprio mundo, não consegue se comunicar com ninguém, nem mesmo com seus pais. Só em São Paulo existem mais de seis mil crianças autistas, a maioria sem recursos. A AMA (Associação de Amigos do Autista) precisa urgentemente de dinheiro para continuar a sua luta contra esse mal.” 

Definições como estas, existentes na década de 1980, reverberam até hoje no imaginário da população, quando se trata de definir qual é “a cara do autismo”.

Em 1998, a renomada revista científica sobre medicina Lancet, fez a publicação de um estudo feito por Andrew Wakefield, em que ele afirmava que as vacinas causam autismo. Em 2014, seu registro médico foi cassado e a Lancet retirou o estudo dos seus arquivos e se retratou publicamente. Após essa situação, mais de 20 estudos seguintes mostraram que esta associação entre vacinas e autismo não tem fundamento científico. 

AUTISMO TEM CARA?

Por conta desses mitos e desinformações sobre o TEA, os autistas de níveis 1 e 2 de suporte acabam sendo estigmatizados por conta de uma “pseudo-cara” de autismo, a partir do que foi definido por Leo Kanner em seus estudos e muito divulgado. Mas, na verdade, ele encontrou uma parte do espectro do autismo.

Por ser um transtorno do neurodesenvolvimento desenvolvido em seres humanos, o TEA pode estar presente sem distinção nas etnias negras, brancas, indígenas, asiáticas, e não faz distinção de gênero ou sexualidade, como homens cis, mulheres cis, héteros, lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, não binários etc.

Isso dialoga com o jovem estudante de psicologia Nana, que é autista nível 2 de suporte e se identifica como pessoa não binária. Para ele (um de seus pronomes), as pessoas buscam dar sentido às coisas por meio de símbolos, como os personagens Sheldon Cooper (The Big Bang Theory) ou Dr. Shaun Murphy (The Good Doctor).

A partir do momento em que a sociedade tenta representar pessoas autistas como os personagens do audiovisual ou os descritos por Leo Kanner, isto pode invalidar o diagnóstico de pessoas autistas.

Ao mesmo tempo, invisibiliza pessoas autistas com níveis 1 e 2, principalmente os que não tenham tido atraso de fala e déficit cognitivo, e ocasiona uma grande barreira para que esses autistas tenham acesso aos direitos garantidos por lei.

Existem algumas formas de identificar corretamente uma pessoa autista que são: o CIPTEA (Carteira de Identificação da Pessoa com TEA, colar de quebra-cabeças e o colar de girassol. O uso deste último está descrito na lei 14.624/23, sancionada por Geraldo Alckmin, que institui o seu uso para pessoas com deficiências ocultas, entre elas, o autismo.


LEIS NO BRASIL 

À medida que estudos avançam mundialmente, o conhecimento sobre o autismo passa a ser difundido, mas a passos lentos. No entanto, começa a ter reverberações favoráveis para os que já estão no espectro e, consequentemente, para aqueles que ainda não sabem que estão. 

Em 2012, foi sancionada a Lei Berenice Piana (12.764/2012), que versa sobre a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA. A lei traz direitos importantes, como acesso a um diagnóstico precoce, tratamento, terapias e medicamentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), e, principalmente, considerar os autistas como pessoa com deficiência, em função do art.1º, parágrafo 1º, inciso I e parágrafo 2º que dizem que: 

§ 1º Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do espectro autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada na forma dos seguintes incisos I ou II: 

I – deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento; 

II – padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos. 

§ 2º A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais. 

De acordo com Romeu Sá, a Lei Berenice Piana é de extrema importância no que se refere aos direitos dos autistas, uma vez que, reconhecido o status de pessoa com deficiência para os autistas, a lei federal amplia a gama de direitos dos autistas. Segundo ele:

Em 2015, é criado o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), o qual amplia a proteção das Pessoas Autistas, ao harmonizar com o art.1º, parágrafo 2º da Lei Berenice Piana , o dizer que:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. 

Ainda segundo o advogado, assim que a pessoa tem o diagnóstico de autismo, independentemente da idade e nível de suporte, a pessoa passa a ser uma pessoa com deficiência, e consequentemente, a ter seus direitos conforme a Lei.

(LEI) ROMEO MION 

No Natal de 2015, o apresentador Marcos Mion publicizou que o seu filho mais velho, Romeo, é autista. 

Após ter tornado público o diagnóstico do filho Romeo, matérias jornalísticas sobre o autismo passaram a ter um status de maior relevância dentre as temáticas pautadas pela mídia tradicional e nas redes sociais.

