Abebe Bikila: o herói descalço que mudou a história olímpica e africana
O atleta que venceu descalço a maratona de 1960 em Roma.
Por Pedro Vater
No ano de 1960, um homem descalço, surpreendeu o mundo inteiro e fez história para a África. Naquela noite, as ruas de Roma estavam cheias de pessoas aplaudindo os maratonistas que competiam nos Jogos Olímpicos. Soldados italianos estavam ao longo das estradas, segurando tochas para iluminar o caminho, enquanto um homem corria em direção à linha de chegada.
Ele era Abebe Bikila, nascido em 7 de agosto de 1932, na pequena comunidade de Jato, localizada no Distrito de Selale em Shewa. Curiosamente, seu nascimento coincidiu com a realização da maratona olímpica de Los Angeles no mesmo ano. Abebe era filho de Wudinesh Beneberu e Demissie, padrasto que assumiu a paternidade após o divórcio de sua mãe.
Durante a Segunda Guerra Ítalo-Etíope (1935–1937), a família foi obrigada a se deslocar para a remota cidade de Gorro. Mais tarde, voltaram para Jato, onde se fixaram em uma fazenda. Até que, em 1941, com a ajuda da grã-bretanha durante a Segunda Guerra Mundial, Haile Selassie, imperador e considerado uma divindade pelo movimento rastafari, retomou o controle e aboliu a escravidão. Eram mais de 4 milhões de pessoas em uma população de 11 milhões, que viviam nesse contexto.
Em 1950, Bikila decidiu tentar uma nova vida, deixando a pequena aldeia onde nasceu e partindo em caminhada até a capital, que ficava a 72 quilômetros de distância. Chegando lá, resolveu entrar para a guarda imperial etíope, em uma tentativa de melhorar as condições de vida da sua família. Terminou, em 1952, se alistando no exército e juntando-se ao 5º Regimento de Infantaria da Guarda Imperial e se tornou guarda pessoal do imperador.
Em 1960, ainda não tinha a chance de competir, mas Wani Bitaru, outro competidor da equipe etíope de atletismo, havia machucado o tornozelo jogando futebol. Foi então que Onni Niskanen, um treinador sueco contratado pelo rei para preparar a guarda imperial, o percebeu e começou a treiná-lo para provas de longa distância. A participação dele nas Olimpíadas foi fruto de um planejamento rigoroso, e não uma decisão de última hora, como muitos pensam. ele nunca havia saído de seu país e falava apenas amárico, sua língua nativa.
A Corrida
Durante os jogos Olímpicos, a marca Adidas, patrocinadora oficial, ofereceu poucos pares de sapatos para os maratonistas poderem utilizar durante a competição. Quando Bikila os experimentou, nenhum deles o deixava confortável. Então, ele decidiu correr descalço. A prova contou com 69 participantes, em um percurso de 42 quilômetros de distância e sob um calor de quase 30° graus, sendo disputada à noite pela primeira vez. Dias antes, ele reconheceu o trajeto e notou que o Obelisco de Axum, que havia sido retirado da Etiópia por tropas italianas em 1937, ficava 1,5 quilômetros distante da linha de chegada, o que se tornou um ponto crucial para sua vitória.
Vestindo shorts de cetim vermelho e colete preto, utilizando o número 11, durante quase toda a corrida, estava lado a lado com os favoritos da maratona, Rhadi Ben Abdesselem, do Marrocos, e Sergei Popov, da então União Soviética. Mas, faltando menos de dois quilômetros para o fim, quando se aproximou do obelisco de Axum, acelerou e começou a se distanciar de seu adversário, cruzou a linha de chegada sob o Arco de Constantino com suas mãos levantadas e comemorando seu triunfo.
Logo após, correu mais alguns metros até chegar à coluna de Trajano para protestar, simbolicamente, sobre os anos da ocupação italiana e do regime de Benito Mussolini.
Após a corrida, entrevistado e perguntado por que havia corrido descalço, Bikila respondeu que “queria que o mundo soubesse que meu país, a Etiópia, sempre tinha conseguido suas vitórias com heroísmo e determinação”.
Além de conquistar a vitória, também se tornou o primeiro africano negro e o primeiro etíope a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos. Estabelecendo um novo recorde mundial de duas horas, 15 minutos e 16 segundos. A vitória surpreendeu muitos, não apenas porque ele era desconhecido, mas também porque correu a maratona descalço.
Os homens de sucesso conhecem a tragédia
Mais de 500 mil pessoas o receberam em uma caravana que aconteceu desde o aeroporto até o palácio imperial de Adis Abeba.
