‘Terror Mandelão’: Como é feito o funk retratado no documentário de Felipe Larozza e GG Albuquerque?
Documentário debatido na SEDA com o diretor Felipe Larozza, e mediação de Lili Bernartt, conta como é o fazer de uma cultura musical como o funk e a ascensão de DJ K, o Bruxo
Por João Vitor Reis
A noite de segunda-feira do cinema da Nave Coletiva teve as exibições do curta ‘Desamarras’ na mostra SEDA Play, e na sequência, o documentário ‘Terror Mandelão’, dirigido por Felipe Larozza e GG Albuquerque, da Produtora Pó de Vidro. Após a sessão, Felipe participou de um debate com o público espectador, transmitido nas redes sociais.
A exibição da ascensão de DJ K, o Bruxo; MJ e o beat freestyle; Mc Zero K, vindo do break; Bruninho JS; Léo da VH 13; Michel o Puro, no passinho do romano, de camiseta do Risca Faca; e Matheus (Theus), dançando o magrão. Palhaços, bailes, o balanço da umbrella, chacoalhando em sincronia com o tempo – acrescido de cores, luzes, caldeirão cultural, densidade de ideias que se permitem em um universo criativo. Pontinho, assovio, zunidos e teses, enquadrados quase que em um universo estritamente masculino e de negritudes. Tudo isso precedeu um debate essencialmente muito bem acolhido.
O Documentário e a Cena
O projeto teve como ponto de partida uma abordagem sobre o bregafunk, ritmo popular em Recife, e uma parceria já de longa data com o GG Albuquerque codiretor do documentário. GG é jornalista do blog Volume Morto, focado em experiências musicais, e pesquisador doutorando em Estéticas e Culturas da Imagem e do Som na UFPE. “A presença dele aqui em São Paulo era muito importante. Ele estava fazendo uma pesquisa para a UFPE. Ofereci minha casa e falei pra ele que o acompanharia nas entrevistas. E, na primeira entrevista, foi o DJ K”, contou Felipe.
“A gente tava pensando em fazer um curta, nunca fizemos filmes para um circuito de cinema. Já fizemos vários filmes, temos muita experiência com documentário, mas para internet, para YouTube, de graça”, acrescentou.
Os personagens retratados no documentário fariam sua presença hoje, mas não foi o que ocorreu. “São Bernardo, São Paulo, horários, trânsito, transporte público, outros trampos, único dia de folga, maior frio!”, detalhou o diretor. GG, que já escreveu para portais como Kondzilla e Vice Brasil, também teve que se ausentar.
“A sensação de um baile pra quem nunca esteve!”
Foi colocada na estética, nas músicas na montagem do som, um empenho bastante original, ao menos no que se refere ao ritmo musical do funk. O enfoque no DJ K colocou-o diante do software de edição, realizando ousadia roteirizada que faz resgatar documentários musicais já históricos dos tempos de contracultura como Sympathy for the Devil, de Godard. “É a participação dele com as trilhas. Ele deu umas ideias, Tudo tem uma base de documentação jornalística, por mais maluco que seja. Queríamos que as trilhas fossem como elas são, com tudo do jeito que é, as caixas de som parecendo que vão explodir. A gente tentou manter a sensação de um baile pra quem nunca esteve”, explicou Felipe.
A partir das perguntas da audiência houve a oportunidade de se discutir o aspecto da letra no funk, presente e problematizado especialmente nos enfoques do Mc Zero K. “Ele explica do jeito dele o que ele chama de eu lírico. Ele fala ‘eu não estou praticando as coisas que minhas letras falam, eu escrevo sobre essas coisas como artista mas eu não estou praticando isso com uma mulher’. Ele é um cara super família”, explica. “Assim como já tentaram criminalizar o Rap, então você faz o que está fazendo com a sua letra”.