Ao buscar dados gerados no Google Trends, plataforma que fornece acompanhamento da evolução do interesse público por determinados temas, palavras-chave e expressões; tendo como país o Brasil, no período de 01/01/2004 a 13/09/2024, com os filtros em todas as categorias e com pesquisas na web, e com três termos de pesquisa: autismo, Romeo Mion e Marcos Mion, encontramos:

Diante dos dados apresentados, é possível ver um crescimento substancial na procura pelo termo autismo nas pesquisas feitas na web aqui no Brasil, a partir do ano de 2016. E isso se deve ao constante agendamento da temática a partir das notícias geradas pela relação entre Marcos Mion e seu filho Romeo, e o próprio engajamento do apresentador na causa do TEA.

Quase cinco anos do post nas redes sociais, e com as constantes pautas sobre o autismo, a partir da vivência entre Marcos Mion e seu filho Romeo, esta história acabou reverberando na legislação, criando a Lei Romeo Mion 13.977/2020, que se tornou um grande marco jurídico para as pessoas autistas. A partir dela foi instituída a Carteira de Identificação da Pessoa com TEA (CIPTEA), para facilitar o acesso a direitos já garantidos por lei, já que é importante frisar que o autismo é considerado uma deficiência não visível.

O advogado Romeu Sá ressalta que o CIPTEA é de extrema importância para a pessoa autista, pois, por ser um instrumento de fé pública em território nacional, o documento ajuda o autista a ter seus direitos respeitados sem precisar carregar o laudo médico impresso ou plastificado, que, por vezes, pode ser extenso.

Portanto, instrumentos legais como estes garantem a correta identificação das pessoas autistas, para que possam acessar seus direitos garantidos por lei, assim como evitar passarem por constrangimentos e até mesmo violências advindas do preconceito. 

Sobre o que fazer quando uma pessoa autista passa por violências advindas do preconceito, Romeu Sá orienta:


A VIOLÊNCIA DOS PRECONCEITOS E OS OBSTÁCULOS EM EXERCER DIREITOS 

Apesar de no Brasil terem leis que asseguram os direitos da pessoa autista, desinformações provenientes de estudos como o de Andrew Wakefield ou pela já mencionada definição rígida de Leo Kanner sobre o autismo, que reverberou na peça publicitária de Antônio Fagundes, acabaram criando mitos que rondam o imaginário popular até hoje. 

Independentemente do nível de suporte (1,2 ou 3), as pessoas que foram diagnosticadas com autismo são alvos fáceis para sofrerem capacitismo. No entanto, os níveis 1 e 2 de suporte, que geralmente têm a parte cognitiva preservada e não têm a fala afetada, são invisibilizados e têm mais dificuldades para exercer seus direitos como autista.

De acordo com o site do Ministério da Saúde, capacitismo é um ato que ocorre por meio das formas de tratamento, comunicação e práticas, além das barreiras físicas, arquitetônicas e atitudinais que impedem o pleno exercício da cidadania pelas PcD’s. 

Pessoas autistas adultas também sofrem preconceito de forma violenta e nos mais variados locais: fila preferencial, universidade ou até mesmo ao se identificar como autista.

Como os casos da jovem pianista de cabelo bicolor (rosa e verde), empreendedora e palmeirense de 29 anos, Cá Gregório; da mãe, ativista dos Direitos Humanos e educadora brasiliense, Jéssica Borges; e da amante dos felinos, a bióloga indígena Ynathari Ampak.

Os preconceitos vividos por cada uma das três acabam acarretando dificuldades na hora de usufruir de seus direitos garantidos por lei. E esse preconceito recorrente, por muitas vezes, acaba desgastando o autista ao ponto de vir desistir de utilizar de algo que é um direito.

No entanto, há variações de experiências em se ter ou não essa dificuldade para acessar esses direitos. É fato que os preconceitos e invalidações que os autistas adultos experienciam acarretam vários impedimentos em utilizarem seus direitos na fila, requerer o passe livre ou o cartão de vaga especial.

E todo esse obstáculo, por vezes, advém de onde menos se espera: de certas matérias do próprio jornalismo. Neste ano de 2024, eu fui fonte primária de uma matéria de um meio de comunicação grande aqui de Salvador/BA, e enquanto aguardava a minha matéria subir no site, acabei lendo uma que poderia ser a minha, mas não foi.

Porém, no decorrer da matéria, ao abordar os níveis de suporte, eu não consegui lidar com o que estava escrito: “Nível 1 de suporte: é considerado o mais ‘leve’, que precisa de pouco suporte.” Mas, leve para quem?