Bikila voltou para a Etiópia como um verdadeiro herói nacional. Na época, dizia-se que “um milhão de soldados italianos foram necessários para invadir a Etiópia, mas apenas um soldado etíope foi suficiente para conquistar Roma”. Ele foi promovido a cabo e recebeu uma honraria do imperador Haile Selassie.
Pouco depois dos Jogos Olímpicos, ocorreu uma tentativa de golpe militar no país. Ele, que não tinha conhecimento de política, foi forçado a participar, mas se negou a matar autoridades. Quando o golpe foi frustrado, os principais conspiradores foram condenados à morte por enforcamento. No entanto, Bikila foi perdoado pelo imperador após várias pessoas intercederem a seu favor, afirmando que ele não participou dos assassinatos. A mídia local afirmou que ele “deve sua vida à medalha de ouro”.
Em 1961, Bikila competiu em maratonas na Grécia, no Japão e em Kosice, na Tchecoslováquia, conquistando a vitória em todas elas. Após um intervalo de mais de um ano e meio sem competições, ele participou da Maratona de Boston em abril de 1963, terminando em quinto lugar — a única corrida que não venceu em sua carreira. Depois disso, retornou para casa e só voltou a competir em 1964, vencendo uma maratona em Adis Abeba.
Quarenta dias antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio, durante um treino nas proximidades da capital, Bikila começou a sentir intensas dores e desmaiou ao tentar continuar correndo. Diagnosticado com apendicite aguda e submetido a uma cirurgia, ele, mesmo em período de recuperação, fazia pequenas corridas noturnas nos jardins do hospital onde estava internado.
Já em Tóquio, dias antes da competição, ele optou por participar e, desta vez, usou tênis, como solicitado pelos organizadores. Adotando a mesma estratégia de 1960, ele se manteve no grupo principal até a metade da corrida, quando intensificou o ritmo. Alguns quilômetros depois, restavam apenas dois corredores com ele, incluindo o australiano Ron Clarke, recordista mundial dos 10.000 metros e medalhista de bronze nesta prova dias antes.
Bikila cruzou a linha de chegada no estádio olímpico com uma vantagem de quatro minutos sobre o segundo colocado, Basil Heatley, da Grã-Bretanha, estabelecendo um novo recorde mundial de maratona com o tempo de 2:12.12. Assim, ele se tornou o primeiro atleta a conquistar a vitória na maratona olímpica por duas vezes.
Mas, 5 anos depois, para espanto de todos, durante manifestações civis na capital, um grave acidente ocorreu. Bikila perdeu o controle de seu Fusca e capotou em um barranco, ficou paralisado inicialmente, mas recuperou a mobilidade da parte superior do corpo, ficando paraplegico.
Sua alma competidora não deixou que tal problema o afastasse das competições. Enquanto ele estava recebendo tratamento médico na Inglaterra, competiu em tiro com arco e tênis de mesa nos Jogos Stoke Mandeville de 1970, em Londres. Esses jogos foram um dos primeiros antecessores dos Jogos Paralímpicos. também participou em ambos os esportes em uma competição de 1971 para deficientes na Noruega e, convidado ano depois pelo COI, assistiu aos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, vendo fracassar a tentativa de Mamo Wolde, também Etíope, de se igualar a ele com uma segunda medalha de ouro.
Abebe Bikila faleceu aos 41 anos, em 25 de outubro de 1973, devido a uma hemorragia cerebral, uma complicação neurológica resultante de seu acidente quatro anos antes. Ele recebeu um funeral de estado acompanhado por uma multidão de 75 mil pessoas, todas se reuniram para prestar homenagem ao herói nacional.
O Imperador Haile Selassie declarou um dia nacional de luto.
Embora Bikila tenha falecido jovem, sua influência persiste de maneira impressionante. Em Adis Abeba, o estádio Abebe Bikila e diversas instituições educacionais e premiações prestam homenagem ao seu nome. Seu impacto mais significativo foi acender a chama de uma nova geração de corredores de longa distância na África Oriental. Atletas renomados como Haile Gebrselassie e Eliud Kipchoge, oriundos da Etiópia e do Quênia, têm deixado sua marca no esporte globalmente.
Haile Gebrselassie atribui sua ascensão ao sucesso de Bikila: “Nós, corredores africanos, somos frutos do trabalho dele. Sua trajetória fez com que eu alcançasse um nível mundial.”
Getnet Wale, que competirá na prova de 3.000m com obstáculos nas Olimpíadas de Paris, refere-se a Bikila como um “desbravador”. “Ele foi o pioneiro. Seu legado permanece vivo até hoje.”