Enxurrada de desinformação – a emergência climática do Rio Grande do Sul agravada pelas fake news
As temáticas das fake news variaram entre tópicos como doações, resgates e ausência do Estado
Por Manoela Vianna*
Há três semanas o Brasil parou para assistir atônito mais um exemplo de emergência climática: os estragos que as chuvas causaram no Rio Grande do Sul. Segundo a Defesa Civil do estado, em boletim divulgado no dia 20 de maio, foram registrados 146 mortos e 131 desaparecidos e mais de 81 mil pessoas seguem em abrigos em todo o estado. 2,3 milhões de pessoas foram atingidas em 463 municípios do estado, que é formado por 497. Hoje, no dia em que este artigo está sendo escrito, a chuva voltou forte para Porto Alegre. Para além desses números gigantes, que não traduzem o sofrimento imensurável, a tragédia também reforçou um outro fenômeno de nossos tempos e muito devastador: a desinformação.
O habitat da desinformação e o conteúdo das mensagens
Os conteúdos de desinformação são distribuídos em diferentes plataformas ao mesmo tempo, como uma campanha orquestrada para alcançar diferentes públicos e reforçar a narrativa. Os posts com desinformação também foram encontrados pela pesquisa da UFRJ em conteúdos pagos disponíveis na META – Facebook e Instagram, ganhando ainda o impulso dos algoritmos feitos para aumentar o alcance de anúncios pagos.
A temática das fakes news variaram entre tópicos como doações, resgates e ausência do Estado. Uma das fake news com mais alcance foi relacionada ao show da cantora Madonna, que reuniu 1,6 milhão de pessoas, na praia de Copacabana, em 4 de maio, no Rio de Janeiro. A mensagem era que o show teria sido patrocinado pelo governo federal e que o mesmo não estava apoiando as vítimas da tragédia no Rio Grande do Sul. Mas não houve verba pública federal para o concerto. Outra mensagem amplificada foi que Lula e a primeira dama Janja estavam no show, quando as chuvas fortes já tinham atingido o RS.
Em seguida iniciaram os relatos de que os caminhões com doações estavam sendo parados pelas autoridades por conta de falta de nota fiscal. O secretário-chefe da Casa Civil gaúcha, Artur Lemos precisou usar as redes sociais para desmentir. Intolerância religiosa também foram propagadas na onda de desinformação. As chuvas teriam sido causadas como uma maldição divina por conta do grande número de seguidores de religiões de matriz africana que atuam no estado, seria então uma punição de Deus.
A enchente de desinformação
Dados compilados peloInstituto Democracia em Xeque (DX), parceiro da Fundação Heinrich Böll, entre 7 e 13 de maio mostraram que as inundações no Rio Grande do Sul dominaram as redes sociais, com 7,7 milhões de publicações, 71,1 milhões de engajamentos. Destas, 4,3 milhões de postagens envolviam desinformação. Além disso, 75% desses conteúdos foram atribuídos à extrema direita, como mostrou a reportagem da Agência Pública[i]. [ii] A Agência Lupa, uma das principais organizações jornalísticas de fact checking do Brasil e também parceira da Fundação, chegou a receber cerca de 300 pedidos[iii] de checagem diariamente em seu canal no WhatsApp, um número comparável ao período eleitoral.
Notícias falsas circulando durante uma emergência climática confundem a população, prejudicam a distribuição das doações porque colocam a credibilidade de instituições que atuam no local em dúvida. A atenção do poder público precisaria estar 100% em responder à crise, organizando resgates, montando abrigos, divulgando boletins meteorológicos e cooperando com a sociedade civil, mas muitos agentes públicos tiveram que usar o tempo para desmentir fake news.
As nascentes das mentiras e as reações
Uma pesquisa do Netlab, laboratório de pesquisa da Escola de Comunicação da UFRJ, mostrou quem são os autores desse tsunami de desinformação durante a calamidade no RS. Trata-se de influenciadores, sites e políticos de extrema direita. Segundo o relatório, a comoção está sendo usada para essas pessoas e veículos se autopromoverem e disseminarem desinformação para tirar o crédito do governo. Há também mídias que disseminam o negacionismo climático ao promoverem arrecadações e organizarem doações, como a produtora Brasil Paralelo, que promove narrativas conspiratórias na temática ambiental e outras.
Por conta disso o governo brasileiro denunciou o caso à Polícia Federal apontando uma lista de notícias falsas que poderiam prejudicar o socorro às vítimas[iv]. Outra reação, foi uma representação na Procuradoria-Geral da República colocada pelo Psol contra sete deputados por terem disseminado desinformação sobre a catástrofe.