Fui atrás de uma colega de faculdade que estagiava lá e disse que havia equívocos de nomenclatura e que deveria ser revisto. Porém, veio um áudio de 22 segundos como resposta, o qual transcreverei (para não ser processado):

Oi, Rodrigo! Bom dia! Tudo bem? Oh, é o seguinte… aqui a gente não faz nada sem apuração, não, tá? Ela utilizou uma fonte, conversou com alguém, a gente não vai publicar NADA na brincadeira, na molecagem não. Então, a partir do momento que ela usa uma fonte, ela utilizou as informações que a fonte mandou, tá bom?

Ou seja, eu, Rodrígo Olivêira, autista nível 1 de suporte, fui silenciado e impedido de usar do meu próprio nível de suporte e conhecimento de causa sobre o autismo para que fosse corrigida essa nomenclatura que acaba perpetuando muitos preconceitos que eu, meus entrevistados e tantos outros autistas vivem, em virtude de um coleguismo desta minha futura colega de profissão para com a jornalista do meio de comunicação em que estagia.

Para além disso, ainda que essa fonte seja de uma profissão ligada à saúde, certamente não é uma pessoa autista de nível 1 de suporte que sabe das suas dificuldades diárias. Portanto, ignorar um autista que vive diariamente na prática o que é ser nível 1 de suporte, é perpetuar, conscientemente, todos os preconceitos em que vivemos. E isso me marcou tanto, que resultou nessa coluna.

A sociedade pensa que toda pessoa autista, quase que automaticamente, recebe algum benefício do Estado por conta do diagnóstico. Só que a realidade é muito diferente do que ocorre no imaginário das pessoas. O advogado Romeu Sá ainda exemplifica o caso do INSS em indeferir o BPC (Benefício de Prestação Continuada) para autistas nível 1 de suporte. Segundo ele:

O DIREITO AO TRABALHO

Apesar de a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso XIII, e do Estatuto da Pessoa com Deficiência nos artigos 34 e 35, em conjunto, garantirem o livre exercício do trabalho principalmente para a pessoa com deficiência mediante sua livre escolha e aceitação e com um ambiente acessível e inclusivo com iguais oportunidades às demais, o que presenciamos na prática é totalmente o oposto.

Esse importante aspecto da vida da pessoa autista não é muito respeitado pelas empresas privadas, ao proverem pelas adaptações, e por vezes invalidados pelos profissionais da saúde que compõem as bancas examinadoras, ao se depararem com autistas nível 1 de suporte.

Por conta deste desrespeito violento para com as pessoas autistas, muitos deles recorrem a outras modos de sustento de forma autônoma pelas redes sociais, como nos casos dos nossos entrevistados Kelvin Lamare, que atualmente tem investido no trabalhado com Marketing Digital; a Giovanna Vlasic, que dá aulas online de japonês e faz parte do Squad de um e-commerce de Tecnologia e Games e Embaixadora de um Clube de Assinaturas Geek; e Cá Gregório, que empreende com sua papelaria Dopaminotas, especializada em pessoas com TDAHs.

Não muito diferente deles, Letícia Vicência, que apesar de ter iniciado suas abordagens sobre a temática de forma despretensiosa para poder mostrar seu dia a dia como autista e se conectar também com outras pessoas no espectro, atualmente tem mais de 100 mil seguidores, e fez sua primeira publicidade de produto em setembro deste ano.

A jovem estudante e influencer ainda atribui a ausência de pessoas autistas no trabalho formal ao fato de não existirem vagas ou simplesmente pelo preconceito por se identificarem como autistas.

Isso não ocorre somente no mercado de trabalho. Durante a minha graduação de Jornalismo, eu enviei meu currículo para alguns veículos de comunicação/jornalismo daqui de Salvador/BA, porém constando o meu diagnóstico e comorbidades. Em outubro de 2023, eu recebi um e-mail dizendo: “Olá! Agradecemos seu interesse em integrar nossa equipe. No momento, optamos por um candidato com outro perfil. Quem sabe numa próxima oportunidade?

Esse ano, conversando com uma colega que estagiou em um grande veículo de comunicação/jornalismo também de Salvador/BA, ela me confirmou que eu não fui escolhido por constar o diagnóstico de autismo no currículo.

Portanto, (sobre)viver sendo uma pessoa autista, com parte acadêmica boa, com experiência, graduação prévia: nada disso importa, a não ser o diagnóstico. E lhes pergunto: o TEA continua leve?

E QUANDO O PRECONCEITO VEM DO PRÓPRIO ESTADO?

