CineOP 2024: Diálogos entre a preservação e a animação brasileira
O cinema nacional resiste, mas precisamos priorizar sua manutenção e consequentemente sua preservação para que não percamos o nosso patrimônio que é mais sagrado que é nossa cultura
Por Ben Hur Nogueira
“Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair” – “Saudade dos aviões da Panair”, Milton Nascimento.
Minha primeira experiência com a memória cinematográfica ocorreu quando assisti “Alma corsária”, do gênio Reichenbach, onde em um curto espaço de tempo, ele brevemente dirige uma cena onde toca “Clair de lune” e vemos memórias de seu passado, sobretudo de viagens familiares e sua experiência com seu pai. Durante as primeiras sessões de debates na CineOP 2024, Mostra de Cinema de Ouro Preto, me surpreendi com a miríade de profissionais que advogavam pela permanência da memória, seja no cinema brasileiro ou no audiovisual como um todo.
Falar de cinema é sobretudo falar de memórias que devem ser mantidas e preservadas para gerações futuras, e esse foi meu maior ensinamento da CineOP como um todo, onde notei que porventura, a preservação, seja no tocante cinematográfico, seja na cultura, seja nas periferias brasileiras, deve ser discutida e reafirmada já que não basta aprender história. Devemos também não negá-la, e o melhor exemplo disso foi o incêndio criminoso que ocorreu na Cinemateca Brasileira no desgoverno passado, onde memórias nossas foram apagadas e houve uma mobilização estatal para priorizar aquele sentimento de perda onde desde arquivos a filmagens familiares que foram preservadas durante anos eram expurgadas de seu estado puro.
Uma das maiores mobilizações da CineOP 2024 foi democratizar a preservação do cinema brasileiro para gerações futuras, seja academicamente, no cenário midiático e em um âmbito social.
Falar de cinema é falar de memórias que devem ser mantidas, e quando notamos a priorização do cinema de animação brasileiro como o ponto-chave da mostra, passamos a entender a necessidade de olhar pra tudo aquilo que já foi produzido e perceber que mesmo com tanta sapiência, tanto conhecimento, às vezes o nosso ego precisa ser machucado, e devemos aprender a valorizar aquilo que existiu, existe e só existirá dependendo de nossas forças, mesmo o mais dos inteligentes deve estar disposto a aprender mais, e parafraseando uma professora minha do ensino médio: “O professor é um eterno aluno”, e nesta mostra pude perceber a força de uma comunidade técnica e a resiliência de uma comunidade acadêmica de manter o cinema brasileiro vivo para as gerações futuras e isso é decerto inigualável.
Uma das animações que abriram a mostra foi a animação “A saga da asa branca”, lançada originalmente em 1979, que lida em um modelo figurativo-comparativo, como a diáspora local se comportava durante o êxodo rural nordestino nos anos 1970, e temos a comparação da Asa branca (referente a canção do Luiz Gonzaga) e de um imigrante que busca a vida na cidade. Algo que me chocou muito neste molde de animação foi a mescla documental e realista que vemos os realizadores propondo o tempo durante a animação.
Outra animação que foi destaque na mostra foi “Piconzé”, lançado em 1974, narrando a andança do personagem-título que vivencia a magia do folclore nacional através de uma peregrinação que ele dá procurando sua amada no nordeste brasileiro. É neste cenário que notamos a vivência do agreste brasileiro feito da maneira mais fantasiosa possível, onde vemos a priorização da cultura brasileira em um espaço que é pouco descrito de maneira que não seja estereotipada.
A animação “Perlimps”, do cineasta Alê Abreu, um dos homenageados da mostra, foi exibido durante o festival, a animação narra através de uma linguagem figurativa, os males da industrialização no tocante a natureza através de um modelo de animação único que traz o ambientalismo de uma maneira singela e faz com nos conscientizamos a priori sobre a importância da preservação ambiental.