Outra pergunta mirou a estética visual, que foge de um padrão de drama e invoca cores frequentemente, tal como é um baile e um paredão. “Nosso principal pensamento era se inspirar no que a gente estava vendo. Sabe aquela brincadeira que a gente faz sobre (a paleta de cores) em filmes no México? Aquele filtro amarelo… Nossa parada é assim, o bagulho é colorido, tem laser, tem cores, roupas, tem o movimento da escolha da calça específica praquele passo de dança. Enfim, infinitas camadas”.
Para o diretor e também fotógrafo uma técnica que também ficou como marca estética são os glitches – técnica que consiste em converter uma imagem digital em analógica, ‘destruindo’ ela com efeitos, e retornando ao digital -, de responsabilidade do artista Vini. “Nós queríamos explicar em imagem o que o DJ K fala da música estourada, que não está estourada. O DJ K escolhe a estética da música estourada, não é uma coisa que acontece porque ele não sabe mixar som. O moleque é monstro, é nerdíssimo É um filme de música eletrônica experimental, que dialogasse com essa música, com essa visão futurista da periferia”.
Bailes e produções
Felipe, como sócio-fundador da Pó de Vidro também já dirigiu peças publicitárias e produziram o clipe ‘Tudo é pra Sempre Agora’ (2023), de Don L com participação de Luzia de Alexandre, além do documentário ‘Mil Faces de um Homem Leal’ (2022), retratando o movimento dos entregadores de aplicativo e a potência de Paulo Galo.
Vindo de Peruíbe, Região Metropolitana da Baixada Santista, “Tenho um contato com o funk há muito tempo, na Baixada, fui reforçando minha consciência. Fiz outros documentários, sobre o bregafunk, um doc no RJ sobre funk 150 (bpm) no comecinho, fiz um doc sobre o trap. Gosto de artistas em começo de carreira, um talento monstro, chegando, aquela vontade de vencer, fazer uma coisa diferente”, conta.
Apegado às questões estéticas, Felipe conta um pouco sobre o outro lado, que foi o de abordar os bailes e suas dificuldades. Com poucas experiências em São Paulo, até há pouco tempo não os frequentava. “Nunca havia ido ao Helipa (conhecido como o primeiro fluxo de São Paulo, em Heliópolis) até o K me levar. Eu queria muito que o Helipa fosse o terceiro personagem (junto ao DJ K e ao Zero K).”, dizia sobre os problemas e dificuldades de gravar neste baile, relacionados aos riscos e estigmas que a realidade impõe. Felipe encontrou mais oportunidade no baile do bregafunk, em Paraisópolis, “muito mais suave de gravar, com os contatos mais de boa, pra passar a madrugada inteira gravando”.
Perguntado sobre esses estigmas – desde a precificação de um evento cultural até os policialescos, midiáticos – sobre o Felipe detalhou a dimensão, como documentarista, desta abordagem: “Essa foi a nossa barreira para que o Helipa não ser o personagem que a gente gostaria que fosse. O Baile do Helipa é um festival de música eletrônica do tamanho de um Lollapalooza, todo final de semana com uma estrutura monstra, som bom, bebida boa, gente bonita, bem vestida, um negócio mágico”, elucidou, com a expectativa frustrada de ter o registro documental dificultado. “Obviamente essas questões, de segurança pública, questões infinitas envolvendo esse lugar, são um grande entrave pro funk. Uma parada que dificulta ainda mais que pessoas como o K e o Zero K, e esses meninos consigam permanecer na carreira de artista que eles escolheram.
“Quase uma fonte primária de pesquisa.”
Outro espectador chamou atenção pelo fato de que o documentário se pronuncia pela vivência, não somente para falar do DJ K, mas de diversos artistas que vão entrando no movimento do funk e suas experiências e a expansão de suas dimensões para o exterior. “Mesmo o funk sendo estourado, quando tocado na raíz, no baile, Paraisópolis, Heliópolis, na Marconi, DZ7, tem muita repressão, é marginalizado”, disse em contraponto.
“A gente tenta trazer o cenário do dia a dia de um jovem que está tentando viver de música”, confirmou Felipe. “A escolha do K é um filme sobre um personagem: esse moleque é da hora demais, a história dele é boa o suficiente pra gente ficar mais de uma hora ouvindo ele falar na tela”.
