O resultado do julgamento do recurso extraordinário que alterou a forma de lidar com o usuário de maconha no Brasil — quiçá de outras drogas — está movendo os debates nos últimos dias.

Recheado de preconceitos e conceitos proibicionistas, a Corte Suprema fixou o tema 506 que irá balizar as ações dos agentes de segurança e os ritos processuais para os indivíduos que forem flagrados portando ou fazendo uso de maconha. A fixação de uma tese significa que o Supremo redige um texto que define qual a nova maneira de se interpretar o artigo impugnado, no caso, o artigo 28 da lei 11.343/06 que é a Lei de Drogas.

É possível ter alguma ideia de como se darão os próximos passos dessa “guerra que é contra pessoas, pois, não existem guerras contra coisas”, como diz Michael Dantas, jurista especialista na lei de drogas e Diretor executivo da REDE REFORMA.

Com o reconhecimento da conduta como ilícita, ainda que não de natureza penal, somado a legitimação dos agentes policiais para que levem à força os averiguados para a delegacia de polícia, a fim de que nesta unidade o delegado faça a pesagem e ato contínuo avalie e delibere se trata-se de usuário ou traficante, infelizmente, será mantido na mão dos policiais militares em especial, o poder de controle sobre os corpos alvos. Afinal, a Lei de Drogas é o instrumento mais eficaz para que o braço armado do Estado consiga desenvolver este papel.

Durante o julgamento, houve uma tentativa do ministro Luís Roberto Barroso de relembrar que parte do teor deste pleito era justamente impedir que o usuário seguisse sendo levado à delegacia, todavia, não existe outra forma de se fazer o procedimento enquanto a sociedade seguir entendendo como substância ilícita. Essa medida inclusive segue violando claramente os direitos à intimidade, à liberdade e à vida privada que estão consubstanciados no artigo 5º e que fundamentaram a tese de defesa e a própria decisão.

Existe, no tema 506, uma diretriz para que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fixe um novo rito processual no intuito que não seja o usuário submetido aos Juizados Especiais Criminais. Contudo, em teoria, não pode o CNJ realizar tal mudança pois os ritos processuais são definidos em lei como consignou o ministro Luiz Fux quando votou a tese.

Um outro ponto importante, seriam as especificações de alguns argumentos que não poderiam ser usados pela autoridade policial, como por exemplo, fundamentar que entendeu como tráfico pelo “tirocínio” (característico da função policial) ou pela experiência do agente, entre outros. Entretanto, após manifestação do ministro Alexandre de Moraes, todas as circunstâncias foram suprimidas pelo texto: “sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários”. Na prática, essa supressão, que claramente foi gerada por conta do ministro Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes estarem cansados — vide julgamento —, vai gerar diversos entendimentos, que a justiça criminal tende a interpretações que facilitem a punição dos indesejáveis da vez.

Se por um lado o usuário possivelmente continuará sendo ameaçado e torturado nas periferias por uma polícia que seguirá tendo poder sobre ele pois pode tanto apreender sua substância, quanto levá-lo para a delegacia e submetê-lo a processo ainda que não criminal, por outro lado, existem alguns fatores a serem comemorados sim.

Já em solo policial, caso esteja portando menos de 40g e o delegado queira enquadrá-lo como traficante, este terá de fundamentar sua decisão arguindo outras circunstâncias que demonstrem ou indiquem “intuito de mercancia”. Este ponto é extremamente relevante pois haverá de se evidenciar que o portador da substância atuava comercializando-a.

Logo, a princípio, nos usos compartilhados e até mesmo dar uma pequena quantidade para o amigo (o “salve”), não poderão, em face deste texto, estes indivíduos serem compreendidos como traficantes. Caso o delegado realize a prisão de alguém com menos de 40g de maconha, fica estabelecido que já na audiência de custódia, o Juiz deve analisar se a referida prisão segue os parâmetros definidos pelo Supremo Tribunal Federal neste julgamento.

Ainda, o CNJ em conjunto com os poderes legislativo e judiciário, deverão promover mutirões para libertar do cárcere aqueles que hoje estejam detidos nessas condições que a decisão do STF visa reformar. Apesar de não serem todos os injustiçados pela Lei de Drogas, já se fala em milhares de pessoas nos primeiros mutirões.

Juridicamente, muitos caminhos se abrirão para questionamentos em relação a outras substâncias. O que acontece, é que a lei de drogas é o que se chama no Direito Penal de “norma penal em branco” já que ela não define quais serão as drogas proibidas. Esta lista é elaborada pelo poder executivo através da portaria 344/98 da Anvisa. Se o artigo 28 fala sobre drogas no sentido amplo e este foi considerado inconstitucional pelo texto da tese, é possível questionar que não deva ser aplicado somente à maconha. Até porque, se foram reconhecidos os direitos à intimidade, à liberdade e à vida privada, não aplicar implicará em aberração jurídica e tratamento desigual.

A tese da Suprema Corte diz que essa quantidade de 40g será mantida até que o Congresso Nacional venha legislar a respeito. Não fica evidenciado na tese, mas sim no sentido do julgamento, que não poderá o congresso legislar para voltar a criminalizar, no entanto, poderá adaptar essa quantidade da presunção relativa.