Dois curtas-metragens animados presentes na mesma sessão me chamaram atenção por seu modelo de linguagem sendo eles: “Dilúvio”, da Magda Rezende, e “Carne”, da Camila Kater. “Dilúvio” narra um período chuvoso em Belo Horizonte onde tanto a ficção mescla com a realidade, já “Carne”, é um curta que traz de maneira documental e figurativa a maneira como a sociedade lida com a mulher através de múltiplas formas de animação e através de relatos obtidos por cinco mulheres diferentes.
Uma das maiores articulações da mostra como um todo foi um projeto que mobilizaria a entrada do cinema brasileiro nas escolas por todo país e ver todos aqueles profissionais trabalhando um com o outro, ministrando o desejo de democratizar a arte foi decerto um triunfo muito satisfatório tanto como cineasta quanto um crítico de cinema oriundo da terceira maior favela de BH, onde falo pulsantemente da maneira mais direta possível que o cinema brasileiro salvou minha vida e saber que temos projetos que visam a manutenção mais abrupta possível do cinema nas escolas, cria em mim um âmago triunfante que outros meninos como eu possam ter a mesma benção de assistir filmes brasileiros que tragam em sua mensagem tanto de maneira direta quanto de maneira indireta, projetos para um país melhor.
Saber que Alê Abreu foi um dos homenageados da mostra me fez abruptamente buscar uma foto minha que parecia estar perdida a priori, mas quando percebi que ainda tinha ela, resolvi levá-la pra Ouro Preto na esperança de mostrar ela para Alê. É uma foto simples, eu do lado de um projetor na minha rua em 2015 assistindo o filme dele, “O menino e o mundo”. Foi uma mobilização regional que adequava a projeção de alguns cinemas em favelas da capital mineira e a minha tinha sido escolhida graças a uma mobilização de ativistas locais, e ao assistir sua película, ver aquele menino em busca de uma pátria, me conectava com ele relacionalmente, como se aquele menino representasse cada menino no Brasil, seja nos becos nas vielas ou em qualquer outra favela por aqui.
Durante a leitura da carta do projeto que visa a introdução do cinema brasileiro nas escolas, me lembrei abruptamente daquele eu de treze anos quando a foto foi tirada, onde meu único sonho era virar cineasta, ou então trabalhar com cinema do Brasil, e saber que meninos como aquele poderão ter esse privilégio não me deixa dúvidas senão saber decerto que o cinema brasileiro existe e continuará existindo enquanto meninos como aquele “eu”, assistirem o cinema brasileiro, seja em um cinema comunitário, seja em um projetor emprestado que vai projetar películas simples de uma hora e meia, ou seja em grandes festivais.
Enquanto houver filmes brasileiros nas salas de aula, o cinema brasileiro vai existir e resistir simultaneamente.
Uma das minhas maiores alegrias durante a CineOP, foi saber que uma de suas articulações era trazer escolas da região para sessões de cinema em espaços que serão ocupados por elas. O cinema local existe, resiste e é ocupado por crianças que serão os próximos cineastas, críticos e defensores desse patrimônio cinematográfico e audiovisual nosso.
Outrossim, saber que a manutenção do cinema brasileiro é um debate que devemos ter incansavelmente seja em sua exibição, seja ora em sua democratização e seja ora em sua preservação, posso dizer apropriadamente que o maior ensinamento que esta CineOP me deu foi que ainda que o cinema brasileiro seja preservado por grandes profissionais brasileiros, temos de lutar sempre por sua preservação, seja na inteligência artificial, seja na preservação local para que gerações futuras possam desfrutar de tudo aquilo que eu outrora desfrutei naquele beco úmido de minha periferia sonhando em trabalhar com o cinema nacional.
O cinema nacional resiste, mas precisamos priorizar sua manutenção e consequentemente sua preservação para que não percamos o nosso patrimônio que é mais sagrado que é nossa cultura.