Quando se fala do Estado, sempre temos em mente o Poder Público, um ser onisciente e onipresente na vida dos cidadãos, para poder dirimir situações de grande importância, seja no âmbito público ou privado.

No entanto, este mesmo Estado é dotado de pessoas. Mas não quaisquer pessoas, são pessoas que fizeram concurso público, foram aprovadas e tomaram posse no cargo almejado. Só que em certas situações pode haver um grande problema, principalmente quando esse concursado não tem conhecimento sobre autismo, e, por vezes, atropela as leis.

Recentemente, no final de setembro deste ano, apareceu na minha bolha de pessoas autistas nas redes sociais o relato de um jovem cuja mãe, servidora pública desde 2006, teve o pedido de aposentadoria negado pelo Tribunal de Justiça de Goiás, pois a Juíza Leiga que homologou o projeto de sentença, o qual foi aceito pela Juíza de Direito, disse categoricamente que:

(…) entendo que a pessoa com TEA não pode ser presumivelmente considerado deficiente (…)

No Rio Grande do Sul, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, um jovem com 21 anos já completos pleiteava a continuação da pensão por morte de seu genitor, uma vez que conseguiu no âmbito administrativo, mas, ao completar a idade, foi cessada a pensão por morte.

Apesar de o jovem ter comprovado vastamente sua condição como autista nível 1 de suporte, o perito judicial concluiu que:

Não há elementos técnicos acostados aos autos ou trazidos ao Ato Pericial que demonstrem incapacidade laborativa. Não há expressão clínica incapacitante. Existe doença, mas não há incapacidade para realizar suas atividades da vida diária.

PAPEL DA MÍDIA

Neste meu artigo científico, publicado neste ano de 2024 no INTERCOM (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), eu relembro alguns papéis que a mídia na relação com os leitores das notícias.

Com este artigo científico, eu faço forte correlação entre o Direito e o Jornalismo, e trago o art.5º da Constituição Federal do Brasil e os incisos que abordam a livre manifestação do pensamento, o livre exercício da profissão e, principalmente, o acesso à informação de qualidade.

Ou seja, prover o acesso à informação de qualidade é um dos papéis mais importantes para que a profissão do jornalismo seja exercida sem qualquer empecilho.

No entanto, ainda que haja um ambiente juridicamente propício para exercer a profissão, a própria mídia (tradicional ou não), tem uma grande parcela de culpa por apresentar matérias jornalísticas sobre autismo de forma básica, sem escutar ativamente pessoas autistas e ainda por aceitar passivamente as aspas (reprodução literal de trechos de frases, palavras ou expressões) de determinado profissional da saúde que se autointitula especialista.

Insistir em nomenclaturas como, por exemplo, “portador de autismo” (autismo não é doença para uma pessoa portá-la) e “autismo leve” (pra quem?) nas reportagens jornalísticas, é um completo desserviço para as pessoas autistas, pois acarretará preconceitos, violências e perpetuará as dificuldades dos autistas em acessarem os seus direitos garantidos por lei.

Justamente, por conta de matérias pontuais e com linguajar equivocado, os preconceitos e as dificuldades das pessoas autistas de usufruirem seus direitos, se perpetuam.

Por eu ter sido fonte primária de muitas matérias jornalísticas, eu senti falta da existência de uma matéria jornalística que retratasse como é ser um adulto autista que descobriu (ou não) tardiamente. E isso, mais uma vez, é uma culpa que a mídia carrega ao noticiar o TEA.


O QUE QUEREMOS PARA O FUTURO?

A temática do autismo é bem recente, afinal, tem só 44 anos de estudos científicos atualizados desde Lorna Wing, e apenas nove anos desde que o DSM-5 atualizou as nomenclaturas e ampliou o espectro.

No entanto, é de extrema importância ouvir as vozes adultas no espectro, uma vez que somente nós podemos trazer a realidade das nossas vivências. E nada mais justo do que nos ouvir ativamente e nos respeitar, principalmente quando nós nos apresentamos para podermos usufruir dos nossos direitos.

Afinal, não estamos pedindo um favor, e sim a garantia de que as leis que nos protegem sejam realmente aplicadas no dia a dia.

Assista a seguir a nossa mensagem:

*Esta reportagem multimídia faz parte do TCC para obtenção do Grau de Bacharel em Jornalismo, cuja escrita, Produção, Edição e Montagem Audiovisual foi feita por Rodrígo Olivêira, Graduando em Jornalismo, Autista Nível 1 de Suporte com TDAH. Todas as entrevistas foram realizadas com Pessoas Autistas.