Enquanto isso, no Congresso, tramita a PEC 45. A resposta da Câmara dos Deputados ao final do julgamento do Recurso Extraordinário foi a criação de grupo especial de trabalho, no dia 25/06, que após 40 sessões irá deliberar sobre o tema e colocar em votação na plenária da Câmara. Essa proposta de emenda à constituição visa incluir no artigo 5° a previsão de que a lei deva considerar o usuário como criminoso. Vejam, o artigo 5º é um dos que se chama no Direito de “cláusula pétrea”, o que significa que não pode ser alterada por emenda constitucional, apenas uma nova constituinte poderia fazê-lo. Então, além do Congresso Nacional propor o disparate de incluir justamente no artigo que traz os direitos individuais e coletivos esse mandamento descabido, para que a lei trate como criminoso quem utiliza substância sem fazer nenhuma vítima, ainda por cima está fazendo pela forma jurídica errada.

Não sabemos ainda qual será o resultado dessa queda de braço entre os dois poderes, mas fato é, que ainda que essa PEC passe, teriam de passar no Congresso uma nova lei para criminalizar o usuário de maconha, pois, o dispositivo que estava vigente agora foi considerado inconstitucional.

Um dos pontos mais relevantes foi a descriminalização expressa de até 6 pés de Cannabis Sativa fêmea, que é a que produz a flor onde estão os princípios ativos, ou seja, os canabinoides da planta. Esta medida é importantíssima principalmente para os pacientes do uso medicinal e terapêutico da substância, que já podiam requerer um Habeas Corpus para cultivo, porém tinham muito receio de iniciar o plantio antes da decisão judicial. Para se impetrar um HC é necessário já estar plantando, pois não há como requerer o salvo conduto, sem que esteja o agente infringindo a legislação, de modo a estar em risco sua liberdade e tratamento. Na realidade, um paciente sequer poderia ser lido nem como usuário nem como traficante, pois sua conduta estaria prevista no parágrafo único do artigo 2º da lei 11.343/06 que diz: “Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.“. Apesar disso, como o poder público não concede tais autorizações e, na prática, pacientes são lidos como traficantes ou usuários, agora que as consequências mais mais gravosas como prisão e processo criminal poderão não ocorrer para quem tiver até 6 plantas fêmeas, fica mais seguro para o paciente iniciar seu plantio e dar início ao processo para obtenção de um Habeas Corpus preventivo para cultivo.

Este instrumento sim, de fato, libera o plantio e o uso e evita a ação policial de qualquer natureza.

Muitos questionamentos serão respondidos conforme as ações policiais forem acontecendo, uma vez que diversos pontos são controversos.

Por exemplo, o policial militar somente pode entrar em uma residência para prestar socorro; por decisão judicial durante o dia; ou para efetuar prisão em flagrante. Ora, se ter em domicílio até seis plantas não configura mais crime, logo, não há que se falar em flagrante delito, por consequência, não poderá o policial entrar sob o argumento que existe um flagrante de crime em andamento pela mera existência de até seis pés de Cannabis Sativa.

Outro fator determinante para as abordagens policiais é que elas devem ser precedidas de fundada suspeita do agente. Esse elemento consta no artigo 244 do Código de Processo Penal e constitui dever do policial sob pena de nulidade da prisão. Então, ainda que o cidadão esteja portando certa quantidade de substâncias ilícitas, não pode ser alvo de busca pessoal infundada.

Um fato curioso é que se uma pessoa pode ter seis plantas, arrancar uma para fazer a secagem, e nesta tiver quantidade maior que 40g — o que é fácil —, ela pode ser indiciada como traficante ao retirar a planta do solo ou as flores da planta (pois são seis plantas fêmeas ou 40g) porque, apesar de a polícia ter que provar que o indivíduo está atuando no comércio, na prática, o sistema repressivo atua com base primariamente na quantidade.

Maconheiro, em caso de enquadro, não discuta com o PM, mas frise sempre que se trata de uso pessoal. Se for agredido ou torturado, sendo forçado a comer para eles não “perderem tempo” na delegacia, procure ajuda na Defensoria Pública ou mesmo com um advogado do meio de luta. Também, como consta na tese que a autoridade policial e seus agentes podem considerar a existência de contatos de usuários e/ ou traficantes no celular para realizarem a diferenciação entre usuário e traficante, há de se considerar que o texto constitucional protege o cidadão contra uma devassa no seu aparelho celular sem sua autorização ou sem uma decisão judicial. Então, tente não fornecer a senha de acesso ao policial militar e, na delegacia de polícia, procure assistência de um advogado para que este possa conter o delegado neste intento. Dizem que a maconha é a porta de entrada para outras drogas. Sabemos que essa afirmativa não faz sentido. Agora, a maconha pode ser a porta de entrada para a legalização desta e de todas as drogas a fim de libertar os corpos, sobretudo os corpos negros e periféricos, do controle, da opressão e das violências.