No campo internacional, algumas reações são percebidas. Um exemplo vem da declaração publicada pelo Fórum Econômico de Davos, no Global Risks Report 2024, afirmando que desinformação e a informação falsa são os maiores riscos a curto prazo para o mundo. No mesmo sentido, a Secretaria de Comunicação (SECOM), como ação do Grupo de Trabalho de Economia Digital do G20, promoveu o side event do G20 – ”Integridade da informação: combate à desinformação, ao discurso de ódio e às ameaças à democracia, “, no dia 1 de maio pela. João Guilherme Bastos dos Santos, diretor do DX, um dos palestrantes, afirmou que é preciso ultrapassar apenas a concepção do desmentir o que circula na internet, é necessário compreender como a mensagem está circulando no campo das culturas de cada território[v]. João se referia às estratégias para combater a desinformação sobre os impactos das mudanças climáticas.
Regular é preciso
Precisamos reagir à desinformação e já há inúmeros caminhos para isso: reconhecer o problema; prevenir, com letramento digital; mitigar, desmentindo; e fomentar as pesquisas sobre o tema, além de regular e responsabilizar. Como disse a brilhante jornalista e fundadora da Agência Publica Natalia Vianna: “prever e mitigar a desinformação é agora parte de gerir a coisa pública, afinal, a mentira digital veio pra ficar[vi].” No mesmo sentido afirmou a organização Mentira Não tem Preço: “As águas estão baixando, mas a desinformação não vai embora tão cedo”.
No campo da regulação, está em discussão desde 2020 o Projeto de Lei 2630. São quatro anos de debates que contam com a oposição das big techs à regulação do setor, que buscam manter um ambiente digital altamente concentrado, com pouca transparência. Além disso, o modelo de negócio dessas plataformas favorece a circulação da desinformação, que querem que as pessoas fiquem o máximo de tempo logadas e os algoritmos entendem que notícias que mexem fortemente com as emoções, gerando indignação ou comoção, engajam mais. As fake news geram este efeito e também geram lucros para muitos que as impulsionam.
Os dados sobre fake News impulsionadas pelas plataformas como ads são evidências do ambiente lucrativo que criam. Um ambiente regulado poderia desestimular os ganhos financeiros. Mas o que há no momento é um protocolo de Intenções entre o governo (AGU) e as plataformas, firmado em 20 de maio. TikTok, Meta, Kwai, LinkedIn, Google, Kuaishou Technology e Spotify, e representante do X (antigo Twitter) se comprometeram com a promoção de informação íntegra, confiável e de qualidade sobre a situação no Rio Grande do Sul, observados os termos de uso das próprias plataformas. Partindo do princípio que as empresas já deveriam estar observando os seus termos de uso, será este protocolo suficiente para engajar as plataformas?
Pela afirmação da ministra do Povos Indígenas parece que não. A ministra Sonia Guajajara pontuou que para os povos indígenas, “uma mentira ou discurso de ódio, é questão de vida ou morte”[vii], durante o painel sobre promoção da integridade da informação como fundamental para o enfrentamento da crise climática, no side event do GT de Economia Digital das Plataformas do G20. A emergência está clara e precisamos de uma vez por todas ouvir os povos originários.
Manoela Vianna é coordenadora da área de tecnopolítica e de comunicação da Fundação Heinrich Böll no Brasil
[i] Disponível em: https://apublica.org/nota/rio-grande-do-sul-mentiras-sobre-cheia-envolveram-43-mi-posts/#:~:text=A%20organiza%C3%A7%C3%A3o%20aponta%20que%204,cont%C3%ADnua%E2%80%9D%20e%20%E2%80%9Cmassiva%E2%80%9D.
[ii] A amostra para a pesquisa foi formada por 2.500 publicações no Facebook, Instagram, YouTube, X (antigo Twitter) e TikTok compuseram.
[iii] https://oglobo.globo.com/brasil/sos-rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/15/em-conversa-no-planalto-lula-critica-quem-espalha-noticias-falsas-sobre-tragedia-no-rs-nao-sabia-que-existia-especie-tao-canalha.ghtml
[iv] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2024/05/19/fake-news-viram-arma-politica-na-tragedia-climatica-do-rs.htm?cmpid=copiaecola
[v] Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/noticias/governo-academia-e-sociedade-civil-discutem-estrategias-para-enfrentar-a-desinformacao-sobre-mudancas-climaticas
[vi] Disponível em:https://apublica.org/2024/05/a-desinformacao-sobre-desastres-como-do-rio-grande-do-sul-veio-pra-ficar-mas-ha-como-combate-la/
[vii] Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/politica/para-nos-uma-mentira-e-questao-de-vida-ou-morte-diz-sonia-guajajara-em-evento-do-g20-sobre-desinformacao/