A representação, não somente de um artista de funk, mas uma veia desse movimento. “Um moleque que está produzindo um beat de Rap num quartinho, ou produzindo um reggaeton na Colômbia, um maluco no Rio de Janeiro produzindo um funk 150, alguém em Recife fazendo um bregafunk”. Meninas e moleques, fazendo seu som dar certo, com uma caixinha qualquer da escola, sem fones, pouca coisa de qualidade, improvisos com um computador emprestado, cenas da música brasileira, na raíz. “Quem vem de fora e fala que é fácil fazer, comece a competir com milhares, comendo com farinha um beat, um sample”.
Fato é que o filme mergulha em um universo cultural, e além de tudo, de música. “Ouvi de outras pessoas que o filme é quase uma fonte primária de pesquisa. A gente tenta não botar filtros. Temos que realçar algumas coisas que acho interessante, sempre dialogando com o que as pessoas acham interessante.
O documentário é de uma liberdade criativa imensa: se uma hora é a vida pessoal, as referências brotando na cabeça de cada pessoa, as imagens da construção de uma melodia no aplicativo de edição musical, o desafio de produzir tudo com pouco ou nenhum recurso, noutra é o sucesso, a o efeito visual, talvez o vislumbre. Perguntado sobre qual a síntese deste fenômeno (afinal não só musical, como de ideias, de política, de impacto aos olhos da sociedade) que é o funk daqui pra frente, ou mesmo através dos tempos, Felipe respondeu reforçando as falas dos personagens do documentário. “(Os funkeiros) tem uma visão global do que eles representam para uma cena maior do que eles. O próprio Zero K fala, em um momento do filme: ‘hoje posso não ter estourado nenhuma música mas me sinto parte de algo muito maior do que eu, e por fazer parte talvez já fui escada para outras pessoas subirem e alcançarem seus sonhos’”.
Felipe continuou, chamando atenção tanto aos que chegam, como aos que já influenciam o mundo através do funk. “Acho que esses debates políticos que estão nas entrelinhas são muito importantes, e quando eles são amplificados, melhor ainda. O K, no começo, quando ele fala que estourou uma bolha, é quando ele começou a tocar em festas LGBT de São Paulo”.
“Foi tocar na Mamba Negra, em lugares que ele nunca tinha tocado. Ver os outros DJ ‘s tocando outros estilos de música eletrônica, o diálogo sonoro, de corpos completamente diferentes do que ele está acostumado a ver em outros bailes”.
Ao fim, Lili Bernartt, a mediadora, resgatou o debate que houve na segunda à tarde sobre a regulamentação dos streamings no Brasil, vivendo um cinema “ainda muito colonizado”, perguntando sobre como nossos problemas internos podem chamar atenção. Como “sair do quartinho e ir parar onde quer que seja”. É um debate sensível, já que o perfil crítico do filme é proeminente.
O documentário é distribuído pela Descoloniza Filmes, sediada na Rua 24 de março, no centro de São Paulo.
“A gente ainda está tendo os primeiros contatos com streamings, mas não fizemos um filme pensando neles, então talvez nossa chance de entrar talvez seja muito pequena. Já tentamos alguns grandes, porque, né, a gente precisa trabalhar… pagamos as contas com isso”.
Como muitos atores do audiovisual, o projeto busca as redes abertas, mas com os festivais de cinema o circuito nos telões é a prioridade. “Surgiu a ideia dos festivais de cinema, ver o que acontece, ver a recepção que a gente tem, e aí a gente vê o que faz”.
O filme foi exibido pela primeira vez na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes-MG, realizada em Janeiro, e posteriormente no Festifal In-edit Brasil, realizado em São Paulo-SP, para ter sua exibição na SEDA, e deve ser exibido na ocupação onde foi realizado o próprio documentário, em São Bernardo, além do campus da Eflch/Unifesp Guarulhos (ambos ainda sem data).
Assista ao debate na íntegra: