Por Ana Cecília Antunes Lima

Henry Louis Gates Jr., um dos autores mais aguardados d’A Feira do Livro, abordou um assunto inesperado pelo público. No último dia 6 de julho, ele revelou sua visão sobre o Brasil como um país que rejeita a negritude. “O Brasil tem na sua própria história a autonegação de sua diversidade”, afirmou. Vindo dos Estados Unidos, Gates estranhou a ausência de pessoas negras nos locais que visitou. Em seu discurso, mencionou o projeto Slaves Voyage, que estima o tráfico de 5,8 milhões de africanos escravizados para o território brasileiro. No entanto, a única pessoa negra que o professor viu no hotel em que estava hospedado, além dele mesmo, era a escritora Jamaica Kincaid, que também participava da mesa “Narrativas Antirracistas”.

Foto: Isis Maria/ Mídia NINJA

“Quando voce é turista no Brasil, vai a restaurantes, passeia. Onde estão os negros deste país? Onde estão os negros aqui nesta plateia?”, provocou Henry Louis Gates Jr. Ele enxerga essa situação como um fruto de questões históricas e socioeconômicas do país. No século XIX, houve políticas públicas para embranquecer a população. Um exemplo disso foram os incentivos à imigração de europeus e japoneses. Hoje, Gates constata que os negros brasileiros estão presos nas classes mais pobres da sociedade. Por isso, não conseguem ocupar os espaços em que ele esteve. 

Essa não é uma mera impressão do professor, mas uma realidade quantificada pelo IBGE. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais de 2022, quatro em cada dez pessoas pretas ou pardas estavam em situação de pobreza, vivendo com até R$ 637,00 por mês. “O mais importante que poderia acontecer seria a integração dessas pessoas às classes médias, sua ascensão social”, concluiu Gates. Depois dessa reflexão, o professor justificou a sua crítica. Apesar de ser estrangeiro, ele identifica as mesmas estruturas raciais em seu próprio país. “Os erros que a gente fez lá nos Estados Unidos, eu não gostaria de ver o Brasil cometendo”, declarou. 

Essa semelhança não é o único motivo pelo qual Henry Louis Gates Jr. tem autoridade para falar sobre o racismo no Brasil. Ele é diretor do Centro Hutchins para Pesquisa Africana e Afro-Americana na Universidade de Harvard. Além de ser professor dessa mesma instituição, historiador, jornalista, acadêmico e crítico cultural, Gates foi autor, produtor executivo e apresentador da série documental “The African Americans: Many Rivers to Cross”, produção vencedora do Emmy de Programa Histórico Excepcional – Longa Metragem de 2014. 

O professor produziu diversos outros documentário e escreveu livros como “Os negros na América Latina”. Na mesa mediada pela escritora e pesquisadora Juliana Borges n’A Feira do Livro, Gates apresentou sua mais nova obra “Caixa-Preta”. Trata-se de um ensaio sobre escritores negros dos Estados Unidos que utilizavam sua arte para lutar contra os mitos construídos pelo racismo. O texto critica as limitações impostas a esses autores. “No meu país de origem, por cerca de mais de um século, havia pessoas negras, de classe média e classe média alta que estavam tentando dizer para outras pessoas pretas, autores, autoras, o que escrever e como escrever”, explicou o professor. 

“Temos uma frase: ‘você está envergonhando a raça!’. Isso era muito dito”. Em seu novo livro, Henry Louis Gates Jr. homenageia intelectuais que rompiam esses limites e exerciam a negritude da sua própria maneira, como Frederick Douglass, W. E. B. Du Bois, Zora Neale Hurston e Toni Morrison. Durante sua fala n’A Feira do Livro, Gates enalteceu Jamaica Kincaid por sua escrita disruptiva. Nascida em Antígua e Barbuda e radicada nos Estados Unidos, ela nunca identifica a negritude dos personagens, mas a branquitude. Diferente de textos de autores brancos em que a norma é ser branco, na literatura de Jamaica, a presunção é de negritude. 

Foto: Isis Maria/ Mídia NINJA

Na opinião de Gates, rejeitar a branquitude como padrão é construir narrativas antirracistas. “O que essas escritoras fazem é mais sutil, mais eficaz e dura muito mais”, completou o professor. Ao longo da conversa mediada por Juliana Borges, os autores estrangeiros concordaram que a escrita, apesar de ter um caráter libertador, sempre foi um fardo para a população negra. Historicamente, o povo afro-americano teve que provar constantemente sua capacidade intelectual. “Já é dificil demais ser um escritor original, e ainda ter que provar algo para algum idiota racista? Mas é uma armadilha. O que você faz? Não vai escrever? Não vai falar sobre coisas de que quer falar?”, destacou Gates.

Outro colega que Henry Louis Gates Jr. fez questão de prestigiar Wole Soyinka, vencedor do Nobel de Literatura de 1986, que estava na primeira fileira da platéia d’A feira do Livro. Gates se referiu ao autor nigeriano como alguém ativo no combate ao facismo, ao totalitarismo e ao racismo. “Eu vejo nele um exemplo de ser humano que eu amo muito, enquanto irmão mesmo”, expôs Gates. “Ele é o máximo da coragem. Coragem diante de todo o mal”, acrescentou. Em 1967, quando a Nigéria vivia a Guerra Civil, Soyinka foi preso injustamente pelo governo militar. 

Foto: Isis Maria/ Mídia NINJA

O professor Henry Louis Gates contou que Wole Soyinka se exilou na Universidade de Cambridge na mesma época em que ele estudava lá. “Ele me ensinou que, na verdade, o mal não vê cor. O mal é simplesmente mal. Seja em um corpo negro, um corpo branco ou um corpo com traços asiáticos”, recordou. Ao final da palestra, Gates reforçou que acredita no poder transformador da educação. “Acho que a coisa mais revolucionária que podemos fazer, aqui no Brasil e nos Estados Unidos, é insistir que a quantidade de dinheiro investido para cada aluno do nosso país seja a mesma nos bairros ricos e na favela”, argumentou.

Gates também fez um apelo direto ao público: “Sobre os erros que o Brasil tem cometido com relação às suas políticas raciais, por exemplo, eu espero que vocês e as gerações mais jovens percebam a natureza do problema e abordem as estruturas raciais do Brasil na sua história, voltando desde a escravidão”.