João Gilberto: a revolução definitiva da técnica musical
O artista transformou mundialmente a lógica musical, influenciando toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores.
Por Lucas Souza
Natural de Juazeiro, sertão da Bahia, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira é considerado um dos artistas mais geniais da história da música por musicólogos e jornalistas especializados. O músico começou uma revolução na lógica mundial de combinação dialética entre voz e instrumento, influenciando assim toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores. Na história da música é difícil encontrar um movimento inovador atribuído a um único nome, como se pode evidenciar analisando a origem bossa nova. O cantor, violonista e compositor alterou de forma irreversível o DNA da música popular brasileira e atravessou de forma definitiva a vida e a carreira de qualquer músico brasileiro pós 1958, além de motivar a reinvenção da técnica de diversos artistas a ele contemporâneos.
João Gilberto participou da banda escolar em todas as oportunidades ao longo de sua infância e aos sete anos percebeu um erro na execução da organista da igreja em meio às dezenas de vozes do coro, mostrando uma apurada habilidade de escuta e percepção. O cronista musical e amigo pessoal de João, Zuza Homem de Mello, descreve o artista como um Dom Quixote “lutando para afinar um universo inevitavelmente desafinado” e demonstrando um desejo pela perfeição além de qualquer limite. Esse rigor técnico tornou difícil determinar em que ponto o excesso de preciosismo denotou um sintoma do que futuramente seria diagnosticado como um transtorno obsessivo compulsivo.
Severamente criticado pela imprensa por não se adequar aos padrões de canto da época, marcados pela predominância da potência vocal dos cantores de rádio, João Gilberto assume a missão de reinventar a técnica do canto, adotando um estilo que permite explorar vários timbres. João percebeu que cantando mais baixo e sem vibrato poderia adiantar ou atrasar o canto em relação ao ritmo, desde que a batida fosse constante, criando assim seu próprio tempo. A voz mais baixa é também motivada pela necessidade de igualá-la ao nível pouco potente do violão, que passa a não ser mais apenas acompanhante, fundindo-se com o canto em uma relação de complementaridade e interdependência.
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A aparentemente simples transformação no procedimento se tornou uma referência mundial na técnica de combinação dialética entre voz e instrumento, constituindo um tipo de manifesto anti excesso. A particularidade de cada movimento realizado no violão reflete uma característica instrumental diferente. Enquanto a batida de mão direita sintetiza a batucada do samba e o ritmo do dedão realiza a função do surdo, os dedos indicador, médio e anelar efetuam um ritmo irregular semelhante ao do tamborim, o que gera um contraste entre regularidade e irregularidade, resultando em um rico efeito de polirritmia. A mão esquerda, por sua vez, adianta e atrasa a entrada de acordes dissonantes, o que produz uma descontinuidade acentuada por uma sucessão de deslocamentos no ritmo da voz.
Em 1959, o compacto contendo as faixas “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, considerado o principal marco na fundação da bossa nova e o início de uma revolução na música em nível global, conquista a cena do Rio de Janeiro e atrai a atenção dos EUA, abrindo portas no cenário internacional. Apesar de duras críticas das imprensas nacional e estadunidense à performance dos artistas brasileiros que apresentaram o novo estilo para o público norte-americano, muitos persistiram atuando no exterior, como João e Astrud Gilberto, com quem João estava casado na época. Gravado em 1963, o disco “Getz/Gilberto” atinge um grau de sofisticação capaz de abalar as estruturas de um mercado dominado pela beatlemania. Com mais de 2 milhões de cópias vendidas apenas em 1964, a obra ganha 4 prêmios Grammy em 1965, incluindo os dois principais (gravação do ano e álbum do ano), superando os Beatles no momento de auge da banda. O álbum foi o primeiro da história do jazz a ganhar o prêmio principal, o que só viria acontecer novamente em 2008.
O lendário álbum, reconhecido como um dos mais influentes da música brasileira, lança a faixa “Garota de Ipanema”, com a voz de Astrud Gilberto, que se tornaria o ícone global da bossa nova e uma das principais responsáveis por propagar o estilo mundialmente através de seus 19 álbuns em vários idiomas e de uma série de turnês internacionais. A música se tornaria um sucesso mundial, atingindo mais de 5 milhões de cópias vendidas e tornando-se a segunda música mais reproduzida da história.
O coautor do disco, João Gilberto, que futuramente seria reconhecido como um dos artistas mais importantes do jazz americano do século XX, recebeu 23 mil dólares pelo trabalho realizado, enquanto o saxofonista estadunidense Stan Getz adquiriu sua fortuna através dos resultados dessa gravação, tendo faturado quase 1 milhão de dólares. Astrud, por sua vez, responsável pelo vocal, não só foi cortada dos royalties como teve seu nome excluído dos créditos, recebendo apenas o valor mínimo de 120 dólares determinado pelo sindicato de músicos da época. Stan Getz, que nesse momento havia acabado de superar seu vício em drogas, apesar de odiar, não só João Gilberto, como a bossa nova como um todo, se tornou o músico de jazz mais bem pago de sua época graças ao álbum, o que não o impediu de fazer de tudo pra apagar seu histórico de envolvimento com o gênero brasileiro.
O rigor técnico e a ambição pela primazia musical demonstrados por João originaram técnicas transformadoras do cenário cultural mundial, de modo a elevar o reconhecimento internacional pela primazia técnica da musicalidade brasileira e o tornando o segundo maior artista da história da música nacional, ficando atrás somente de Tom Jobim, segundo a revista Rolling Stone Brasil. Essa primazia técnica, no entanto, também motivou um nível de exigência e insatisfação com os sistemas de amplificação e acústica das salas de concerto onde se apresentava que provocaram eventuais cancelamentos de seus shows, um abalo no prestígio profissional e um progressivo abandono por parte dos mais importantes agentes internacionais. As diversas batalhas que João Gilberto travou contra poderosas instituições da indústria musical pelos direitos de sua obra, algumas durando mais de 20 anos, não foram capazes de impedir que o artista tivesse seu patrimônio musical manipulado por companhias discográficas de todo o mundo em reedições pouco escrupulosas.
A história de João Gilberto é representativa não só da situação de diversos artistas originalmente geniais que acabam por precisar enfrentar significativas barreiras impostas frente à condição de neurodiversidade, como também, de diversos artistas do sul-global que, não sendo devidamente reconhecidos em âmbito nacional em suas épocas, acabam sendo descartados quando já não são mais tão úteis à elite mundial. João Gilberto, que veio a falecer em 6 de julho de 2019, estaria completando 93 anos de idade na data de hoje, 10 de junho de 2024. O artista, já debilitado de saúde, não pôde viajar aos EUA para receber o título de Doutor Honoris Causa em Música pela Universidade de Columbia, prêmio que foi recebido por sua filha mais nova, em seu nome. João Marcelo, outro de seus filhos, declarou ter encontrado seu pai “violado emocionalmente” e “visualmente agitado” no seu apartamento em 2017.
Entre os grandes nomes que incorporaram fortes influências técnicas e estilísticas desenvolvidas por João Gilberto em suas carreiras encontram-se Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Rita Lee, Chico Buarque, Roberto Carlos, Fernanda Takai, Jorge Ben Jor, Edu Lobo, Cazuza e o grupo Novos Baianos – esse último que, por sua vez, teve João Gilberto como mentor na produção do disco “Acabou Chorare”, de 1972, definido como o maior disco da história da música brasileira pela Rolling Stone Brasil em 2007.