A subjetividade das nossas tentações em ‘Desejos S.A.’
A comédia sob a direção de José Alvarenga Jr. e Mariana Youssef, mergulha nas profundezas do desejo humano com uma abordagem astuta e perspicaz, subvertendo expectativas e explorando as nuances do desejo através de uma lente cômica
Por Hyader Epaminondas
Você já se pegou perdido em meio ao mar de milhares de títulos disponíveis nos infinitos serviços de streaming, e quando menos espera, uma produção com uma premissa divertida acaba te fisgando sem aviso prévio?
Foi exatamente isso que aconteceu comigo ao descobrir “Desejos S.A.”, cuja estreia ocorreu discretamente no catálogo da Star+ no final de março. Uma colaboração curiosa entre os diretores e escritores André Brandt, Martin Bustos e Horácio Convertini para dar vida a essa produção nacional intensa, com um elenco que surpreende com suas atuações bem dosadas e versáteis para navegar com convicção pelos temas abordados nesta história fechada com ritmo crescente, que se desdobra como uma verdadeira jornada viva pelos anseios e dilemas que permeiam nossa existência.
“Desejos S.A.” apresenta uma combinação na medida certa de drama e comédia enquanto oferece uma coleção de contos independentes que se entrelaçam de maneiras inesperadas. Cada episódio mergulha na complexidade dos desejos humanos, colocando em destaque a agência homônima que, de forma misteriosa, surge para oferecer soluções mirabolantes sem muitas explicações ao seu público-alvo, ou seja, para clientes desesperados, tudo por uma simples taxa de R$9,90.
A criatividade inserida em cada desejo e suas consequências são divertidamente palpáveis, repleta de reviravoltas engraçadas que mantêm o clima intrigante até o desfecho de cada episódio, ao mesmo tempo que toma o tempo necessário para construir todo o clima com um olhar repleto de sensibilidade para apresentar suas histórias mais dramáticas.
A ambientação é cuidadosamente desenvolvida, com cenários expansivos que amplificam a sensação de excitação enquanto o mistério se desenrola de forma sinistra e natural, dispensando a necessidade de uma explicação explícita. Além dos desejos e suas consequências, a série aborda temas pertinentes como masculinidade tóxica, precariedade no ambiente de trabalho e as ramificações invisíveis de problemas familiares.
O logo da agência, com seu olhar penetrante e desafiador, projetando a natureza voyeurista do desejo humano, e com uma leve inclinação ao julgamento, incitando uma reflexão sobre as motivações por trás de nossos anseios mais profundos, pois o desejo é o desejo do Outro.
Além do desejo
A teoria do gozo de Lacan pode ser vista como um fio condutor que atravessa diferentes narrativas humanas, incluindo a história do gênio da lâmpada e seus desejos. Assim como na dinâmica dessa história lendária, os anseios dos personagens refletem uma busca por realização, preenchendo os vazios emocionais e existenciais em suas vidas.
Lacan propaga que o desejo humano é indefinível e inatingível, enraizado em um vácuo fundamental no inconsciente de cada indivíduo. Na lenda do gênio da lâmpada, os desejos dos personagens refletem essa busca incessante por algo além da realidade cotidiana, muitas vezes resultando em consequências imprevistas e dilemas éticos. Revelando que nem sempre o que nos dá prazer é o que realmente queremos, desafiando nossa compreensão mais profunda de nós mesmos.
A lâmpada não é apenas um objeto mágico, mas um símbolo da ânsia humana por realização. Em “Desejos S.A.”, a agência em si torna o centro das complexidades psicológicas e dos dilemas morais dos personagens, oferecendo um olhar perspicaz sobre a natureza e as camadas do desejo.
O desejo é não só uma força interna, mas também uma construção social, moldada pelas expectativas e normas ao nosso redor. Ao explorar essa dinâmica, a série lança luz sobre as consequências imprevistas da realização dos desejos, ecoando os anseios e armadilhas enfrentadas pelos personagens.
Assim como os desejos do gênio da lâmpada frequentemente resultam em desfechos inesperados, os desejos dos personagens revelam os perigos e nuances da busca pela realização pessoal. Ao mergulhar nessa adaptação moderna do gênio da lâmpada, a série nos convida à reflexão sobre nossos próprios desejos e até que ponto estamos dispostos a ir para alcançá-los, em um mundo onde as fronteiras entre o desejo e a realidade muitas vezes se confundem.
Consequências do desejar
Um dos aspectos mais cativantes de “Desejos S.A.” é sua coragem de transitar entre a comédia e o drama com naturalidade utilizando metáforas e alegorias de forma inteligente e perspicaz. Um exemplo notável é a abordagem de um episódio sobre os efeitos devastadores de um divórcio na perspectiva de uma criança, brilhantemente interpretada pela atriz Isabella Galvão, que protagoniza seu próprio conto usando bonecos de lã e uma casinha de bonecas mobiliada. Essa abordagem lúdica e inesperadamente madura oferece uma nova camada de profundidade ao tema, incentivando a reflexão e a empatia por experiências similares.
De forma sutil e penetrante, “Desejos S.A.” instiga uma pergunta fundamental que ecoa após cada episódio: até que ponto estamos dispostos a ir para realizar nossos desejos? Essa questão incisiva não apenas nos desafia a examinar nossas motivações mais íntimas, mas também nos convida a confrontar os limites éticos e morais que estamos dispostos a transgredir em busca da satisfação pessoal. Enquanto a série surpreende com sua narrativa envolvente e sua análise perspicaz do inconsciente humano a cada novo episódio, ela atua como um espelho para nossa própria jornada de autodescoberta, proporcionando uma reflexão instigante sobre os complexos dilemas que enfrentamos em nossas vidas.